III – A Retomada de Angola
Domingos Ferreira
A terra
angolana foi avistada ao amanhecer, oito semanas após a saída do Rio. A aproximação
foi rápida, com mar e vento favoráveis. As caravelas passaram para a testa do
grupo, com o galeão capitânia logo atrás, para maior segurança na aterragem. Tomaram
rumo norte e navegaram paralelo à costa, buscando identificar alguma referência
de posição, o que só ocorreu no dia seguinte. Tinham avistado a pequena baía,
onde o “Príncipe Real” lançara o pessoal para obter informações sobre o
inimigo, na ida para o Rio. Ali, os navios amainaram os panos e fundearam.
Uma reunião ocorreu
na câmara do navio capitânia, naquela mesma noite. Salvador de Sá queria
inteirar-se da situação dos navios e da tropa e acertar as últimas
providências. Além dos comandantes e do sargento-mor, estava presente o bispo
D. Manuel. Os assuntos referentes ao desembarque e ao cerco e tomada de Luanda
foram tratados com o detalhamento necessário. Havia uma grande preocupação em
manter a tropa sempre unida, para evitar que contingentes isolados caíssem nas
mãos de nativos antropófagos, aliados dos holandeses, como ocorrera em 1645.
Tudo
esclarecido e acertado, Salvador de Sá passou a palavra ao bispo para rezar
pelo sucesso da operação e abençoar os presentes. Antes de ter início a
invocação, o galo cantou e a figura de D. Fernando se materializou, com meio
corpo fora da barrica, para grande susto dos que o desconheciam. Ele foi
saudado por Salvador de Sá com uma reverência. O bispo o chamou pelo nome e
cargo que exercera e atribuiu sua presença a desígnios divinos, sinalizando com
a vitória na retomada de Luanda.
D. Fernando,
que acompanhara atentamente as discussões, tomou a palavra e emocionou a todos
ao lembrar-lhes o desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de
Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578. Ressaltou ainda que tal sacrifício, na
defesa dos interesses portugueses no continente africano, deveria norteá-los na
luta a ser travada nos dias seguintes. A seguir, o bispo prosseguiu com as
orações, acompanhado piedosamente por todos. A benção final ocorreu entre vivas
entusiasmados a Portugal, a D. Sebastião e a El-Rei D. João IV, cujo refrão era
“Jesus, São Tomé, Ave Maria!!!”
A concepção
do ataque a Luanda era simples. A maior parte da tropa iria desembarcar pela
manhã e marchar sobre a vila, de modo a alcançá-la na madrugada seguinte. Seus
segmentos deveriam se posicionar para cercá-la, impedindo o contato dos
moradores com o interior da região. A movimentação dos navios se daria após o
desembarque da tropa, de modo a amanhecerem em frente à Luanda. O bombardeio dos
fortes e dos navios artilhados no porto teria início a um sinal do capitânia. O
casario seria o alvo seguinte, se necessário. Esperava-se surpresa total do
inimigo.
Contudo, a
movimentação da tropa alertara a população da vila e, na manhã de 12 de agosto
de 1648, Salvador de Sá foi recebido pela artilharia dos dois fortes e dos
navios fundeados. Porém, o tiro deles, curto e desregulado, facilitou o
posicionamento dos navios invasores fora de seu alcance. A resposta da bem
treinada força naval lusa foi devastadora. Os canhões inimigos foram calados,
um a um, naquele mesmo dia. Nenhum navio português foi atingido. A pólvora
chinesa valera mais uma vez.
Após uma
tentativa de negociação frustrada, no dia seguinte foi realizado um assalto da
tropa aos fortes, onde os holandeses haviam se recolhido. Sua violenta reação
surpreendeu os portugueses, causando-lhes mais de uma centena de mortes e
muitos feridos. Como resultado, o cerco por terra e o bloqueio por mar
estacionaram. Isso beneficiaria os holandeses, que aguardavam o retorno de
metade de seu contingente, enviado para atacar um enclave luso em Massangano,
resistente a eles desde sempre.
Esse quadro
só mudou com o apoio da tribo Zimba, inimiga dos canibais Jagas, e chefiada
pela astuta rainha Malili. Ela preferia negociar escravos com os lusitanos em
vez de holandeses, pelos quais se sentia destratada. Além disso, uma de suas
filhas se unira a um português, o Jacinto, e lhe deram três netos. Por sorte,
seus guerreiros interceptaram os mensageiros dos inimigos sitiados em Luanda,
com instruções para seu contingente no cerco a Massangano retornar com
urgência.
Além disso,
o incansável Salvador de Sá montara uma “ruse
de guerre” para enganar os inimigos. A tropa lusa restante a bordo e os
artilheiros foram mantidos nos conveses, enquanto fosse dia, em constante
movimentação, com bandeiras e estandartes, ao som de tambores e cornetas. Com
isso, os inimigos se convenceram da existência de um grande contingente
português pronto a desembarcar.
Esse fato,
somado à ausência dos seus reforços e à artilharia destruída, levou os
holandeses a se renderem poucos dias depois, quase sem luta, quando concluíram
não poder mais romper o bloqueio. As condições da rendição os autorizavam a
enviar seus tumbeiros para os portos de destino, com cerca de dois mil
escravos. Foi-lhes ainda concedido manter bandeiras e estandartes, após
entregarem armas e munições.
Dom Salvador
Correia de Sá e Benevides entrou vitorioso em Luanda, em 24 de agosto de 1648,
seguido por seus capitães, o ex-bispo de Goa, vários padres jesuítas, e os
burocratas para a administração da colônia retomada. Alguns dias depois, o
fidalgo holandês, Mauritius van der Haagen, delegado da Companhia das Índias
Ocidentais , transmitiu-lhe o cargo de governador de Angola, em cerimônia na
praça de Luanda, com as honras das tropas portuguesa e holandesa. Salvador de
Sá ficou em Luanda até julho de 1651, quando voltou ao Rio de Janeiro, que
ainda governou de 1660 a 1662.
O “Príncipe
Real” escoltou até Lisboa os navios apreendidos que transportavam os derrotados
holandeses. Eram duas naus e três urcas, abarrotadas de gente. Os demais foram
incorporados à força portuguesa, com nomes lusos, o menor deles chamado “Rainha
Malili”. A câmara do capitão Nuno voltou à rotina de conversas entre ele, D.
Manuel e D. Fernando, na barrica. Elas eram menos frequentes, pelo cansaço de
todos, inclusive do galo. Os assuntos ficaram mais amenos, após a euforia da
vitória. Havia um tom de nostalgia, em especial ao abordarem o destino final do
ilustre falecido.
O aguerrido “Príncipe
Real” entrou no Tejo, com suas presas, após oito semanas de mar, em que rijos
alíseos os forçaram a orçar até os Açores, para ganhar barlavento em demanda a
Lisboa. Houve uma grande celebração na capital, festejando a reconquista de
Angola. O capitão Nuno, o bispo D. Manuel, o ex-governador D. Fernando, em sua
barrica, e o galo, foram hospedados no Paço da Ribeira. Celebrou-se um “Te Deum”
na Capela Real. O rei D. João IV ordenou Nuno como “Cavaleiro da Ordem de
Cristo”, em cerimônia no Grande Salão, na presença do Conselho Ultramarino e de
toda a corte.
Passados
alguns dias, a barrica, com D. Fernando, foi embarcada em um palhabote, o “Santa
Mãe de Deus”, que suspendeu para o Porto, com Nuno, o bispo D. Manuel e o galo
a bordo. Naquela cidade, transferiram-se para um “barco rabelo”, adequado à
navegação no Douro, e seguiram rio acima. Passaram pelo belo por do sol da
região de Chamadouro, e atingiram a foz do afluente Côa, no qual navegaram até
os contrafortes da serra da Estrela. As últimas dez léguas, até a vila de
Belmonte, incluíram vencer a serra, só possível em mulas e num forte carro de
boi.
O
enterramento do corpo do fidalgo Dom Fernando de Souza Álvares, governador de
Macau e tio do capitão Nuno de Noronha Álvares, finalmente ocorreu na terra
natal de ambos. A população de Belmonte compareceu em peso, em homenagem ao
filho ilustre, descendente do grande Pedro Álvares Cabral. O milenar cemitério,
em terraço sobre o vale do rio Zêzere, abrigava romanos, visigodos, sarracenos,
bretões, gauleses, normandos, espanhóis e os valorosos descendentes de todos
eles, os portugueses, destemidos descobridores do mundo. O oficiante foi o
amigo do falecido, bispo D. Manuel de Castello Branco, nascido na cidade
próxima de mesmo nome, com jurisdição sobre a vila de Belmonte.
O galo,
empoleirado na barrica vazia, no carro de boi, a tudo assistiu em silêncio,
tendo o vasto horizonte da terra lusitana ao redor. A barrica, refinada peça da
marcenaria chinesa, foi zelosamente guardada em uma pequena capela, dedicada a
Nossa Senhora dos Navegantes, nas proximidades de Belmonte. Junto a ela, dentro
das mais cultuadas tradições lusas, foram postadas a imagem da Virgem e a
lamparina, retiradas da câmara do valoroso galeão “Príncipe Real”.
Todos esses
fatos notáveis entraram para o folclore regional. Daí, foi criada a figura do “galo
de barrica”, em metal, encarapitado nos telhados, com olhar desafiador para o
futuro, ou em loiça, no aconchego das casas das altas terras beirãs da Serra da
Estrela e cercanias.
Nuno
e seu galo retornaram à vida aventurosa dos sete mares. Isso durou até o bravo
capitão, em uma escala em Salvador, cair de amores por Filomena, ou Nhá Filó,
mulata baiana de olhos verdes, de puro feitiço. Tiveram nove filhos, com muitos
Álvares descendentes neste imenso Brasil, O galo abrasileirou-se de vez, como
seu dono, e escapou da panela. Morreu de velho, feliz, em permanente
miscigenação com galinhas soteropolitanas, na chácara de Nuno, no Rio Vermelho.
De
frente para o mar...