Norman Rockwell - Freedom from Want |
Francisco Bendl
O ser humano
é um eterno insatisfeito. Reclama sempre, mesmo que seja algo sem a menor
importância.
Não sei se é
um apelo para que receba atenção ou porque é da natureza nossa ser assim, um
chato.
Dizem os
especialistas em casamentos – que já se separaram várias vezes, curiosamente!
-, que a rotina de um casal pode causar a separação.
A relação se
estabiliza, fica morna, sem maiores excitações, emoções, o casal pouco se
envolve sexualmente, e passam a se aceitar como companhia um do outro.
Este é um
aspecto visto pelos entendidos neste assunto, que querem uma relação agitada,
de muito movimento, sexo, viagens, cinemas, restaurantes, passeios, festas ...
desde que esse casal tenha dinheiro, claro.
Mas, o poder
aquisitivo pode contribuir para o casal conhecer outras pessoas, igualmente
atraentes, ricas, e... cada um para um lado como consequência.
Logo, pouco
ou quase nada li sobre o cotidiano na relação do pobre, do sujeito como eu, que
casou sem nada e continua na mesma, ou seja, bota rotina nisso de carência!!
Em face
desse cotidiano desprovido do vil metal, o casal se aquieta, fica em casa, pois
não tem condições de se divertir, de ir a um dos templos de consumo, os tais
shoppings (também, ir a um deles para olhar as vitrines e não poder comprar
nada, trata-se de uma tortura chinesa).
Resta a
ambos encontrar dentro de suas casas as atrações que não podem buscar em outros
locais, transformando o lar como se fosse um parque de diversões ou quase.
Então, a
cama vive quebrada; em noites onde o casal precisa se lembrar como nasceram os
filhos – que baita eufemismo, chê! -, ela quebra, e caem ao chão. Risadas múltiplas,
mas, o “namoro” terminou, e vão dormir no colchão sem a cama, e sem resmungos.
Os sofás
estão corroídos pelo tempo, rasgados, alguns aparecendo o interior.
Para os
netos, eles são o pula-pula ou cama elástica, e com a mesma animação como se
fossem de verdade!
A velha
televisão ainda a válvulas(!) é usada como painel de uma espaçonave que os
guris inventaram. O seletor de canais serve como mudança de rota das galáxias,
que a imaginação fértil viaja na velocidade da luz.
A batedeira
ligada é o som da nave saindo da atmosfera terrestre, por óbvio.
A louça,
principalmente os copos, invariavelmente originários de extratos de tomate,
pepinos em conserva, palmitos, têm um uso necessário e imprescindível:
Quando
alguém inadvertidamente quebra um deles, nos almoços de domingo com a família
reunida, automaticamente dois ou três são quebrados no mesmo momento, pois deve
haver solidariedade com o desastrado, e ele não ser chamado à atenção, claro.
As cobertas
– temos muitas em razão do rigoroso inverno gaúcho – são usadas para barracas
ou dentro de casa ou até mesmo no pátio e, as cadeiras, o alicerce que as
mantém esticadas e espaçosas para seus “moradores”.
A geladeira,
cujo tempo de uso a deixou rebelde, pois funciona dia sim, dia não, após limpa
do que tem dentro é um apartamento single, onde serão guardados segredos
inconfessáveis das netas, óbvio.
Um pequeno
fogão de três bocas, que a Marli utiliza para cozinhar para nós, que tem cerca
de sessenta anos(!), ainda da marca Wallig, fabricado no RS, é confiscado para
as famosas e indefectíveis “comidinhas” e chás, e cabe ao avô ser aquele que
experimentará as especialidades!
Portanto,
essa “rotina” de se viver tanto tempo juntos, também ocasiona o mesmo com a
louça, os móveis, eletrônicos, configurando ao lar dos avós uma espécie de
museu com enormes atrações, e jamais encontradas naqueles templos de consumo
citados acima para a criançada.
Outra enorme
vantagem da rotina ou do cotidiano do casal, diz respeito ao conhecimento que
ambos têm um do outro.
Existe,
inclusive, a comunicação até mesmo telepática, pois várias vezes quando saio e
passo no supermercado na volta, a Marli se surpreende e exclama:
- Chico, como adivinhaste que eu tinha de comprar tais
mercadorias?!
Sem eu ter
tempo para responder, ela segue:
- Já sei, aprontaste, né, então queres me agradar!
Dia desses,
meus netos estavam sentados ao meu lado junto com seus pais, meus filhos - as
mães são minhas noras.
Começamos a
conversar as formas como os casais se chamam carinhosamente:
Neguinha,
amor, quica, gatinha, minha senhora, amoreco, minha rainha, minha deusa, amor
da minha vida, meu tesouro, chimbica...
Foi quando o
assunto derivou para a maneira como se chamavam quando não muito carinhosos...
Então, um
por um dos filhos e noras, começaram a desfilar um rosário de alcunhas:
Fala
demônio; não para de me chamar, sua doida?; vê se erra o meu nome, tá?; bah,
mas não dá para te aguentar de novo; diz aí, inferno; sua mandona, se eu
soubesse que eras assim, eu jamais casaria contigo; sua praga; que tu queres,
serrote?; levanta desse sofá, inútil; mas tu não serves mesmo para nada!; como
tu és burro!; bem que eu te avisei, teimoso!; não vou fazer nada que me pediste,
vai comer no boteco; pra lavar a tua roupa imunda e fedorenta então eu sirvo,
cachorro...;
As
gargalhadas se ouviam no outro lado da rua!
Foi, então,
que me fulminaram com a pergunta sobre como que a mãe e avó me chamava??!!
Eu estava
entre a cruz e a espada. Caíra na armadilha que haviam me preparado.
Os netos me
olhavam com olhos de curiosidade imensa, e respiração quieta. Filhas e noras
eram só expectativas, e nada boas para o meu lado.
Pensei com
os meus botões e me lembrei da célebre frase, que diz o seguinte:
“O diabo
sabe não porque é diabo, mas porque é velho”.
Dito isso,
eu me levantei do sofá e perguntei:
- Querem mesmo saber como a mãe a avó e sogra me chama, após quase
meio século juntos?!
- Sim – foi a resposta uníssona.
- Pois sou chamado pela Marli de “deus”!
- O quê?! A mãe jamais te chamou assim, pai, enquanto as
noras se entreolhavam e os netos riam.
- Pois vou provar – eu disse.
Chamei a
Marli, que não estava nesse momento da pergunta a mim formulada, e pedi que ela
repetisse o que dizia ao deitar, pois queriam saber.
- Marli, o que tu dizes ao deitar e levantar diariamente?!
- Ora, tu sabes: eu digo com Deus eu me deito e com Deus eu
levanto, com Deus eu me deito e com Deus eu me levanto!
- Viram só, é assim que o pai e o avô é chamado em casa!!!
A Marli, que
ouvira sorrateiramente a minha explicação divina, vocifera:
- Pois durante o dia quem me atazana a vida é o próprio demônio -
e me atira o chinelo, que me acerta o peito em cheio!
Os netos me
chamaram durante os dois dias que ficaram conosco, de vô capeta, e caiam na
gargalhada!
A rotina de
um casal unido por muito tempo pode ser monótona, no entanto, foi exatamente
esse cotidiano que trouxe à minha família a unidade indestrutível, a fortaleza
emocional para filhos e netos.
Indiscutivelmente,
se muito pouco eu e a Marli nos divertimos no passado, os netos e filhos com
suas esposas estão nos compensando os dias calmos, tranquilos, até mesmo meio
chatos demais.
Hoje, a
rotina nos determina que devemos nos preparar para os fins de semanas quando
nos visitam, onde a casa é revirada do avesso através de gargalhadas, alegrias,
gritos das crianças, e a felicidade estampada nos rostos de todos nós, até do
capeta!
Só vc Francisco pra me fazer rir pela manhã
ResponderExcluirComo estou casada há mais tempo que vc eu entendi estes comentários cheios de amor
Uma longa vida a dois tem suas compensações e muita alegria
E estes netos e bisnetos são uma continuação das nossas vidas
Vamos agradecer tudo isto
Um abraço e obrigada
Minha querida Lea,
ResponderExcluirMuito obrigado pelo teu singelo comentário.
Sabe, casais da nossa idade se identificam facilmente, pois a rotina é praticamente a mesma, porém imprescindível à felicidade do casal, de seus filhos e netos.
Sabemos do que eles gostam, do que ainda esperam de nós, e também daquilo que ainda podemos fazer, em face da idade que limita as nossas disposições, por maiores que elas sejam.
Enfim, Lea, muito melhor assim, do que uma vida isolada, sem mais alegria, sem companhia, literalmente esperando a morte chegar, como diz a célebre canção.
As vésperas dos fins de semanas nos deixam ansiosos, pensando em como a estadia deles possa ser a melhor possível, e o que trarão de novidades em termos de brincadeiras e "invenções".
Um forte abraço, Lea.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Prezado Bendl,
ResponderExcluirEu casei depois de mochilar durante três anos. Tudo o que eu queria era sossegar! Estava cansado da vida nômade, doido para ter a minha casa, um ponto para bater e alguns curumins para chamar de meus. Quanto ao casamento continuo pensando como há tinta e cinco anos: é muito melhor com ela (rsrs)
Ainda aprecio a estrada, gosto de desafios, de sair da minha zona de conforto. Mas por mais que eu goste de aventura, também gosto da rotina, do ambiente familiar, das minhas coisas, de pesquisar e planejar e de saber o que vem a seguir. É a rotina que nos dá conforto, aconchego e previsibilidade e nos permite dormir em paz todas as noites. Encontrar o equilíbrio perfeito entre ter uma rotina e não deixar que a mesmice e o tédio nos consuma é uma luta constante e não descobrimos ainda a fórmula exata mas continuamos trabalhando nisso (rsrs) Talvez a resposta seja aceitar na boa que com os nossos muitos anos o ritmo da viagem se suavizou.
Quanto aos netos e à folia e gargalhadas dos finais de semana, o seu post os descreve tão bem que me valho das pretinhas do poeta Affonso Sant'anna: “O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. É a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.”
Abração
Caro Pimentel,
ExcluirObrigado pelo comentário.
Como deves perceber, atenho-me mais aos acontecimentos rotineiros familiares e em tom ameno, do que escrever sobre também as dificuldades que temos no nosso dia a dia.
A minha intenção é aliviar a nossa carga atual, tanto pelo peso da idade, quanto pela expectativa de, até quando vamos permanecer neste planeta!?
Logo, a presença dos netos, suas vidas ainda desabrochando, os filhos adultos e jovens - quando nos reunimos essas vitalidades e energia, alegria e enorme satisfação, servem como abastecimento para o nosso depósito de felicidades.
Na razão direta que temos mais uma carga para seguir em frente, pois bastecida duas ou três vezes a cada mês, encontramos nessa rotina a força indispensável para vivermos de maneira mais humorística, mais compreensiva, justamente à espera que nossos amados nos abasteçam de felicidades ao nos visitar.
Um grande abraço.
Saúde e paz.
Prezado Autor Sr. FRANCISCO BENDL, de
ResponderExcluirSe, como em vossa bem humorada crônica sobre a rotina nos casamentos, tenderem a esfriar os relacionamentos Familiares, Vossa ilustre Família está a salvo, eis que quando se reúnem Vô, Vó, Filhos e especialmente Netos, a alegria é constante e anti-rotina é a regra.
Ė que sua Esposa Prof. D. MARLI e o senhor, souberam construir um LAR. E um LAR, cujo principal Capital ė o CALOR HUMANO, não depende de grandes Recursos Materiais.
Quando o Vô CAPETÃO, e agora os Capitães estão em alta, apronta alguma como a ser chamado por D. MARLI de "deus", mesmo recebendo chinelada e tendo que bater em retirada, a rotina há muito que foi para o espaço.
A sua criatividade e Arte de Escrever bem, nos encantam.
Abração.
Mestre Bortolotto,
ExcluirMuito obrigado pelo comentário.
Olha, a cada visita dos netos sou colocado diante de desafios, e que me exigem soluções imediatas ou ideias que me tirem do aperto.
Essa que inventei que sou chamado pela Marli de "deus", veio na hora a lembrança de que, ao deitar, ela repete algumas vezes a frase:
com Deus eu deito, com Deus acordo ...
Ora, facilmente eu poderia usurpar essa expressão para explicar como sou chamado em casa pela avó, diante da minha "importância, presença e beleza"!!!
Foi muito divertida essa cena quando eu disse que a Marli assim me chamava, de "deus".
Nem os filhos acreditaram, mas riram muito.
Enfim, mestre, é como dizes:
Um lar onde reina o calor humano, a alegria, a rotina é o que tem de melhor, pois mais aconchegante, mais necessário e imprescindível.
Um forte abraço, caloroso e fraterno.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Olá Francisco, gauchão dissidente,
ResponderExcluirÉ assim mesmo, a vida vai nos impondo condições diferentes e mudanças necessárias. Sabendo delas e tentando nos adaptar nós aqui vamos seguindo nosso caminho. Muitas vezes rindo de nós mesmos, de nossas "velhices" adquiridas. Quando não dá para rir...tudo, menos ficar chorando para todo o sempre.
A rotina me é imprescindível, é nela que descanso. Mas também só é boa quando é quebrada de quando em vez. Para isso não preciso de grandes investimentos. Muitas vezes até mesmo dentro da minha pequena oficina que, na minha ousadia, chamo de atelier, onde mora um mundo amoroso cheio de inesperados e onde me perco e me acho (poderia escrever sobre isso!).
Mas os netos..."hora do carinho ocioso e estocado" como citou o Moacir. Os netos serão sempre o novo da vida para mim.
Obrigada pelo texto e pelas risadas.
Até mais e mais.
Prezada Aninha,
ExcluirAssim como tens o teu atelier, o espaço que tenho para escrever, meditar, pensar, ver TV, ler, descansar, denomino de oficina do pensamento (já escrevi um artigo com este título).
Minhas ideias precisam muito de recall (chamar de volta), ser melhoradas, aperfeiçoadas, buriladas, pois constantemente necessitam ser consertadas.
Mas, tais ajustes são feitos à base da alegria, ou seja, eu rindo de mim mesmo.
Assim, facilmente faço meus familiares se divertirem, e evito mal entendidos e confusões porque sou o protagonista, logo, eu não posso reclamar de mim mesmo.
Dito isso, sei que eu, tu e o Mano, mas a Marli, claro, nos identificamos muito através dos netos, que nos renovam, que nos fazem querer que vivamos por muito tempo ainda.
E, diante do compromisso que estabelecemos para nós mesmos, de deixarmos um legado de alegria dos avós, que muito ficavam felizes quando recebiam suas visitas, a cada vinda é uma festa, barulhenta, divertida, sem maiores fiscalizações e reprimendas, pois estão na casa dos avós, e são eles que mandam!!!
Um grande abraço, forte, afetuoso e fraterno, Aninha.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Chicão,
ResponderExcluirquase tudo o que eu queria dizer sobre o teu delicioso post foi dito antes de mim por nossos amigos e por tuas respostas.
Só posso acrescentar que é uma bênção ter vivido para ver em nossos netos a segunda oportunidade de entregar o nosso "carinho estocado" e que a nossa rotina doméstica é tanto mais feliz quanto mais seja uma ocasião de ser quebrada pelas visitas dos filhos, das noras e dos netos que iluminam de carinho a nossa casa.
Caríssimo Mano,
ExcluirDisseste uma verdade apodítica, estocástica, irreparável, insofismável, indiscutível ...
Os pais que conseguem viver com os filhos dos filhos, os netos, certamente é uma bênção, que deve ser agradecida e reconhecida diariamente!
Entender o significado de tê-los conosco, extrapola a nossa compreensão pois, no mínimo, cósmica!
Um sentimento que brota em nossos corações impossível de ser avaliado adequadamente, haja vista que explode sempre que estamos com os netos e filhos, e rejuvenescemos, nos fortalecemos, a vida é bela, inigualável!
Tanta felicidade só pode mesmo ser divina, algo universal, uma espécie de seres humanos que conseguiram sentir o verdadeiro significado e sensação do que vem a ser uma vida feliz, incomparável, pois somos pais duplos, logo, a importância dos filhos que tivemos e merecemos tê-los, vem a ser chancelada pelos netos, o diploma que confirma nossos méritos, o atestado que fomos mesmo agraciados por Deus!
Não nos resta outra alternativa que não seja construir um mundo onde eles se sintam bem, amados, respeitados, educados, de modo que sintam o mesmo que seus avós, um gosto indescritível de satisfação pela vida!
Abração, meu caro amigo, Mano.
1)Mais um belo artigo do Chicão. Atual como sempre. Parabéns !
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