Ana Nunes
Acorda
menina Colombina que o Carnaval já passou.
As
serpentinas amassadas ganharam abrigo no confete espalhado pelo chão. E as
cinzas da quarta-feira colorem o ar do novo dia.
A chuva
mansa dessa noite de verão molhou seu rosto e escorreu a
maquiagem. E fez do rímel escuro escorridas flores murchas na sua pele
amanhecida.
Seus lábios
de menina sonhadora esperaram em vão pelo Pierrô do outro carnaval que passou.
Seus beijos docemente aguardados foram para outras bocas e no sonho de sonho e
tesão a criança se desfez. Virou mulher. De real e desencanto.
O Pierrô
dessa noite é outro e nem é seu. Cansado da noitada folia ele vasculha o salão ainda
cheio, com mais de mil palhaços, em busca dos olhos do Arlequim. É um outro
flerte. Foram outros beijos, no meio da multidão.
Agora é dia.
Troque sua fantasia pela outra do recomeçar. Seus sapatos de salto e com
buraquinhos para os dedos curiosos a esperam há dias. E seu laptop entediado
espera ansioso por suas mãos aflitas.
Limpe seu
rosto na água do banho. E deixe que essa água lave seu corpo esgotado do baile.
E também, como um refill descartável, refaça seu coração machucado. Aproveite e chore um pouco. E as águas dos seus olhos se misturam a outras águas deste vasto mundo. E com novos
sonhos, sua condição de existência, prepare seu real caminhar. Seque seus
cabelos embaraçados que guardam ainda as cores do salão e alegre de vermelho
vivo sua boca triste. Acorde seus olhos
sonolentos com um novo rímel para um novo dia.
Guarde com
cuidado a máscara negra que esconde seu rosto. Reconstrua pouco a pouco as suas
ilusões para o ano que virá. Guarde a saudade e sonhe suavemente o beijo prometido.
Imagine pelos dias afora o Pierrô que virá arrebatar seus lábios e roubar o seu
batom.
E quando
voltar para casa depois de um dia cansativo deixe seus olhos se fecharem sonhando com a promessa de um novo Carnaval. Guarde a saudade e o beijo para então.
E não se
leve a mal. Vai ser Carnaval.
Está Ana é uma poeta completa
ResponderExcluirCom a beleza das palavras fala o necessário
Continue a nos presentear com seus textos
E vamos acordar porque o carnaval passou
E você uma linda prima!
ExcluirBeijo.
A realidade versus fantasia; a verdade em confronto ao sonho.
ResponderExcluirNão seria este banho que a colombina toma após o carnaval, que lhe lavará a pintura e a imaginação nos braços de um pierrot, que fazemos diariamente a cada jornada depois do trabalho diário?
- Amanhã é outro dia – diz a máxima popular, portanto, as esperanças se renovarão, assim como o ânimo e a chance de se viver momentos melhores do que se passou?
Mais uma vez, a Aninha com sua sensibilidade, desnuda a alma da pessoa, traz à baila a fantasia que nos move em certos períodos da vida para que seja a mola mestra, o impulso até o novo carnaval, até as novas festas, onde a ordem é brincar, flertar, namorar, e sexo em profusão, mesmo com quem não se ama, apenas foi com alguém atraente ou nem isso.
Por acaso seriam assim tão poucos os dias que temos para nos libertar de nós mesmos?
Haveria momentos demarcados, onde podemos extravasar sem ser observados, julgados e acusados?
O que difere o carnaval dos dias seguintes?
É quando somos obrigados a obedecer as regras, a enfrentar os compromissos, fingir que somos sérios e responsáveis?
E, se somos assim, tão compenetrados com as nossas obrigações por que no carnaval abandonamos esse comportamento ou convicção e nos deixamos levar pela euforia, pela alegria, pela liberdade das folias de uma semana na agenda do ano, exatamente para esta soltura dos grilhões que nos prendem a uma existência muitas vezes desesperada, infeliz, frustrada e decepcionante?
Haveria uma espécie de permissão especial para os brasileiros ou turistas que nos visitam esta época do ano para a transigência, para a concessão, para faz-aquilo-que-quiseres-sem-te-lembrares-do-dia-de-amanhã?!
A água, que tão bem a Aninha se reportou, que vai lavando o rosto maquiado, que leva pelo ralo a pintura e os sonhos do que não aconteceu à colombina, e que espera que aconteça no próximo carnaval, o encontro com o arlequim apaixonado, também leva por diante parte dos confetes e serpentinas que seguirão o seu curso misturados à água manchada pelas cores da maquiagem, e engrossada pela esperança de uma outra festa melhor, mais feliz, mais divertida, e com o amor finalmente encontrado.
Em outras palavras, e da forma inteligente e sutil, que caracteriza essa notável e madura escritora, a cada banho renovamos o ser que precisa existir alegre ou triste; a cada jorro de água que nos limpa os resíduos do dia atribulado ou divertido, nos anima a seguir em frente; a cada chuveirada que rebate em nossas costas nos repõe as forças, e nos abastece mais uma vez com a energia necessária para que mantemos sempre acesa a esperança, o sonho embalado por novos dias, a fantasia que nos traz a beleza de se viver aguardando pela semana do acaso, do imprevisto, da música inebriante, mas com a certeza de que desta vez se encontrará o amor ainda perdido, ainda não encontrado, ainda não desfrutado.
O curso da água do banho leva também esta mensagem:
A renovação da pessoa para o seu bem amado, limpa, cheirosa, sem maquiagem, verdadeira, apenas o sonho e a fantasia a colorirem o encontro tão almejado e aguardado para amanhã ou para o carnaval seguinte.
Parabéns, Aninha.
Maravilhosa crônica, onde relatas a ressaca carnavalesca, que tão bem se adapta ao cotidiano, às renovações que precisamos nos submeter para o dia seguinte.
Aliás, esta tua obra serve também como relato do que acontece conosco quando lemos um artigo teu:
Ficamos alegres, divertimo-nos muito, exultamos com os teus personagens, compartilhamos com eles as tuas mensagens, e ficamos tristes quando terminam, enquanto ficamos à espera de um novo conto ou crônica ou ensaio ou-tenha-lá-o-nome-que-tiver, lembrando-nos embaixo do chuveiro o bem que as palavras nos fizeram, que haverá um novo trabalho, e mais uma vez nos encontraremos com textos que nos transportam no tempo, e que nos dão a vontade de continuar querendo descobrir o que acontecerá no dia seguinte!
Um forte abraço.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Francisco, neste comentário mais amigo que dissidente,
ExcluirAdorei você aqui, pegando de mão cheia a tristeza que ,sem querer, coloquei nessas palavras. Só mesmo uma "mulher madura"!
Seu comentário é outro post. Nem precisava do meu.
E nem preciso dizer mais porque seu último parágrafo já disse tudo. Preciso mesmo é pegar emprestado do Antonio Budista,
Gratidão!
1)Belo texto, realista, importante reflexão.
ResponderExcluir2)O carnaval é um bom exemplo da "impermanência da vida" que o Buda ensinou...
3)Parabéns Ana. Gratidão pelas palavras que li e pensei: "Ana, filosofando sabiamente".
Olá Antonio Budista,
ExcluirSabe que essa tal de "impermanência da vida" é muito boa? Sempre me faz pensar.
Que bom que você gostou. Mas se equivoca, não sei filosofar. Só sei das coisas que essa "impermanência" anda me ensinando.
Hoje , numa livraria, me lembrei de você. Vi um livro pequeno, muito lindinho chamado Gratidão. Com textos de Tomás de Aquino, acho, até Shakespeare, passando por Esopo. Pequeno, menor que um livro de bolso. Ilustrado.
"Gratidão".
Aninha, minha querida colega dissidente,
ResponderExcluirÀs vezes a emenda fica pior do que o soneto, mas vamos lá, quem mandou eu escrever sendo um burro!
Ao me referir a este mais um brilhante texto de tua autoria, usei a palavra "madura" querendo dizer que estás mais do que pronta como escritora, simplesmente "madura" como tal, em face da tua obra que tanto apreciamos.
Penitencio-me se entendeste mulher madura - que audácia e desrespeito de minha parte!
Tomara que entendeste as minhas colocações, pois eu me encontro ajoelhado, a testa encostada no chão, e a mão esquerda derramando terra na nuca, em gesto de suprema humilhação para certas tribos de aborígenes, condição que me encontro diante das mentes inteligentes que compõem Conversas do Mano.
Tá vendo no que dá animar uma pessoa sem o devido preparo?!
Fiasco!
Meu perdão, Ana.
Se aceitares, outro abraço e meus desejos de muita saúde - na verdade paciência pelos meus erros escandalosos - e paz.
Amigo dissidente,
ResponderExcluirQuanta bobeira você escreveu heim? Bem escrita, por certo, mas bem bobeira!
Você pode imaginar eu velhinha e verde, imatura como uma adolescente? Nem o Mano com toda sua sabichonice ia me aguentar. Sou orgulhosa da minha maturidade, que já vai longe, dos cabelos brancos e das rugas. Não que pareça uma uva passa, mas espero chegar lá!
Vá se humilhar de joelhos e cabeça baixa fazendo uma bela horta para suas dietas.(rsrs).
De verdade, gostei ser chamada de madura porque quando acabei de escrever o texto disse pro Mano que só uma mulher da minha (nossa!)idade iria escrever um texto assim, tão desiludido e carente!
Abraço para você, seu madurão!
Caríssima Donana,
ResponderExcluirAchei muito bela e instigante a figura misteriosa que inaugura o post. Apelidei-a de Nefertiti e sei que, "indubitavelmente", não tem como ela ser aborrecente (rsrs)
Quanto ao Carnaval tenho certeza que ele começou de forma acidental, no dia em que um humano pré histórico apanhou e saboreou uma fruta qualquer há muito caída no chão e já fermentada, degustando-lhe o sabor agridoce que se espalhou pela boca, até que o álcool entrou na corrente sanguínea e o cérebro agitou-se e enviou-lhe uma nova mensagem :
“ Cara, seja lá o que ISSO for, eu quero mais.”(rsrs)
A cerveja, em vez do pão, a sede em vez da fome, podem ter sido a motivação que levou os nossos antepassados caçadores/coletores a virar agricultores e a domesticar os grãos. O certo é que, desde então, os humanos têm perseguido a embriaguez e um suprimento de álcool parece ter passado a fazer parte do kit básico da comunidade reunida em volta das fogueiras, trocando olhares e conversas e conhecimento, os tímidos articulando, os solitários se divertindo, os furiosos relaxando, todos sociabilizando, negociando, se soltando, se equilibrando, fazendo a festa e celebrando a colheita e a fertilidade, honrando os deuses e recomeçando outro ciclo de estações, construindo a civilização.
Parei quando a senhora cravou “E com novos sonhos, SUA CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA, prepare seu real caminhar.” Porque os sonhos , a fantasia , inclusive a "do recomeçar” é da nossa natureza.
"Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos", dizia o Bardo.Tudo o que hoje é real ontem foi imaginado e, portanto, aquilo que imaginamos hoje, amanhã poderá ser o nosso "real caminhar". Ou não, e se não for, se tudo tiver sido ilusão, então - como diz o Antonioji ! - amanhã viveremos o tal “Vazio”. Mas não hoje! Ainda não! Entre um Carnaval e outro ainda temos a vida - isso que rola enquanto estamos ocupados sendo infelizes! - a tribo, os amigos, a lida, a arte e ler e comentar seus entreditos e entrelinhas: tão bons que de repente fica tudo bem e só podemos mesmo nos despedir com um "até mais".
Prezada Autora Sra. ANA NUNES,
ResponderExcluirÉ agradável ler seu ensaio "Cinzas de Sonho", sobre a Colombina do Carnaval que recém passou, ilustrado com Quadro da mesma Autoria.
Gostamos do seu estilo, tanto Literário, onde a senhora brinca com as palavras compondo sempre um Todo harmônico, como na Pintura também.
Seu Bom-Humor remata toda Obra com fecho de ouro.
Parabéns.
Olá Flávio Bortolotto,
ResponderExcluirQue bom que você voltou para nós com a sua elegância de sempre!
Gostei dos elogios, lógico. Mas sempre acho que são demais.
Gosto de ver você nas conversas de todos e sempre.
Obrigada.
Até mais.
Olá Moacir,
ResponderExcluir"Cara, seja lá o que isso for, eu quero mais". Da fruta fermentada e de vocês. Acho que fiquei addict.
"Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos" (ou os sonhos são da natureza mesma da nossa natureza? E sonhamos pondo essa natureza além do nosso real cotidiano?
De qualquer modo amo essa frase do Bardo e a repito muitas vezes para mim mesma. É com ela que o Editor, que lê no original, com todos os thes thos etc, tenta me catequizar, desde a minha mais tenra juventude, no mundo shakespeariano. Mas acho que não sou intelectual suficiente, como vocês dois, para gostar dele. Na verdade acho um tédio (não me repudie, por favor!)
Voltando aos sonhos, uma vez, chateada, escrevi para um filho, Conversas não Tidas, que só a leu quando publiquei minhas duas edições de 10 volumes cada (rsrs).Sem nem saber que era para ele. Acho que não sabe até hoje.
Que sabe de mim, filho?
Dos meus sonhos
Das minhas ilusões perdidas?
Pior perdidas do que sonhadas
Que estas não voltam mais.
Pior ilusões que sonhos
Que estas foram iludidas
E os sonhos são só sonhados.
Ainda.
E que falar
Dos sonhos não sonhados?
Isso é morte morrida
Antes que fosse vida.
Desculpe a verborragia.
Gratidão. Até mais.
Gosto muito dos comentários, novas crônicas !!
ResponderExcluirEste Conversas do Mano é ótimo com esta turma inteligente e divertida
Parabéns a todos 👏
Ana,
ResponderExcluirNão tenho dúvida, essa moça estava zanzando pelo meu Carnaval. Até mais.