Lisboa vista de cima - fotografia Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
A simpatia
do pessoal de terra combinava com a manhã ensolarada que iluminava o aeroporto.
Nenhum sinal de nevoeiro, um dos problemas que afetam a região do Porto e
atrapalha o tráfego aéreo de vez em quando. Em poucos minutos, meu procedimento
de embarque estava resolvido.
Ainda
restava algum tempo até a hora do voo e caminhei pelas lojas sempre iguais às
de qualquer aeroporto internacional ao redor do mundo. Tempo para fazer
comparações de preços depois da conversão das moedas e descobrir que tudo fica
caro com um fator de quatro e tais para um.
Mais
adiante, um café sempre bem-vindo, ainda mais quando há inverno lá fora,
visível pelas vidraças enormes que também revelavam a movimentação dos aviões
na pista. E num canto mais afastado, a agradável surpresa de um duo de
instrumentistas, piano e violino, tocando bem belos standards. Inclusive da bossa nova.
Lembrei do
mesmo voo, que havia feito duas semanas antes para uma reunião que um amigo
havia marcado em Lisboa. Íamos tomar um café na calçada central da Avenida da
Liberdade, colocar os assuntos em dia, falar de negócios. Ele também queria me
apresentar um músico angolano.
Naquela
outra manhã, uma família representada por três gerações já se destacava ao
redor do portão de embarque. Falando alto, rápido e sem parar. Em castelhano.
Gerando uma inquietação incomum para a quietude dos demais.
No movimento
de embarque, terminaram ficando para trás. Eram oito, adultos e crianças. Ao
entrar no avião provocaram uma pequena confusão tentando passar logo pelos
outros passageiros que se acomodavam. O patriarca exasperou-se com o comissário
de bordo, pois havia pedido para que ficassem todos juntos, numa dessas
bobagens que se tornam ainda mais tolas num voo de uma hora.
Ouviu do rapaz
que aquele era um problema que deveria ter sido resolvido no check-in, e estava
claro que a grosseria inicial matou qualquer possibilidade de ajuda a bordo.
Quando
percebeu que exatamente ele ficaria sozinho, na parte de trás, o velho
patriarca resolveu pedir a um senhor que estava na fileira quatro para trocar
de lugar com ele. O homem estava nitidamente irritado com aquela movida sem sentido e negou.
O patriarca
ironizou a negativa com o que parecia ser seu genro. O outro senhor levantou –
e não parava mais de levantar, era enorme – e perguntou, com um fortíssimo
sotaque lusitano na voz de trovão:
– Qual é o
teu problema, hein? Acaso não percebes que estás a atrapalhar a todos? Não tens
vergonha de agir como um puto?
Sentado na
fileira cinco, levei alguns centésimos de segundo quase eternos para me dar
conta de que “puto” é apenas “menino” na linguagem lusa, enquanto a adrenalina
baixava na mesma proporção em que o velho patriarca, sem dar um pio, se afastou
em busca do próprio assento no fundo do avião.
O turboélice
franco-italiano partiu quase lotado. E pelo menos na primeira meia hora aqueles
passageiros infernizaram a vida de todos, falando aos gritos – o barulho dos
motores era intenso – para conversarem todos com todos, apesar da distância
entre suas poltronas nas fileiras três e quatro.
Até que duas
das crianças, ali na faixa entre oito e dez anos – deram mostras amplas da
crise de autoridade dos pais de hoje. A menina só reagia quando provocada pelo
irmão. Mas o menino era difícil, do tipo irritante, provocante, pedindo coisas
impossíveis, que não estavam no voo – suco de tomate, hambúrger, sinal de
internet num avião daquele porte... E a mãe entrando em parafuso, falando aos
gritos e quase na velocidade da luz, cada vez mais irritada. E irritante!
As duas
crianças foram ameaçadas de castigos pelos parentes, vã tentativa para que se
comportassem. Até que o menino foi longe demais no tom de voz e na ameaça ao
homem jovem do grupo. Desrespeitoso a valer, boca suja com gosto.
De novo,
entrou em ação o homenzarrão com sotaque lusitano e voz de trovão, que levantou
e foi até a poltrona do casal de crianças.
– Ó puto, já
chega por hoje! E vocês todos, chega! Já incomodaram imenso desde o embarque!
Será que não têm um mínimo de educação?
Não fosse o
barulho dos dois motores, seria possível ouvir qualquer inseto mudo passando
por ali, estivesse dentro ou fora da fuselagem. Ninguém ousou qualquer reação,
havia um quê de autoridade indignada no velho senhor difícil de enfrentar –
faltou pouco para o patriarca daquela família agradecer não ter havido a troca
dos assentos que pretendia; lá atrás estava tudo sossegado.
Na verdade,
muito mais do que grosseria, ali aquele velho senhor enorme já falava por
todos. Ficou no ar a impressão de que o português estava agindo como educador,
apresentando o velho, bom e cada vez mais negligenciado limite, que todos
naquele grupo inegavelmente precisavam.
Um pegou
algo para ler, outra tratou de olhar a paisagem na janela. Os meninos
terminaram cochilando. A matriarca baixou a cabeça, fechou os olhos e apoiou a
testa no punho fechado. A paz foi restabelecida.
De repente,
nos minutos finais do voo, o menino quebrou o silêncio, eufórico na janela,
gritando “una cancha, una cancha!”,
apontando freneticamente como se enxergasse messis e ronaldos correndo atrás da
pelota. “Otra, otra!”, estupefato,
sem entender que há apenas uma pequena distância entre os estádios do Benfica e
do Sporting. Desanuviou o ambiente.
Voltei ao
presente com a chamada do embarque. O voo daquele dia estava absolutamente
tranquilo, poucos passageiros, um perfil mais executivo, todos absortos em seus
próprios interesses. Nada de famílias estrangeiras em férias.
Vi o
Atlântico majestoso e calmo lá embaixo, como um tapete azul garantindo
estabilidade ao pequeno avião. Daquela altura, contornos muito distantes de
barcos e navios. Um veleiro singrava com a nobreza de suas duas velas brancas
plenas de ar.
Mais ao
longe, algo que me pareceu um submarino – pensei em consultar meu querido amigo
almirante para saber se aquilo era possível ou simples delírio de um ignorante
dos mares. Generoso e delicado, ele certamente me diria que era possível, pois
ali é rota para o Mediterrâneo e diversas marinhas nacionais podem trafegar na
região, com a devida permissão de Portugal.
A chegada
sobrevoando a cidade linda, seus monumentos passando debaixo de nós, a luz
quase sobrenatural de Lisboa num dia de sol, as cores estalando no famoso
contraste dos tons que encanta há séculos.
De novo, eu
avistava a foz do Tejo, as pontes 25 de Abril (a irmã da Golden Gate de San
Francisco) e a Vasco da Gama. A lendária e hoje pequenina Torre de Belém, na
margem direita do rio, ponto de partida das grandes navegações portuguesas que
redesenharam o mundo moderno. Também à vista, o Mosteiro dos Jerónimos e o
trecho de rua onde são servidos os pastéis irresistíveis, de fama mundial.
Mais
adiante, os dois estádios magníficos, palcos de uma das rivalidades mais
antigas do futebol europeu. Lembrei do menino de uma semana antes, inebriado
pela paixão pelo fútbol. E o casario
de Lisboa, cantado em verso, prosa e cores pelos artistas do mundo.
Lisboa trata
o sorriso como patrimônio. É bom não esquecer, deve ser item obrigatório na
bagagem.
O Autor, Sr. HERALDO PALMEIRA, em bela narrativa, nos conta duas viagens aéreas do Porto para Lisboa, espaçadas de duas semanas.
ResponderExcluirA primeira viagem, toda ela perturbada por uma Família Castelhana indisciplinada composta de três Gerações, cujas duas Crianças, especialmente o Menino irritava todo mundo com seu comportamento.
Até que um senhor estranho se levantou, passou-lhes um belo sermão e colocou " ordem na casa".
Na segunda viagem, tudo correu normal e o Sr. HERALDO PALMEIRA faz o elogio de Lisboa, essa histórica cidade capital de nossos Pais Portugueses.
E lá, em Lisboa, os nossos Pais Portugueses tratam o Sorriso como Patrimônio. Povo simpático de um País Histórico.
Sabe como poucos contar uma Estória, o Sr, HERALDO PALMEIRA.
Abração.
Flávio,
ExcluirObrigados por suas palavras gentis. Fiz apenas um relato justo do que vi em Portugal, neste caso no caminho Porto-Lisboa. Abraço.
Heraldo, mais uma boa história que nos faz desejar que o velho senhor português fosse alguém, estilo super-herói das histórias em quadrinhos, que viajasse o tempo todo pelo mundo colocando uma bem vinda ordem nos mal educados que encontramos mais vezes do que gostaríamos nos voos.
ResponderExcluirE que é também um tributo ao seu Portugal reencontrado com a bela frase "Lisboa trata o sorriso como patrimônio. É bom não esquecer, deve ser item obrigatório na bagagem"...
Mano,
ExcluirSim, o mundo carece de muitos daqueles senhores nas viagens. Ainda bem que Lisboa trata o sorriso com item de bagagem.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirUma bela crônica que nos brinda mais uma vez com a agudeza do seu olhar. Você me fez dar um pulo na nossa t’rrinha onde se sorri e se conversa em português castiço no qual, invariavelmente, todas as partes concordam umas com as outras em gênero , número e grau e são pontuadas por coisas fora de moda como , “por favor, muito obrigado, meu senhor, minha senhora, bom dia, boa tarde, boa noite e com a vossa licença”.
De resto viva os limites!
Hoje as crianças são educadas sem os traumatizantes “nãos”, em ritmo de teorias modernosas de “negociação” contínua. Ou seja, se os moleques querem algo impossível lhes oferecem outro objeto de consumo mais adequado. E pronto! Enquanto que nós estamos carecas de saber - como o velho senhor lusitano aí em cima! - que ainda não inventaram uma palavra mais libertadora e/ou educativa do que um inegociável NÃO!, em maiúsculas e seguido por um ponto final.
Quando à estupenda vista aérea, não é a minha preferida. Explico: apesar do imenso afeto que tenho pela bela Lisboa - e apesar de já ter fotografado os estádios do Sport e do Benfica (rsrs) - essa visão para mim é a da despedida enquanto que o Porto e as suas pontes que não me canso de fotografar das alturas, significam chegada, reencontro e que a festa vai começar, pá!
Saudades desse Portugal tão bem rascunhado pela sua BIC!
Abração
Caríssimo,
ExcluirSim, os tugas são educadíssimos e nos permitem matar saudades de um tempo onde aqui era assim, havia lugar para bons modos.
Hoje, é como se as crianças fossem largadas à própria sorte, cabendo aos pais tercerizar (a parentes ou a estranhos) sua incompetência em educar.
"Não" e "negociação" até rimam, mas não dá para compor uma boa melodia com rimas pobres.
Porto ou Lisboa, nunca enxergo despedida, apenas um até breve. E vou guardando as imagens como se fossem geradas não por cliques de câmera, mas por um piscar de olhos de quem vai voltar logo, uma e tantas vezes. Oxalá, sempre gastando tinta da velha Bic. Abração.
Estimado Heraldo,
ResponderExcluirCrianças e adultos mal educados, são muito desagradáveis ...
Dentro de um pequeno avião, são insuportáveis !!!
Essa "educação moderna" não impõe limites.
Vai produzir uma geração de gente "cheia de razão" !!!
Sergio,
ExcluirE cada vez mais vão ficando piores!
Olá Heraldo,
ResponderExcluirLi seu texto em palavras com sotaque nordestino. Muito bom, o texto e o sotaque. Adorei!
O grandão que não parava de se levantar me lembrou o FBendl. Ainda mais com a voz de trovão. Talvez ele desse a mesma bronca.
Os portugueses são mesmo educados. E tradicionais. Mas quando estive lá fiquei com a impressão que andavam com um determinado palavrão na boca pronto para sair. Só outro dia conversando com a minha irmã internacional fiquei sabendo que não é o palavrão mas uma expressão muito usada. Não me lembro qual.
Fiquei um bom tempo com a imagem das "cores estalando no famoso contraste dos tons" rodando não sei se no pensamento ou no coração.
Até mais.
Ana,
ExcluirO grandão deu a bronca que todos gostaríamos de ter dado; indispensável naquela circunstância.
É muito bom conviver com os portugueses, sempre amáveis e disponíveis.
As cores que estalam no contraste são mesmo danadas. Às vezes, nem mesmo eu sei de onde tiro essas coisas. Até mais.
Bela crônica meu caro!! O Brasil esta precisando de vários homenzarrões como estes!! Colocar ordem nessa desordem! Abraços!
ResponderExcluirObrigado, meu caro. Sim, estamos mesmo precisados. Abraço.
ExcluirAmigo Heraldo
ResponderExcluirNão gosto de viajar de avião. Piloto o tempo todo.
Mesmo assim, quando tenente, pensei em optar pela aviação naval, entusiasmado com a chegada do porta-aviões NAe "Minas Gerais".
Entretanto, desisti a pedido de minha saudosa mãe, apavorada com a ideia. De fato, ela tinha toda razão, ou intuição. Em pouco tempo, perdi três colegas em acidentes com os aviões da Força Aeronaval, fruto da inexperiência com a atividade.
Por essa e outras razões, escolhi a especialização em submarinos, a qual também tem elevados riscos operacionais, porém já existia desde 1914 em nossa Marinha.
A propósito, estou preparando um texto a respeito da irreparável perda do submarino argentino "San Juan" desaparecido em violento temporal no Atlântico Sul.
Em breve, vou enviá-lo para nosso blog.
Um abraço apertado
Domingos
Domingos,
ResponderExcluirAinda bem que sua mãe lhe manteve na água. E eu tive a sorte de navergar sob seu comando um belo sonho náutico em Nau Capitânia.