fotografia de Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
É bom estar
de novo em Sampa, a minha cidade do coração dentre tantas que moram nele.
Respirar com força um ar que dizem irrespirável. Bobagem, o pulmão aceita de
bom grado. Terá trabalho, é certo. E daí? A fuligem dos carros é descomunal. E
as pessoas, nem aí, fazem suas caminhadas, correm no meio da confusão como se
estivessem nas trilhas de um parque com ar de montanha.
O ambiente
acolhedor do escritório, caminhar pela Paulista, aproveitar a gastronomia
pantagruélica da região. O prazer de entrar num restaurante depois de longa ausência
e os garçons virem fazer festa, todos nós nos tratando pelos nomes entre
afagos, gracejos e abraços. Eu não sei como essas coisas acontecem. Apenas
acontecem com o tempo.
Eu
não sei, eu não sei
Acompanhe
de perto
E
você verá
Eu
não sei, eu não sei
Alguns dias
depois, feriadão. Tarde da noite. Beatles na vitrola, os quatro e suas mulheres
em cenas comuns aparecendo na tela, apenas sendo o retrato encantador da maior
revolução de costumes de que se tem notícia. Interessante, essa não foi uma
notícia que envelheceu como todas as outras, parece que há um poção mágica ali.
Um carro
passa rápido na rua deserta lá em baixo, desviando minha visão periférica para
a cidade. Ali adiante, o café famoso fechado, o cruzamento com a Paulista quase
em ritual de meditação. Cena rara!
Nenhuma alma
viva na rua, apenas os mendigos sob seus molambos, jornais e papelões para se
abrigar da noite levemente resfriada de primavera. O caminhão do lixo passa
cumprindo seu ritual de fazer barulho e levar embora o que sobrou de nós. Uma
motocicleta com escapamento aberto faz um vocal em terça voz na diatônica do
nada a fazer a não ser ouvir sem querer.
Eu
olho vocês todos
Eu
olho para o chão
E
vejo que precisa ser limpo
Eu
olho o mundo
E
eu noto que ele está girando
Com
todo erro
Nós
certamente precisamos aprender
Como
eu estou sentando
Fazendo
nada além de envelhecer
Vejo
o amor que aí dorme
Eu
olho vocês todos
Não sei se
são homens ou mulheres, vejo apenas pacotes humanos para serem desfeitos quando
amanhecer. E ficar por ali ou seguir para algum lugar exatamente igual, uma
calçada sem qualquer perspectiva na infernal superposição de prédios.
Pensei na
insegurança que ronda todo tempo aquelas criaturas e a contradição da nossa
soberba que nos faz levantar o nariz para ignorar o piso onde elas deitam. E me
perguntei como, tão expostos à insegurança, podem ser o retrato da nossa
insegurança, a face do nosso temor paranoico de que tudo pode dar errado num
piscar de olhos. Até que dê errado e a gente perceba que não é simples paranoia.
Quando
eu era jovem
Muito
mais jovem que hoje
Eu
nunca precisei
Da
ajuda de ninguém
Em
nenhum sentido
E
agora estes dias se foram
Eu
não sou uma pessoa
Assim
tão segura
Um corpo vem
cambaleando lentamente. É o velho que passa o dia por ali falando com alguém
que só ele vê. Não sei se cambaleia de bebida ou de velhice. Vai se acomodando,
embrulhado em seus trapos, mais um pacote humano pronto para se desmanchar na
hora sagrada em que o sol chegar.
Lá
vem o velho mais chato
Ele
vem gingando lentamente
Ele
tem olhos mágicos
Ele tem
alguma mágica escondida, as crianças não o temem e se divertem. Gosta da banca
de jornal, fica nos arredores mirando jornais pendurados e revistas expostas.
Não mexe em nada e só se aproxima quando não há ninguém por perto. Não
incomoda. Quando desanda a falar, talvez discuta as notícias ou fofocas da tevê
– ele sabe que estão ali – com o tal amigo invisível. Ele até gesticula. Talvez
haja uma plenária do absurdo, uma galeria armorial, pois se movimenta com meneios
elegantes e fala em muitas direções, como fazem os oradores de boa técnica.
O sol, o
amanhecer. E os embrulhos começam a se desfazer lentos. Levanto cedo e caminho
entre os dois mundos da cidade. Mantenho a fé, é indispensável sobreviver no
meio da multidão. Passo entre restos de molambos e cargas ainda sobre a calçada
esperando a hora de entrar nos estabelecimentos. O cheiro de café e pão
fresquinhos enche as narinas, não dá para contornar o desejo de entrar na
padaria. Nem são oito horas e a Paulista fervilha, calçada e asfalto. Coisa de
sábado. Porque hoje é sábado. Dia da criação.
Hoje
é sábado, amanhã é domingo
A
vida vem em ondas, como o mar
Não
há nada como o tempo para passar
Amanhã
não gosta de ver ninguém bem
Hoje
é que é o dia do presente
O
dia é sábado.
Há
um renovar-se de esperanças
Há
uma profunda discordância
Há
um grande espírito de porco
Há
criancinhas que não comem
Há
um piquenique de políticos
Há
uma tensão inusitada
Há
adolescências seminuas
Há
um grande aumento no consumo
Há
a sensação angustiante
Há
a perspectiva do domingo
Porque
hoje é sábado.
E amanhã é
domingo. Dia da traição, que nos engana com o descanso que acaba na
segunda-feira, dia da recusação de recomeçar tudo de novo e a gente fazendo
nada além de envelhecer.
A multidão
se desloca potente e solitária, como um mecanismo amorfo e mutante, em cada
esquina se esvaindo e se realimentando de novos elementos que vêm e vão por
seus destinos escolhidos ou não. Sendo tragada ou expelida por lojas, portarias,
elevadores, carros, ônibus, metrôs. E pelos cigarros comidos pelo fogo sem
qualquer paixão.
E
quando as pessoas
Sozinhas
no mundo, concordarem
Haverá
uma resposta
Deixe
estar
Pois
embora possam estar separados
Eles
verão que ainda há uma chance
Haverá
uma resposta
Deixe
estar
Sussurrando
palavras sábias
Deixe
estar, deixe estar
Há um menino
triste, com sua caixa de engraxate. Ronda, ronda, ronda como eu fiz de noite
com a cidade, sem sair do lugar – pelo menos, fui embora antes da cena de
sangue num bar. Ronda, ronda e pede que alguém pague um lanche. Ronda sem
acreditar muito que possa haver mágica naquele passar de graxa, escova e
flanela, e alguns pingos d’água para hidratar o couro. Ingratos, os sapatos vão
embora brilhando e nem olham para trás. Acreditam que as moedas que deixaram
valem mais.
Ei,
não fique mal
Pegue
uma canção triste
E
torne-a melhor
Lembre-se
de deixá-la entrar
Em
seu coração
Então
você pode
Começar
a melhorar as coisas
Não
tenha medo
E
qualquer vez
Que
você sentir dor
Vá
com calma
Não
carregue o mundo
Nos
seus ombros
Você
bem sabe que é tolice
Desço a
ladeira suave da minha rua, que nunca foi minha e não é de ninguém. Tanto que
está vazia. Tanto que dá um certo frio na espinha. Tanto que olho para trás. Sossego
porque vejo os pacotes de molambos imóveis em suas calçadas, que seriam minhas
também se eu não tivesse escapado das armadilhas. E assim apresso o passo e
atravesso o trecho.
E
não há nada com o que se preocupar
Viver
é fácil com os olhos fechados
Sem
entender tudo o que você vê
Está
ficando difícil ser alguém
Mas
tudo funciona bem
Isso
não me importa muito
Um homem que
não sei quem é e não sabe quem sou abre o portão. E o seguinte, depois que ouve
aquele “claque” metálico seco do primeiro fechando. Sim, é preciso a eclusa
para rimar com vida reclusa amedrontada atrás de grades, cercas elétricas e
alarmes. Um “obrigado” meu, por obrigação, sem resposta, mais dois “boa-noite” indo
e voltando encerram a trilogia minimalista do que dizer. Não há mais nada a fazer
a não ser dar de ombros e subir.
O elevador
lento combina com a noite alta, preguiçosa do domingo. Roda a vitrola
incansável. O precioso Paêbirú entra pelos ouvidos e viaja pela partitura das
entranhas como um bálsamo interior. Raríssimo em seu dialeto, libelo dialético
como nunca se viu. É mesmo “maneira insinuante e capciosa de argumentar, de
raciocinar com excesso de sutilezas”, como li nalgum lugar. É obra para se
ouvir em silêncio absoluto olhando pela janela segura do milésimo andar, sem
anteparo. É um voo no vazio preenchido. Viva Zé Ramalho; viva a memória de Lula
Côrtes – partido e inteiro. Viva o sono sucumbindo à segunda-feira novinha em
folha.
Trechos de:
Something (George Harrison)
While my guitar gently weeps (George
Harrison)
Help (John Lennon-Paul McCartney)
Come together (John Lennon-Paul McCartney)
Dia da criação (Vinícius de Moraes)
Let it be (John Lennon-Paul McCartney)
Hey Jude (John Lennon-Paul McCartney)
Strawberry fields forever (John Lennon-Paul
McCartney)
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirA sua crônica foi capaz de me fazer hoje, com quase sixty four, experimentar a vida toda de novo ao som dos Beatles, desde adolescente, naqueles tempos de flores, paz e amor, quando se não éramos hippies erámos, ao menos, colegas deles na falta de rumo.
Portanto permita que um beatlemaníaco de carteirinha lhe agradeça imenso por essa belíssima homenagem temperada pelo Poetinha aos Fab Four, na qual eu não mexeria em uma vírgula mas acrescentaria uma soundtrack, através de um link seu velho conhecido (rsrs)
https://www.youtube.com/watch?v=ywIbsqV3Nvo
There will be an answer!
Abração
Caríssimo,
ExcluirÉ... Beatles tem esse condão de nos transportar no tempo, de parecer que somos infindáveis, porque aquele sonho, ao que parece, não acabou. E nossa falta de rumo era poética, bem diferente da que temos hoje por aí.
Na verdade, o texto foi apenas a realidade aumentada - como se diz hoje, no ambiente tecnológico - pelo som dos quatro rapazes. E o nosso Poetinha passou para dar um alô que não se cala.
Quanto ao link, é um espetáculo digno dos mestres. Resposta? Deixe estar. Abração.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirSeu texto é bom demais . Só você para virar lixo em poesia, "o resto de nós". E traduzir a fala desconexa do mendigo dançante em "plenária do absurdo, uma galeria armorial". E depois quando o "pacote se desfaz ao amanhecer numa rua que nunca foi sua".
Um texto muito lindo e, para mim, irremediavelmente triste.
Obrigada por mais uma leitura que não se acaba.
Até mais.
Olá, Ana,
ExcluirSeus comentários são melhores ainda, me deixam recompensados por gastar tinta e papel. E animam a arranjar tempo para escrever mais e mais.
Será o texto triste ou a tradução que ele faz da realidade - que é tristíssima? Sim, as imagens que passam pelo andamento do texto, captadas na urbanidade rude, são duras, mas lindas! Como se fosse o negativo da vida que se revela Até mais.
1)Parabéns Palmeira pelas palavras poderosas...
ResponderExcluir2)Desnecessário a esta altura do campeonato, dizer que eu ouvia os Beatles lá no meu querido Gama, DF.
3)Fazíamos versões populares e ingênuas.
4)Uma vez ouvi um crítico musical afirmar que o grupo Os Cariocas eram melhores e mais uníssonos, mais afinados do que os beatles. Vc é da área pode me tirar a dúvida acima.
5)Abraços !
Antonio,
ExcluirObrigado. Sim, todos nós ouvimos Beatles em algum momento. Continuo ouvindo, forever.
Claro que os dois estilos são completamente diversos e não dá para estabelecer comparações. Mas Os Cariocas, nos vocais, eram muito mais refinados, até pelo segmento musical em que atuavam. E os meninos de Liverpool gigantes que mudaram o mundo.
Daí, "melhores" não se aplica neste caso, pois as distâncias são abissais entre as duas realidades. Para mim, todos indispensáveis aos seus tempos. Abraço.
Já escrevi e repito:
ResponderExcluirGosto muito dos textos de Palmeira, pois ele sabe como poucos mesclar as palavras com a musica, e eu sempre apreciei esse estilo, a ponto que me valho dele eventualmente.
Claro, óbvio, que sem qualquer resquício do talento do autor, hábil na suas crônicas, sutil em suas analogias, sensível em caracterizar seus personagens.
Dito isso, mais uma vez estamos diante de uma bela e nostálgica postagem, onde Palmeira nos faz viajar através de suas frases, conforme sua destreza em registrá-las sempre com a sua capacidade literária e indiscutível sobre o que publica.
Parabéns, Palmeira.
Resta-me aplaudir tanto talento e mente brilhante.
Abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirObrigado, estou honrado com seu comentário. Mas leve sempre em conta que sou apenas um cronista do meu tempo, atento ao movimento do derredor. Abraço.