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28/02/2018

O GALO E A BARRICA – Uma ode em três capítulos - Fim

III – A Retomada de Angola
Mapa de Angola da época (Domingos Ferreira)

Domingos Ferreira
A terra angolana foi avistada ao amanhecer, oito semanas após a saída do Rio. A aproximação foi rápida, com mar e vento favoráveis. As caravelas passaram para a testa do grupo, com o galeão capitânia logo atrás, para maior segurança na aterragem. Tomaram rumo norte e navegaram paralelo à costa, buscando identificar alguma referência de posição, o que só ocorreu no dia seguinte. Tinham avistado a pequena baía, onde o “Príncipe Real” lançara o pessoal para obter informações sobre o inimigo, na ida para o Rio. Ali, os navios amainaram os panos e fundearam.
Uma reunião ocorreu na câmara do navio capitânia, naquela mesma noite. Salvador de Sá queria inteirar-se da situação dos navios e da tropa e acertar as últimas providências. Além dos comandantes e do sargento-mor, estava presente o bispo D. Manuel. Os assuntos referentes ao desembarque e ao cerco e tomada de Luanda foram tratados com o detalhamento necessário. Havia uma grande preocupação em manter a tropa sempre unida, para evitar que contingentes isolados caíssem nas mãos de nativos antropófagos, aliados dos holandeses, como ocorrera em 1645.
Tudo esclarecido e acertado, Salvador de Sá passou a palavra ao bispo para rezar pelo sucesso da operação e abençoar os presentes. Antes de ter início a invocação, o galo cantou e a figura de D. Fernando se materializou, com meio corpo fora da barrica, para grande susto dos que o desconheciam. Ele foi saudado por Salvador de Sá com uma reverência. O bispo o chamou pelo nome e cargo que exercera e atribuiu sua presença a desígnios divinos, sinalizando com a vitória na retomada de Luanda.
D. Fernando, que acompanhara atentamente as discussões, tomou a palavra e emocionou a todos ao lembrar-lhes o desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578. Ressaltou ainda que tal sacrifício, na defesa dos interesses portugueses no continente africano, deveria norteá-los na luta a ser travada nos dias seguintes. A seguir, o bispo prosseguiu com as orações, acompanhado piedosamente por todos. A benção final ocorreu entre vivas entusiasmados a Portugal, a D. Sebastião e a El-Rei D. João IV, cujo refrão era “Jesus, São Tomé, Ave Maria!!!”
A concepção do ataque a Luanda era simples. A maior parte da tropa iria desembarcar pela manhã e marchar sobre a vila, de modo a alcançá-la na madrugada seguinte. Seus segmentos deveriam se posicionar para cercá-la, impedindo o contato dos moradores com o interior da região. A movimentação dos navios se daria após o desembarque da tropa, de modo a amanhecerem em frente à Luanda. O bombardeio dos fortes e dos navios artilhados no porto teria início a um sinal do capitânia. O casario seria o alvo seguinte, se necessário. Esperava-se surpresa total do inimigo.
Contudo, a movimentação da tropa alertara a população da vila e, na manhã de 12 de agosto de 1648, Salvador de Sá foi recebido pela artilharia dos dois fortes e dos navios fundeados. Porém, o tiro deles, curto e desregulado, facilitou o posicionamento dos navios invasores fora de seu alcance. A resposta da bem treinada força naval lusa foi devastadora. Os canhões inimigos foram calados, um a um, naquele mesmo dia. Nenhum navio português foi atingido. A pólvora chinesa valera mais uma vez.
Após uma tentativa de negociação frustrada, no dia seguinte foi realizado um assalto da tropa aos fortes, onde os holandeses haviam se recolhido. Sua violenta reação surpreendeu os portugueses, causando-lhes mais de uma centena de mortes e muitos feridos. Como resultado, o cerco por terra e o bloqueio por mar estacionaram. Isso beneficiaria os holandeses, que aguardavam o retorno de metade de seu contingente, enviado para atacar um enclave luso em Massangano, resistente a eles desde sempre.
Esse quadro só mudou com o apoio da tribo Zimba, inimiga dos canibais Jagas, e chefiada pela astuta rainha Malili. Ela preferia negociar escravos com os lusitanos em vez de holandeses, pelos quais se sentia destratada. Além disso, uma de suas filhas se unira a um português, o Jacinto, e lhe deram três netos. Por sorte, seus guerreiros interceptaram os mensageiros dos inimigos sitiados em Luanda, com instruções para seu contingente no cerco a Massangano retornar com urgência.
Além disso, o incansável Salvador de Sá montara uma “ruse de guerre” para enganar os inimigos. A tropa lusa restante a bordo e os artilheiros foram mantidos nos conveses, enquanto fosse dia, em constante movimentação, com bandeiras e estandartes, ao som de tambores e cornetas. Com isso, os inimigos se convenceram da existência de um grande contingente português pronto a desembarcar.
Esse fato, somado à ausência dos seus reforços e à artilharia destruída, levou os holandeses a se renderem poucos dias depois, quase sem luta, quando concluíram não poder mais romper o bloqueio. As condições da rendição os autorizavam a enviar seus tumbeiros para os portos de destino, com cerca de dois mil escravos. Foi-lhes ainda concedido manter bandeiras e estandartes, após entregarem armas e munições.
Dom Salvador Correia de Sá e Benevides entrou vitorioso em Luanda, em 24 de agosto de 1648, seguido por seus capitães, o ex-bispo de Goa, vários padres jesuítas, e os burocratas para a administração da colônia retomada. Alguns dias depois, o fidalgo holandês, Mauritius van der Haagen, delegado da Companhia das Índias Ocidentais , transmitiu-lhe o cargo de governador de Angola, em cerimônia na praça de Luanda, com as honras das tropas portuguesa e holandesa. Salvador de Sá ficou em Luanda até julho de 1651, quando voltou ao Rio de Janeiro, que ainda governou de 1660 a 1662.
O “Príncipe Real” escoltou até Lisboa os navios apreendidos que transportavam os derrotados holandeses. Eram duas naus e três urcas, abarrotadas de gente. Os demais foram incorporados à força portuguesa, com nomes lusos, o menor deles chamado “Rainha Malili”. A câmara do capitão Nuno voltou à rotina de conversas entre ele, D. Manuel e D. Fernando, na barrica. Elas eram menos frequentes, pelo cansaço de todos, inclusive do galo. Os assuntos ficaram mais amenos, após a euforia da vitória. Havia um tom de nostalgia, em especial ao abordarem o destino final do ilustre falecido.
O aguerrido “Príncipe Real” entrou no Tejo, com suas presas, após oito semanas de mar, em que rijos alíseos os forçaram a orçar até os Açores, para ganhar barlavento em demanda a Lisboa. Houve uma grande celebração na capital, festejando a reconquista de Angola. O capitão Nuno, o bispo D. Manuel, o ex-governador D. Fernando, em sua barrica, e o galo, foram hospedados no Paço da Ribeira. Celebrou-se um “Te Deum” na Capela Real. O rei D. João IV ordenou Nuno como “Cavaleiro da Ordem de Cristo”, em cerimônia no Grande Salão, na presença do Conselho Ultramarino e de toda a corte.
Passados alguns dias, a barrica, com D. Fernando, foi embarcada em um palhabote, o “Santa Mãe de Deus”, que suspendeu para o Porto, com Nuno, o bispo D. Manuel e o galo a bordo. Naquela cidade, transferiram-se para um “barco rabelo”, adequado à navegação no Douro, e seguiram rio acima. Passaram pelo belo por do sol da região de Chamadouro, e atingiram a foz do afluente Côa, no qual navegaram até os contrafortes da serra da Estrela. As últimas dez léguas, até a vila de Belmonte, incluíram vencer a serra, só possível em mulas e num forte carro de boi.
O enterramento do corpo do fidalgo Dom Fernando de Souza Álvares, governador de Macau e tio do capitão Nuno de Noronha Álvares, finalmente ocorreu na terra natal de ambos. A população de Belmonte compareceu em peso, em homenagem ao filho ilustre, descendente do grande Pedro Álvares Cabral. O milenar cemitério, em terraço sobre o vale do rio Zêzere, abrigava romanos, visigodos, sarracenos, bretões, gauleses, normandos, espanhóis e os valorosos descendentes de todos eles, os portugueses, destemidos descobridores do mundo. O oficiante foi o amigo do falecido, bispo D. Manuel de Castello Branco, nascido na cidade próxima de mesmo nome, com jurisdição sobre a vila de Belmonte.
O galo, empoleirado na barrica vazia, no carro de boi, a tudo assistiu em silêncio, tendo o vasto horizonte da terra lusitana ao redor. A barrica, refinada peça da marcenaria chinesa, foi zelosamente guardada em uma pequena capela, dedicada a Nossa Senhora dos Navegantes, nas proximidades de Belmonte. Junto a ela, dentro das mais cultuadas tradições lusas, foram postadas a imagem da Virgem e a lamparina, retiradas da câmara do valoroso galeão “Príncipe Real”.
Todos esses fatos notáveis entraram para o folclore regional. Daí, foi criada a figura do “galo de barrica”, em metal, encarapitado nos telhados, com olhar desafiador para o futuro, ou em loiça, no aconchego das casas das altas terras beirãs da Serra da Estrela e cercanias.
Galo de barrica português, em loiça (imagem Wikipedia)

Nuno e seu galo retornaram à vida aventurosa dos sete mares. Isso durou até o bravo capitão, em uma escala em Salvador, cair de amores por Filomena, ou Nhá Filó, mulata baiana de olhos verdes, de puro feitiço. Tiveram nove filhos, com muitos Álvares descendentes neste imenso Brasil, O galo abrasileirou-se de vez, como seu dono, e escapou da panela. Morreu de velho, feliz, em permanente miscigenação com galinhas soteropolitanas, na chácara de Nuno, no Rio Vermelho.
De frente para o mar...


26/02/2018

As feras da colina

Henri Matisse - The conversation  (1908 - 1912)


Moacir Pimentel
A tela que abre o post chama-se A Conversa, foi assinada por Henri Matisse e representa um casamento onde ela já não rola. Identifiquei-me com a imagem porque a conversa de hoje que será sobre os “ismos” na pintura do século XX não é uma tarefa fácil.
O grande Matisse oportunamente terá, é claro, posts para chamar de seus e portanto hoje teclarei muito pouco sobre o “pai das feras”, mas adianto que ele era chegado a uma boa prosa. Tudo o que foi escrito sobre o pintor o descreve como um artista cuja mente sempre prevaleceu sobre a emoção, como um intelectual cavalheiresco, sem ponta de selvageria embora lhe sobrasse veemência.
Quando visitei Montmartre pela primeira vez, no final da década de setenta, eu planejava tolamente seguir pelas ladeiras do bairro as pegadas claras dos mais ilustres representantes dos mais famosos “ismos”: o Impressionismo, o Pós Impressionismo, o Fauvismo, o Cubismo, o Orfismo, o Expressionismo e o Surrealismo e por aí vai. Mas descobri que eles se misturaram e é isso o que torna muito difícil uma conversa sobre o tema, ainda mais para quem, como eu, não gosta de rótulos.
Antes de pisar pela primeira vez naquelas paragens, apesar das minhas desinformação e juventude, eu já tinha uma vaga ideia de que três homens – Cézanne, Matisse e Picasso – ali haviam pintado com uma grandeza clássica e que suas visionárias incursões por uma arte nova tinham mudado a compreensão do mundo.
À epoca eu já reverenciava Cézanne mas preferia as artes de Matisse, talvez por não entender absolutamente as coisas de Picasso. Aliás, não poderiam existir dois sujeitos mais diversos. Matisse, assim como Rafael, era um líder nato que ensinou e encorajou outros pintores. Já Picasso, tal como Michelangelo, inibia a todos com os seus carisma, talento e poder, sendo por natureza um déspota.
Porém de início, quem ficou famoso como o “roi des fauves”- o rei das feras - foi Matisse e os seus súditos eram os fauvistas, os pintores que trabalhavam pela cartilha do Fauvismo.
Esse “ismo” foi o primeiro e o mais breve dos movimentos da pintura moderna, aquele que pioneiramente defendeu que a cor devia servir à arte, tal como já fizera - sem rótulos! - van Gogh pintando a Provença com suas cores mentais e até mesmo Gauguin, ao pintar as suas areias de rosa para expressar uma emoção.
Paul Gauguin - Cavaliers sur la plage - II (`906)

A liberdade pinturesca dos fauvistas e o uso expressivo que faziam da cor não naturalista eram uma magnífica comprovação de que haviam estudado com carinho e inteligência a obra de van Gogh, que escreveu em uma de suas cartas:
“Em vez de tentar expressar o que vejo na minha frente, eu uso a cor de maneira totalmente arbitrária para expressar com vigor a minha emoção”.
O certo é que os fauvistas acreditavam inteiramente na cor como forma e força de expressão e espantaram todos os especialistas no Salão de Outono de Paris de 1905 com as estranhezas que fizeram com ela!
Depois de ter visto as coloridas e atrevidas telas rodeando uma frágil e desbotada escultura convencional de um menino, dizem os livros que o crítico de arte Louis Vauxcelles teria comentado que o bronze o fazia pensar em uma escultura do artista renascentista Donatello “parmi les fauves”, ou seja, “entre as feras”.
Viralizou!
E a nova tendência foi batizada. Só que, para contrariar as “feras”, em outubro de 1900, um jovem pintor espanhol havia desembarcado em Paris e, como a maioria dos jovens artistas de vanguarda, se estabelecera em Montmartre.
Aqueles primeiros anos foram financeiramente desafiadores para todos os pintores, pois os seguidores de Pablo Picasso eram desesperadamente pobres e Henri Matisse e a sua turma, embora um pouco mais velhos e um pouco mais conhecidos e figuras já mais familiares no bairro, também sobreviviam com a corda no pescoço.
Há quase quarenta anos ficou-nos claro que, com certeza, estes dois gênios - Picasso e Matisse - e seus esforços para criar um novo vocabulário artístico ocuparam o centro do palco naquela virada de século, mas que é preciso conhecer os outros artistas que nesse script desempenharam os papéis coadjuvantes.
Embora o Fauvismo tenha sido um fenômeno de vida breve que durou apenas pelo tempo durante o qual os seus iniciadores lutaram para encontrar a liberdade artística da qual precisavam, durante a sua breve prosperidade o movimento teve alguns adeptos notáveis como Maurice de Vlaminck, André Derain, Raoul Dufy e Georges Braque, em sentido horário na figura abaixo:
Maurice de Vlaming - Le Seine à Chatou (1906) /  André Derain - Baigneuses (esquisse - 1906)  / Raoul Dufy, Régates à Cowes (1936) / Georges Braque - Paysage prés d'Anvers (1906)

Em Montmartre ficamos quase amigos íntimos dessa turma e muito aprendemos sobre os expoentes dessa revolução colorida. Descobrimos que Derain não se separava da cópia de uma pintura do Cristo Carregando a Cruz feita por Ghirlandaio e que Vlaminck mantinha na parede de seu estúdio, bem acima de seu cavalete, as Três Banhistas de Cézanne. E, ao fim e ao cabo, abstraímos porque todas as tendências se influenciaram.
Penso que mais importante e menos tedioso do que definir o Fauvismo é descobrir a obra dos heróis fauvistas executada na primeira década do século passado: lá estão a simplificação das formas desobedecendo a qualquer comando intelectual, a fuga da ilusão da trimensionalidade, a gestualidade espontânea, o ritmo livre das linhas, a continuidade fluída do desenho, a extenuante experimentação, a alegria de viver afrontando os cânones tradicionais da pintura.
Em Montmartre não foi preciso caçar essas “feras”. Naquelas paragens não tem como não cruzar o caminho de André Derain como descrito nos livros e pintado por Maurice de Vlaminck - alto e magro, todo vestido de branco com o seu inseparável cachimbo e, às vezes, uma boina vermelha.
Maurice de Vlaminck - portrait d'André Derain (1906) / André Derain - portrait de Maurice de Vlaminck (1905)

Nem como evitar esbarrar no prezado Maurice, como se auto retratou tantas vezes e como foi imortalizado por Derain - corpanzil, olhos azuis, cabelo e bigode ruivos, casaco verde, lenço vermelho no bolso da lapela e gravata espalhafatosa. Os rostos dos dois artistas nos encaram dos posters coloridos que enfeitam as vitrines e calçadas de Montmartre e as reproduções de suas obras mais famosas estão à venda por todos os lados do bairro.
Para quem contempla as telas dos “feras” fica claro como o sol do meio dia, por exemplo, o quanto eles foram influenciados pelo ardor passional no uso das cores de van Gogh, e pelo primitivismo de Gauguin ao inventar aquelas telas planas quase sem matizes explodindo em cores puras saídas direto das bisnagas de tintas. Foi com Matisse, Vlaminck e Derain que a cor perdeu as qualidades descritivas e tornou-se luminosa, criando a luz em vez de imitá-la.
E foi em Montmartre que ouvimos falar, pela primeira vez, de uma outra cidade querida pelos artistas, a minúscula Collioure, onde Matisse se refugiou no verão de 1905 para inventar o tal novo tratamento para a cor - já escorregando para o terreno emocional - e fez a luz suprimir as sombras na sua revolucionária pintura La Bonheur de Vivre - A Alegria de Viver! - que, por sua vez, inspirou os pincéis de Vlaminck nas paisagens e, especialmente, os de Derain nos seus famosos barcos de Collioure. Um deleite com o mero feitio das coisas que pode até não ser arte profunda, mas sem dúvida oferece prazer visual.
Henri Matisse - Le bonheur de vivre (1906) / Maurice Vlaminck - Restaurant "La Machine" at Bougival (1905) / André Derain - Bateaux à Collioure (1905)

Diante das telas luminosas e pontilhadas de Derain e Vlaminck a gente reconhece o distante parentesco dessas tintas com aquelas dos competentes impressionistas, que trabalharam intimamente alinhados e foram capazes de realizar oito exposições conjuntas entre 1874 e 1886. Assim, apesar de brilhantes dissidentes como Cézanne e van Gogh, eles ergueram o Impressionismo sobre colunas sólidas, diferentemente do que fizeram os fauvistas, que nunca chegaram a formar um grupo coeso e que, já em 1908, começaram a perder muitos adeptos para o cubismo.
Quem olha com atenção para as telas de André Derain e Maurice de Vlamink entende porque esses dois, os pintores co-fundadores do Fauvismo juntamente com Matisse, seguiram noutra direção pelas ruas de Montmartre, quando Braque e Picasso começaram a fazer suas coisas cubistas.
E descobre que, com o novo século, a história da arte deixara de seguir um único enredo. Novas experimentações e seus desenvolvimentos variados levaram os criadores à concorrência ou alavancaram rapidamente alianças mesmo dentro da pequena comunidade de artistas de vanguarda de Montmartre.
Braque e Derain, por exemplo, que apareceram na foto pela primeira vez como próximos colaboradores de Matisse na criação do Fauvismo, pouco tempo depois se distanciaram, mas não sem que Derain pintasse expressivamente o mestre.
André Derain - Henri Matisse (1905)

Com a idade André Derain conteve o seu ardor até atingir uma calma clássica mas enquanto foi “fera” mostrou uma veemência primitiva. Durante um certo tempo Derain e Vlaminck dividiram um ateliê e um interesse pela arte africana colecionando máscaras e estatuetas daquele continente. Essa moda de arte tribal começara mesmo com Gauguin, mas a digital africana também é evidente nas artes de Picasso e Matisse.
São desse período de convívio criativo diário duas das mais belas obras de Derain e Vlaminck, respectivamente A Ponte de Charing Cross e O Rio, que compartilham a mesma força vibrante e o uso desinibido das paletas. A ponte de Derain atravessa uma Londres estranhamente tropical, liberta das brumas, onde a majestade é Dona Cor.
André Derain - Charing Cross Bridge, London (1906) / Maurice Vlaminck - La Seine à Chatou (1908)

E O Rio do Maurice? Bem, Vlaminck se proclamava “primitivo”, e tinha mesmo um quê de “fera”, pelo menos no rigor sombrio de seus humores. Note que mesmo que esse rio pareça pacífico, sentimos uma tempestade aproximar-se (rsrs)
Depois do fervor fauvista, Derain acompanhou Braque e ainda entrou na órbita de Picasso antes de seguir seu próprio caminho. Braque afastou-se dos interesses fauvistas e, com o desenvolvimento do cubismo, tornou-se excepcionalmente próximo de Picasso.
É patente o quanto todos esses talentos deixaram suas influências nos trabalhos uns dos outros. Não nos surpreendemos vendo as cores brilhantes da água do mar de Collioure, pintadas por Derain, repetidas na composição vívida que Matisse cometeu na tela de nome Música...
Henri Matisse - La Musique (1910) / La Danse II (1910)

... em preparação intuitiva e já esboçando, sem saber, o design espacial e os padrões rítmicos e amplos que mais tarde deixou na sua imensa Dança.
É difícil narrar como as duas direções centrais da arte moderna surgiram. De uma forma muito simplista, pode-se dizer que Matisse estava interessado na cor e no espaço, enquanto Picasso se concentrava na linha e na forma. Na verdade, a direção artística tomada por Picasso pode ter sido, em parte, uma reação à ênfase de Matisse na cor, que pode muito bem ter despertado no toureiro a necessidade de se mover por uma estrada diferente.
Mas essa é uma outra longa e cubista conversa.


24/02/2018

Judas, cabra safado, ou não?

Almeida Júnior - O Remorso de Judas (1880)

Antonio Rocha
Trabalhei onze longos anos no campo das artes gráficas com os meus amigos e irmãos presbiterianos. Aprendi muito...
Belo dia um jovem pastor, que também era radialista e apresentava um programa em uma rádio evangélica carioca, de bastante sucesso, me contou:
- Fizeram uma paródia de um corinho evangélico, estou ensaiando com os jovens e todos estão adorando.
Pedi então que ele cantasse o hino para eu aprender. Sorrindo ele ensinou:
“Jesus morreu na cruz
Pelos nossos pecados
Judas o traiu
É um cabra safado.
Cabra safado
Cabra safado
Judas o traiu
É um cabra safado”.
Sucesso de público e de crítica. Assim que se ouvia, todos riam gravavam logo, por ser muito fácil a rima.
Agora vocês imaginem uma igreja lotada de jovens, mocidades como eles chamam. Todos de pé cantando o pequeno hino acima. Era uma bela cena de psicodrama*. Aliás, um dos sucessos do pentecostalismo e neo são esses cânticos das multidões. Verdadeira terapia.
Recomendava-se ainda: se você tem alguém que fez algo  contra você, te traiu, te prejudicou ou coisa parecida, esta é a hora coletiva da catarse. Lembra do fato, visualiza a pessoa e canta o corinho acima gesticulando com todo ardor.
Nessa hora não se pensa na Teologia, para saber se Judas Iscariotes traiu mesmo ou não. Eu, pessoalmente, acho que ele não traiu, ele não entendeu a mensagem do bom Jesus.
Já se sabe que Judas era um militante político, de um partido religioso da época, que pretendia libertar-se do jugo de Roma pela violência. Ele viu a pregação de Cristo e pensou que poderia juntar as duas coisas. Mas belo dia Jesus falou: 
- Meu Reino não é desse mundo.
E este é um dos motivos porque, na hora do julgamento de Jesus, diante do governador romano Pilatos, a população gritou e preferiu soltar Barrabás, que era “preso político” e tinha os mesmos ideais de Judas, tornar aquela região Independente do Império Romano.
Deste modo, Judas Iscariotes, não era traidor, nunca foi. Eu sempre refleti:
- Que triste sina a desse moço, nascer para trair Jesus, um homem tão bom...
Outro dia reproduzi no Facebook a entrevista de um conceituado escritor israelense, vivo, falando que os judeus  não consideram Judas um traidor, ao contrário, foi um grande herói pela independência de seu país.
No âmbito dos “Evangelhos Apócrifos” que a Bíblia não aceita, existe um volume chamado “O Evangelho de Judas” que os Espíritas também traduziram.
Aliás, por falar em Espiritismo, existe um livro ótimo que li ainda criança, do jornalista e radialista espírita José Fuzeira que realizou e publicou pela editora Eco, do Rio de Janeiro, o interessante “A Reencarnação de Judas Iscariotes como Joana D´Arc”.
Isso mesmo, o Espírito libertário de Judas Iscariotes renasceu na jovem francesa Joana D´Arc e ela ajudou a libertar a França, sendo hoje um dos ícones históricos daquela grande Nação.
A meu ver, Judas não é cabra safado, nunca foi.
(*) Psicodrama é uma terapia em grupo, onde os pacientes escolhem os seus papéis que vão desempenhar no contexto de determinada situação, com forte carga emocional. Criada por Jacob Levy Moreno (1889-1974), nasceu na Romênia e faleceu nos USA. Moreno era médico, psicólogo, filósofo e dramaturgo.


22/02/2018

Cinzas de sonhos





Ana Nunes

Acorda menina Colombina que o Carnaval já passou.

As serpentinas amassadas ganharam abrigo no confete espalhado pelo chão. E as cinzas da quarta-feira colorem o ar do novo dia.
A chuva mansa dessa noite de verão molhou seu rosto e escorreu a maquiagem. E fez do rímel escuro escorridas flores murchas na sua pele amanhecida.
Seus lábios de menina sonhadora esperaram em vão pelo Pierrô do outro carnaval que passou. Seus beijos docemente aguardados foram para outras bocas e no sonho de sonho e tesão a criança se desfez. Virou mulher. De real e desencanto.
O Pierrô dessa noite é outro e nem é seu. Cansado da noitada folia ele vasculha o salão ainda cheio, com mais de mil palhaços, em busca dos olhos do Arlequim. É um outro flerte. Foram outros beijos, no meio da multidão.

Agora é dia. Troque sua fantasia pela outra do recomeçar. Seus sapatos de salto e com buraquinhos para os dedos curiosos a esperam há dias. E seu laptop entediado espera ansioso por suas mãos aflitas.

Limpe seu rosto na água do banho. E deixe que essa água lave seu corpo esgotado do baile. E também, como um refill descartável, refaça seu coração machucado. Aproveite e chore um pouco. E as águas dos seus olhos se misturam a outras águas deste vasto mundo. E com novos sonhos, sua condição de existência, prepare seu real caminhar. Seque seus cabelos embaraçados que guardam ainda as cores do salão e alegre de vermelho vivo  sua boca triste. Acorde seus olhos sonolentos com um novo rímel para um novo dia.

Guarde com cuidado a máscara negra que esconde seu rosto. Reconstrua pouco a pouco as suas ilusões para o ano que virá. Guarde a saudade e sonhe suavemente o beijo prometido. Imagine pelos dias afora o Pierrô que virá arrebatar seus lábios e roubar o seu batom.

E quando voltar para casa depois de um dia cansativo deixe seus olhos se fecharem sonhando com a promessa de um novo Carnaval. Guarde a saudade e o beijo para então.
E não se leve a mal. Vai ser Carnaval.


20/02/2018

O GALO E A BARRICA - Uma ode em três capítulos (II)


II - O Rio de Janeiro de 1647
 
Jean Baptiste Debret - Entrada da Baía de Guanabara
Domingos Ferreira
Salvador Correia de Sá e Benevides era um gigante, uma figura mítica. Nos seus quarenta e poucos anos, sobrinho neto de Estácio de Sá, morava na meia-fortaleza construída pelo tio-avô no Morro do Castelo, ao fundar a cidade. Nascido na Espanha, era membro do Conselho Ultramarino, em Lisboa, aonde ia com frequência. Já cruzara a linha do Equador dezoito vezes, a serviço Del Rei e de seus próprios interesses. Trabalhador incansável, amealhara grande fortuna, por herança e tino comercial.
Era dono de imensas terras, dentre elas a grande ilha de Paranapuã, no fundo da baía, cujo nome fora mudado para Ilha do Governador, quando da doação a Salvador de Sá, o Velho, em 1570. Possuía engenhos de açúcar, com uma legião de escravos. Seu patrimônio fora multiplicado por casamento com Dueña Catalina de Ugarte y Velasco, descendente de vice-reis do Peru e do México, viúva de um “criollo” espanhol riquíssimo, fundador da Província de Tucumán. Ela herdara enormes latifúndios e interesses nas minas de prata de Potosi, nas alturas dos Andes. Salvador de Sá fora a Tucumán em 1631, em uma “bandeira”, e casara-se com ela, trazendo-a para o Rio.
O relatório sobre Luanda foi lido para o governador, pelo escrivão de bordo, logo após lauto jantar, ao início da tarde. Isso se passou em uma varanda, com ampla vista para a cidade e o fundeadouro, onde se destacava o “Príncipe Real”. Os dados apresentados criaram um consenso no grupo da urgência de nova e definitiva intervenção em Angola. A partir daí, passaram a tarde discutindo como efetivá-la.
Haveria bastante tempo para tratar do assunto. O “Príncipe Real” precisava de vários reparos, devido a avarias por forte mau tempo no final da travessia. Era também preciso descarregar grande quantidade de pólvora chinesa, encomendada por Salvador de Sá a Nuno, quando o navio passara no Rio, na ida para Macau. Ele ficou muito feliz ao saber do desempenho dela no combate com o navio holandês. Isso vinha ao encontro de sua intenção de executar a retomada de Luanda a partir do Rio.
Na realidade, o governador procedia como se as coisas fossem se encaminhar conforme esse desejo. Ele estava arregimentando e treinando homens para o empreendimento. De Vitória ao Rio da Prata, buscava navios e embarcações que pudessem participar. Fizera um empréstimo com judeus de São Vicente, para comprar armas vindas da França. A pólvora chinesa logo começou a ser desembarcada, junto com bastante pimenta do reino, para consumo da população.
As reuniões para discutir a reconquista de Luanda e ações decorrentes continuaram no Castelo, presididas por Salvador de Sá. Nuno e o bispo não demoraram a lhe falar sobre a conveniência da participação de Dom Fernando, de dentro de sua barrica. O governador, homem muito prático, encarou o assunto com grande curiosidade e concordou em participar das reuniões, desde que o horário fosse após a ceia.
Para complicar as coisas, o galo emudecera. Ele fora amarrado na varanda dos quartos de Nuno e D. Fernando. Estava triste e sem dar um pio. A solução, sugerida pelo bispo, seria trazer as galinhas de bordo, porém tinham sido devoradas pela tripulação. Então, montou-se um pequeno galinheiro na varanda e trouxeram fêmeas da criação de Dueña Catalina. Por coerência, eram galinhas d’Angola. Foi um sucesso. O garanhão encantou-se com a novidade e desandou a cantar e a cobrir as fêmeas desde o anoitecer. Antes de meia-noite, exausto, caía no sono até a manhã seguinte.
Assim, as reuniões passaram a ser após a ceia, com alguma resistência inicial de Dom Fernando, em sua barrica, pela mudança de rotina. Apesar disso, ele e o governador se entenderam muito bem desde o início. Os problemas em Macau e no Rio tinham grande semelhança, e foi inevitável a troca de ideias e experiências entre eles. Quanto a Luanda, crescia a preocupação com as indefinições da parte de Lisboa.
Isso mudou de vez alguns dias depois, com a entrada no porto do galeão “Nossa Senhora da Conceição” (700 tonéis, 42 canhões). O navio trazia uma Carta Régia para Salvador de Sá, ordenando-lhe reconquistar Luanda a partir do Rio de Janeiro. O rei dava ao governador plenos poderes para requisitar navios, convocar pessoal, adquirir armamento e munição, e obter todas as vitualhas necessárias ao cumprimento da missão. Além disso, Salvador de Sá divulgou já estar de posse de um Decreto Real, em que D. João IV o nomeava governador de Angola, a partir da retomada da colônia.
O “Na. Sra. da Conceição” viera participar da operação. Ele trazia notícia de outro galeão a chegar ao Rio, o “Marquês de Alorna”(400 tonéis, 32 canhões). Foram ainda despachadas as naus “N. Sra. das Dores”(800 tonéis, 12 canhões), e “Santa Fé”(600 tonéis, 10 canhões), com tropa de 200 portugueses, mosquetes e munição.Também viriam a caravela redonda “Sta. Maria”(300 tonéis, 10 canhões) e as caravelas “São José”(150 tonéis, 8 canhões) e “São Pedro”(120 tonéis, 6 canhões), com mercenários.
Uma carta do Conselho Ultramarino detalhava vários aspectos a considerar na operação. Ela informava ao governador que esses navios e a pouca tropa eram tudo que Lisboa pudera enviar. O restante necessário deveria ser obtido no Rio e vilas próximas. Salvador, na Bahia, estava excluída de participar, devido à ameaça holandesa em Recife. A carta ainda dispunha sobre os procedimentos, em caso de sucesso da operação. Dentre eles, determinava que os holandeses derrotados fossem embarcados em alguns de seus navios e levados para Lisboa, sob escolta. Os demais navios aprisionados seriam incorporados às forças vitoriosas, com nomes lusitanos.
A primeira reunião, após a chegada do “Na. Sra. da Conceição”, contou com seu comandante, o capitão Vasco de Noronha, devidamente alertado da presença de D. Fernando. As novidades eram muitas e boas, pelo que havia grande animação. As discussões entraram pela madrugada. Aproveitando a ocasião, Salvador de Sá comunicou ao grupo que, por suas novas atribuições, entendera-se com Nuno e requisitara o galeão “Príncipe Real” para integrar a força naval de retomada de Angola.
Seguiram-se meses de grande atividade. O grupo de navios fundeados em frente à cidade crescia a cada dia. O “Marquês de Alorna” entrou com uma grande urca holandesa, aprisionada nas proximidades da ilha da Madeira. Seria um bom reforço no transporte de pessoal e de material. Os reparos em tantos navios, após longas travessias, eram feitos no estaleiro montado por Salvador de Sá na ilha do Governador, para apoio a tumbeiros. Ficava na ponta do Galeão, assim chamada por ali ter sido iniciada a construção de um grande galeão, o “Padre Eterno”, que veio a ser tido como o maior navio do mundo à época, com quilha de 173 pés (53m), 2.000 tonéis de capacidade e dezenas de canhões.
A convocação e o preparo do pessoal foram intensificados. O Rio de Janeiro forneceu o maior número, boa parte com experiência militar. As vilas de São Vicente e São Paulo enviaram algumas centenas de homens armados com mosquetes e bestas e bem treinados. Chegaram voluntários do interior do Rio e, também, das vilas de Cabo Frio e Angra dos Reis. Muitos escravos, nascidos ou criados no Brasil, foram incorporados, com promessa de alforria. Os tupinambás, por influência jesuíta, apresentaram seus melhores guerreiros, com arcos, flechas, bordunas e lanças. A chegada dos 200 militares portugueses, comandados por um Sargento-Mor, viabilizou a estruturação de todo o contingente de desembarque e seu preparo final.
A pólvora chinesa foi distribuída aos navios artilhados. A munição dos canhões, de bolas de ferro de diferentes tamanhos, foi reforçada por centenas de outras bolas, feitas por artesões portugueses com granito de grande resistência, abundante na área. Mais leves que as de ferro, aumentavam o alcance dos canhões e seus fragmentos causariam muitas baixas no inimigo. Isso possibilitou aos navios exercitarem a artilharia dentro da baía, sob coordenação do capitão Nuno. Houve até uma competição entre eles, ganha pelo “Príncipe Real”, para grande orgulho da tripulação.
No dia 12 de maio de 1648, D. Salvador Correia de Sá e Benevides suspendeu do Rio de Janeiro, no comando de uma força-tarefa anfíbia, com a missão, dada por D. João IV, de reconquistar Angola para a coroa portuguesa, a fim de restabelecer o comércio de escravos em mãos lusas. Ela era constituída por 4 galeões, 3 naus, 1 caravela redonda, 2 caravelas, 2 urcas, 2 palhabotes e 1 pinaça . Nesses 15 navios, armados com respeitáveis 210 canhões de calibres diversos, havia 2.500 homens, dos quais 1.300 tripulantes e 1.200 elementos de tropa.
Contudo, tais números eram bem inferiores aos das forças navais, portuguesas e espanholas, no combate aos holandeses nas costas brasileiras, desde as invasões de Salvador, em 1624, e de Recife, em 1630. Mesmo após 1640, as forças portuguesas, lutando contra a Cia. das Índias nas proximidades do Brasil, eram bem mais poderosas.
A travessia para Luanda, em geral, foi com bom tempo, possibilitando exercitar os canhões. Entretanto, enfrentaram muito vento e mar grosso ao final, com as terríveis perdas do galeão “São Luiz”, com cerca de 420 homens, entre tripulantes e tropa, e de um dos palhabotes e também da pinaça, com mais 80 homens. O “Príncipe Real” era o capitânia, onde embarcaram D. Salvador de Sá, com o bispo de Goa, Dom Manuel, Dom Fernando, em sua barrica, e mais o galo, com as galinhas d’Angola. O governador dividiu a câmara com Nuno, trazendo três baús e uma rede para dormir. Assim, foram mantidas as conversas noturnas entre eles quatro, no quarto d’alva, por obra do galo.


18/02/2018

Alerta sobre a saúde


Francisco  Bendl

Eu vinha passando mal à noite por uns cinco ou seis dias ao final de janeiro e início deste mês.
Muita pressão no peito, como se um colega paquiderme tivesse sentado no meu peito sem permissão!
Diante da possibilidade de, mais uma vez de madrugada, o mal-estar se apresentar, meus dois filhos, que moram na capital do RS, vieram me buscar na cidade onde resido e me levaram para a Emergência do hospital Ernesto Dornelles, onde em 2015 eu fizera uma cirurgia renal.
Sexta-feira, véspera de feriadão, pois 2 de fevereiro é a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, portanto feriado, entrei na Emergência às 20:15h.
Diante do meu quadro clínico fui imediatamente levado à triagem para verificação da pressão arterial.
Media 19 X 5!
A bordo de uma cadeira de rodas compatível com o tamanho do paciente, uma réplica do A-380 de tantas rodas que possuía, levaram-me para radiografia de tórax;
Depois, exame de sangue;
Adiante, exame de urina;
Em seguida, um eletrocardiograma.
O meu Airbus sendo conduzido por um piloto e copiloto!!!
Então começou o martírio!
A médica plantonista não podia receitar qualquer medicamento porque precisava esperar pelos resultados dos exames, lógico e, o mais demorado, sangue, levaria três horas, no mínimo!
Eu não poderia sair da Emergência, onde havia várias cadeiras para pacientes que aguardavam pelos seus resultados também, aproximadamente vinte pessoas.
As mulheres eram a maioria.
Duas com muitas dores, e idade avançada;
Outra estava fora de si, sem saber onde se encontrava;
uma mulher jovem, bonita, corpo bem delineado, entre 35/38 anos, loura, se encolhia de dores no abdômen, dizendo a quem estivesse interessado que sentia o sofrimento há três dias, sem qualquer diminuição das dores nesse meio tempo.
No entanto, nos homens, via-se nitidamente quem buscasse a sua licença médica para aumentar os dias em casa!
Sorridentes, contando piadas, comigo incentivando a turma, claro, houve um momento que a enfermeira teve de pedir pelo silêncio, em face da altura das conversas!
Então, inevitavelmente, as análises que passei a fazer das pessoas, uma das minhas distrações, ainda mais quando à mercê de exames e frágeis pelas dores sofridas.
Sem querer apresentar um compêndio dos sentimentos de pacientes na Emergência de um hospital qualquer, a verdade é que o ser humano precisa antes de mais nada é de atenção!
Os cuidados recebidos, a gentileza no atendimento, o ar de preocupação exposto pelo corpo clínico com relação ao doente servem como impulso à cura, ainda mais quando o médico fecha a porta da saleta onde atende e passa a ouvir o paciente, e os motivos pelos quais os conduziram ao hospital.
O relato dos sintomas, dos problemas muitas vezes alheios às dores e sofrimentos - mas o simples prestar atenção do profissional pelo relato feito, atesto que é meio caminho andado para, depois com os remédios, a mulher ou homem saírem da Emergência livres de seus problemas físicos, como também uma injeção de ânimo para suas vidas mental e cotidiana para os próximos meses!
Minhas horas haviam passado, e eu aguardava ser chamado para ouvir o diagnóstico.
Três horas e meia depois, meia-noite alta, quase uma da manhã, a médica me chama junto com um dos meus filhos, e dispara:
- Temos de repetir o exame de sangue, agora com enzimas, de modo que eu perceba se durante a semana não sofreu pequenos infartos!
Não houve argumento da minha parte que ela cedesse, pois eu estava cansado, desesperado pela minha poltrona, fazer um lanche... nada, a médica parecia do Hezbollah, sem negociação!
Repeti o exame, mais o eletro, e tratei de me preparar física e psicologicamente para a espera de mais quatro horas, praticamente!
Comecei a caminhar pela Emergência, um longo corredor com salas laterais para exames e, às da frente, para os médicos.
No meio, uma sala com poltronas reclináveis para os pacientes à espera de leitos, que iriam baixar porque o estado que se encontravam requeria o hospital, e não o ambulatório.
Cansado, iniciei uma conversa com a enfermeira responsável pelos pacientes que ficariam internados, pois a intenção era uma das poltronas para eu me recostar.
Esperta, apenas com o olhar, a Rafaela me aponta uma das que estavam vazias, dando a entender que eu a aproveitasse antes de ser ocupada.
Não era o que eu precisava.
A poltrona era ótima mas, o pessoal, a maioria gemia de dor, alguns ainda roncavam(!), dois ou três imploravam por analgésicos para diminuir as dores!
Voltei à incursão pela Emergência, e onde eu encontrava alguém meio que trabalhando pela metade, lá eu começava a contar as minhas peripécias ao longo dos meus sessenta e oito anos de vida!
Perto das 6 horas, 10 dentro da Emergência, a mesma médica me chama e nos transmite o resultado, agora eu acompanhado do segundo filho, pois ambos ficaram ao meu lado ininterruptamente:
- Seu Chicão, exclamou com um semblante sério, o senhor tem problemas cardíacos, e graves. Válvulas comprometidas pela calcificação, o coração muito maior do que deveria, e a sua "fração de ejeção" muito lenta.
- Fração de ejeção?!, perguntei curioso.
- Sim, significa que o lado direito do seu coração não está funcionado a contento, então o cansaço, a lentidão no caminhar e a respiração ofegante.
Pressão em 19,6 X 5,8!!!
Às 7 horas saímos do hospital, quase 12 depois que dei entrada, mas com vários exames prontos para fazer o último deles, o tal do Ecocardiograma Unibidimensional com Doppler!
A sorte que este exame eu iria fazê-lo somente em dia útil, pois um serviço terceirizado dentro do próprio hospital, mas com marcação antecipada.
O resultado confirmou a baixa fração de ejeção, que dificulta o funcionamento do coração, pois quanto maior melhor, e não conforme se apresenta o meu, velho, cansado, quase arriado pelas batalhas enfrentadas ao longo da vida.
Descrevi essa jornada para alertar aos meus amigos e leitores deste blog extraordinário, que se cuidem!
Antes que tenham que enfrentar um calvário como o que estou enfrentando.
Melhor diminuir, antes disso, a quantidade do churrasco, da maionese, da macarronada, do refrigerante, daquilo tudo que é gostoso mas em excesso leva a gente a isso.
De fato, a saúde é muito preciosa, mais do que imaginamos, a ponto de haver um ditado que diz o seguinte:
Se queres valorizar a saúde, visita um hospital com suas emergências, UTIs, salas de operação, locais para exames os mais variados e exóticos;
Se queres dar valor à vida, volta e meia visita teus antepassados no cemitério;
Se queres compreender e enaltecer a liberdade, visita um presídio qualquer!
Um grande abraço a todos.
Muita saúde, por favor, e muita paz!