II - O Rio de Janeiro de 1647
Domingos Ferreira
Salvador
Correia de Sá e Benevides era um gigante, uma figura mítica. Nos seus quarenta
e poucos anos, sobrinho neto de Estácio de Sá, morava na meia-fortaleza
construída pelo tio-avô no Morro do Castelo, ao fundar a cidade. Nascido na
Espanha, era membro do Conselho Ultramarino, em Lisboa, aonde ia com frequência.
Já cruzara a linha do Equador dezoito vezes, a serviço Del Rei e de seus
próprios interesses. Trabalhador incansável, amealhara grande fortuna, por
herança e tino comercial.
Era dono de
imensas terras, dentre elas a grande ilha de Paranapuã, no fundo da baía, cujo
nome fora mudado para Ilha do Governador, quando da doação a Salvador de Sá, o
Velho, em 1570. Possuía engenhos de açúcar, com uma legião de escravos. Seu
patrimônio fora multiplicado por casamento com Dueña Catalina de Ugarte y
Velasco, descendente de vice-reis do Peru e do México, viúva de um “criollo” espanhol riquíssimo, fundador
da Província de Tucumán. Ela herdara enormes latifúndios e interesses nas minas
de prata de Potosi, nas alturas dos Andes. Salvador de Sá fora a Tucumán em
1631, em uma “bandeira”, e casara-se com ela, trazendo-a para o Rio.
O relatório
sobre Luanda foi lido para o governador, pelo escrivão de bordo, logo após
lauto jantar, ao início da tarde. Isso se passou em uma varanda, com ampla
vista para a cidade e o fundeadouro, onde se destacava o “Príncipe Real”. Os
dados apresentados criaram um consenso no grupo da urgência de nova e
definitiva intervenção em Angola. A partir daí, passaram a tarde discutindo
como efetivá-la.
Haveria
bastante tempo para tratar do assunto. O “Príncipe Real” precisava de vários
reparos, devido a avarias por forte mau tempo no final da travessia. Era também
preciso descarregar grande quantidade de pólvora chinesa, encomendada por
Salvador de Sá a Nuno, quando o navio passara no Rio, na ida para Macau. Ele
ficou muito feliz ao saber do desempenho dela no combate com o navio holandês.
Isso vinha ao encontro de sua intenção de executar a retomada de Luanda a
partir do Rio.
Na
realidade, o governador procedia como se as coisas fossem se encaminhar
conforme esse desejo. Ele estava arregimentando e treinando homens para o
empreendimento. De Vitória ao Rio da Prata, buscava navios e embarcações que
pudessem participar. Fizera um empréstimo com judeus de São Vicente, para
comprar armas vindas da França. A pólvora chinesa logo começou a ser
desembarcada, junto com bastante pimenta do reino, para consumo da população.
As reuniões
para discutir a reconquista de Luanda e ações decorrentes continuaram no
Castelo, presididas por Salvador de Sá. Nuno e o bispo não demoraram a lhe
falar sobre a conveniência da participação de Dom Fernando, de dentro de sua
barrica. O governador, homem muito prático, encarou o assunto com grande
curiosidade e concordou em participar das reuniões, desde que o horário fosse
após a ceia.
Para
complicar as coisas, o galo emudecera. Ele fora amarrado na varanda dos quartos
de Nuno e D. Fernando. Estava triste e sem dar um pio. A solução, sugerida pelo
bispo, seria trazer as galinhas de bordo, porém tinham sido devoradas pela
tripulação. Então, montou-se um pequeno galinheiro na varanda e trouxeram
fêmeas da criação de Dueña Catalina. Por coerência, eram galinhas d’Angola. Foi
um sucesso. O garanhão encantou-se com a novidade e desandou a cantar e a
cobrir as fêmeas desde o anoitecer. Antes de meia-noite, exausto, caía no sono
até a manhã seguinte.
Assim, as
reuniões passaram a ser após a ceia, com alguma resistência inicial de Dom
Fernando, em sua barrica, pela mudança de rotina. Apesar disso, ele e o
governador se entenderam muito bem desde o início. Os problemas em Macau e no
Rio tinham grande semelhança, e foi inevitável a troca de ideias e experiências
entre eles. Quanto a Luanda, crescia a preocupação com as indefinições da parte
de Lisboa.
Isso mudou
de vez alguns dias depois, com a entrada no porto do galeão “Nossa Senhora da
Conceição” (700 tonéis, 42 canhões). O navio trazia uma Carta Régia para
Salvador de Sá, ordenando-lhe reconquistar Luanda a partir do Rio de Janeiro. O
rei dava ao governador plenos poderes para requisitar navios, convocar pessoal,
adquirir armamento e munição, e obter todas as vitualhas necessárias ao
cumprimento da missão. Além disso, Salvador de Sá divulgou já estar de posse de
um Decreto Real, em que D. João IV o nomeava governador de Angola, a partir da
retomada da colônia.
O “Na. Sra.
da Conceição” viera participar da operação. Ele trazia notícia de outro galeão
a chegar ao Rio, o “Marquês de Alorna”(400 tonéis, 32 canhões). Foram ainda
despachadas as naus “N. Sra. das Dores”(800 tonéis, 12 canhões), e “Santa
Fé”(600 tonéis, 10 canhões), com tropa de 200 portugueses, mosquetes e
munição.Também viriam a caravela redonda “Sta. Maria”(300 tonéis, 10 canhões) e
as caravelas “São José”(150 tonéis, 8 canhões) e “São Pedro”(120 tonéis, 6
canhões), com mercenários.
Uma carta do
Conselho Ultramarino detalhava vários aspectos a considerar na operação. Ela
informava ao governador que esses navios e a pouca tropa eram tudo que Lisboa
pudera enviar. O restante necessário deveria ser obtido no Rio e vilas
próximas. Salvador, na Bahia, estava excluída de participar, devido à ameaça
holandesa em Recife. A carta ainda dispunha sobre os procedimentos, em caso de
sucesso da operação. Dentre eles, determinava que os holandeses derrotados
fossem embarcados em alguns de seus navios e levados para Lisboa, sob escolta.
Os demais navios aprisionados seriam incorporados às forças vitoriosas, com
nomes lusitanos.
A primeira
reunião, após a chegada do “Na. Sra. da Conceição”, contou com seu comandante,
o capitão Vasco de Noronha, devidamente alertado da presença de D. Fernando. As
novidades eram muitas e boas, pelo que havia grande animação. As discussões
entraram pela madrugada. Aproveitando a ocasião, Salvador de Sá comunicou ao
grupo que, por suas novas atribuições, entendera-se com Nuno e requisitara o
galeão “Príncipe Real” para integrar a força naval de retomada de Angola.
Seguiram-se
meses de grande atividade. O grupo de navios fundeados em frente à cidade
crescia a cada dia. O “Marquês de Alorna” entrou com uma grande urca holandesa,
aprisionada nas proximidades da ilha da Madeira. Seria um bom reforço no
transporte de pessoal e de material. Os reparos em tantos navios, após longas
travessias, eram feitos no estaleiro montado por Salvador de Sá na ilha do
Governador, para apoio a tumbeiros. Ficava na ponta do Galeão, assim chamada
por ali ter sido iniciada a construção de um grande galeão, o “Padre Eterno”,
que veio a ser tido como o maior navio do mundo à época, com quilha de 173 pés
(53m), 2.000 tonéis de capacidade e dezenas de canhões.
A convocação
e o preparo do pessoal foram intensificados. O Rio de Janeiro forneceu o maior
número, boa parte com experiência militar. As vilas de São Vicente e São Paulo
enviaram algumas centenas de homens armados com mosquetes e bestas e bem
treinados. Chegaram voluntários do interior do Rio e, também, das vilas de Cabo
Frio e Angra dos Reis. Muitos escravos, nascidos ou criados no Brasil, foram
incorporados, com promessa de alforria. Os tupinambás, por influência jesuíta,
apresentaram seus melhores guerreiros, com arcos, flechas, bordunas e lanças. A
chegada dos 200 militares portugueses, comandados por um Sargento-Mor,
viabilizou a estruturação de todo o contingente de desembarque e seu preparo
final.
A pólvora
chinesa foi distribuída aos navios artilhados. A munição dos canhões, de bolas
de ferro de diferentes tamanhos, foi reforçada por centenas de outras bolas,
feitas por artesões portugueses com granito de grande resistência, abundante na
área. Mais leves que as de ferro, aumentavam o alcance dos canhões e seus
fragmentos causariam muitas baixas no inimigo. Isso possibilitou aos navios
exercitarem a artilharia dentro da baía, sob coordenação do capitão Nuno. Houve
até uma competição entre eles, ganha pelo “Príncipe Real”, para grande orgulho
da tripulação.
No dia 12 de
maio de 1648, D. Salvador Correia de Sá e Benevides suspendeu do Rio de
Janeiro, no comando de uma força-tarefa anfíbia, com a missão, dada por D. João
IV, de reconquistar Angola para a coroa portuguesa, a fim de restabelecer o
comércio de escravos em mãos lusas. Ela era constituída por 4 galeões, 3 naus,
1 caravela redonda, 2 caravelas, 2 urcas, 2 palhabotes e 1 pinaça . Nesses 15
navios, armados com respeitáveis 210 canhões de calibres diversos, havia 2.500
homens, dos quais 1.300 tripulantes e 1.200 elementos de tropa.
Contudo,
tais números eram bem inferiores aos das forças navais, portuguesas e
espanholas, no combate aos holandeses nas costas brasileiras, desde as invasões
de Salvador, em 1624, e de Recife, em 1630. Mesmo após 1640, as forças
portuguesas, lutando contra a Cia. das Índias nas proximidades do Brasil, eram
bem mais poderosas.
A travessia
para Luanda, em geral, foi com bom tempo, possibilitando exercitar os canhões.
Entretanto, enfrentaram muito vento e mar grosso ao final, com as terríveis
perdas do galeão “São Luiz”, com cerca de 420 homens, entre tripulantes e
tropa, e de um dos palhabotes e também da pinaça, com mais 80 homens. O
“Príncipe Real” era o capitânia, onde embarcaram D. Salvador de Sá, com o bispo
de Goa, Dom Manuel, Dom Fernando, em sua barrica, e mais o galo, com as
galinhas d’Angola. O governador dividiu a câmara com Nuno, trazendo três baús e
uma rede para dormir. Assim, foram mantidas as conversas noturnas entre eles
quatro, no quarto d’alva, por obra do galo.
Domingos,
ResponderExcluirNão dá para continuar comentando a sua trilogia sem olhar a gravura de Debret que ilustra o post e imaginar a beleza do Rio de Janeiro que Salvador Correia de Sá e Benevides e seus hóspedes contemplavam do alto do antigo Morro do Castelo diante da entrada da Baía da Guanabara.
Gostei de saber que as “conversas” continuaram ao som da sinfonia de acasalamento do galo e das novas galinhas d’Angola ao anoitecer e do porquê da Ponta, do bairro e até do aeroporto do Galeão na Ilha do Governador, pois desconhecia sobre o estaleiro e a construção do Padre Eterno. E fico por aqui esperando para ler como ganhou a guerra e reconquistou Angola essa malta de dois mil e quinhentos homens tão diversos - soldados portugueses, voluntários, escravos desejosos de alforria, guerreiros tupinambás etc - com quinze navios, duzentos e dez canhões, pólvora chinesa, bolas de ferro e granito, “mosquetes, arcos, flechas, bordunas e lanças”.
Abraço
Amigo Moacir
ResponderExcluirAntes de mais nada, peço-lhe desculpas por não ter respondido aos seus comentários sobre a primeira parte deste texto. Eu estava mergulhado em atender à logística (sempre ela...)de parentes que recebemos em casa em férias , carnaval, etc...Tenho duas irmãs mais velhas que moram em Goiânia, com filhos, netos e bisnetos e a casa do Vô Domingos é o suporte deles quando visitam o Rio.Dá para imaginar...
Quanto ao texto, fico-lhe muito grato por suas palavras. Quando escrevo essas histórias, fico muito emocionado e descarrego tudo no papel. Em verdade, muitos fatos,momentos e personagens encontrei nas inúmeras andanças pelo mundo possibilitadas pela minha adorada profissão...
Quanto a este texto , ele pretende registrar um período extraordinário da história de Portugal, quando o país emerge da desgraça provocada pela perda de Dom Sebastião, seis décadas antes, e agarra, com tesão, as novas oportunidades que surgem. Nesse contexto, a barrica e seu personagem representam o passado, enquanto o galo, com sua potência avassaladora, prepara o extraordinário futuro próximo, que advirá com a descoberta de ouro no imenso Brasil.
Mas isso é outra história...
Abraço fraterno.
Domingos
Muito boa a segunda parte da Trilogia, Obra do bom Escritor Sr. DOMINGOS FERREIRA.
ResponderExcluirEu ressaltaria apenas que quando o Duque de Bragança ( agora D. JOÃO IV de Portugal), reconquistou da Espanha a Coroa Portuguesa em 1640, onde a Espanha tinha assumido os dois Impérios, o Espanhol e o Português em 1580 sob o Rei FELIPE II, D. JOÃO IV que sempre foi sócio da República Holandesa desde os primórdios da Indústria do Açúcar, assinou com a República da Holanda um Tratado de Paz por 10 Anos. Teve então que sutilmente combater os Holandeses em Pernambuco e Angola de forma Indireta, via "Independentes" Brasileiros.
A época era propícia porque nesse tempo a República da Holanda estava começando a travar uma Guerra de Vida ou Morte com a Royal Navy Inglesa pelo domínio dos Mares, e o grosso de sua Frota de Guerra tinha que operar no Mar do Norte. Guerra Naval essa ( Anglo - Holandesa) que acabou em vitória da Inglaterra.
Isso nos facilitou muito a retomada de Pernambuco e principalmente Angola, etc, dos Holandeses, porque se estava combatendo uma Super-Potência da Época, de quem teoricamente Portugal era amigo.
D. JOÃO IV foi um grande Estadista e Diplomata.
Abração.
Estimado Flavio Bortolotto
ResponderExcluirVocê tem toda razão. A "libertação" do NE do Brasil, incluindo a Bahia, resultou de um esforço bem maior e mais demorado da coroa espanhola/portuguesa. Isso se explica pelo fato de os holandeses terem ido para lá com o objetivo de colonizar a região,em todos os sentidos, contrastando com sua atividade em Angola, focada no comércio de escravos.
Além disso, como você bem coloca, os holandeses também estavam encarando a já poderosa Royal Navy, em formação.
De qualquer modo, o esforço de recuperação de Luanda, a partir do Rio de Janeiro, foi um grande sucesso, que se deveu ao extraordinário Salvador de Sá e ao nosso galo.
A terceira parte dessa trilogia mostra bem isso.
Um forte abraço.
Domingos