I - O Retorno ao
Ocidente
(imagem Domingos Ferreira) |
Domingos Ferreira
O galeão “Príncipe
Real” avançava lentamente, tocado por um vento terral vindo das costas
d’África, entrando suave pela alheta de boreste, e que o afastava do continente
negro, em demanda ao Brasil. O capitão Nuno Álvares de Noronha conseguira
dormir um pouco, após ter afastado as muitas lembranças dos dias anteriores.
Era noite alta e escura, já no quarto d’alva. O navio todo ressonava e só se
escutavam eventuais ordens de governo gritadas pelo contramestre, do chapitéu
do castelo de popa, para os quatro homens que guarneciam a cana do leme, dois
conveses abaixo.
Era o ano da
graça de 1647. O navio viajava havia mais de seis meses desde Macau, tendo
Lisboa como destino e Rio de Janeiro como próxima escala. Em sua longa derrota,
aportara em Colombo, Goa, Cochin e Moçambique. Tivera sorte de montar o Cabo da
Boa Esperança com bom tempo e poder costear na aproximação de Luanda.
Na “Carreira
da Índia”, tal era a rotina cumprida pelos navios portugueses destinados ao
Extremo Oriente, como correio e apoio logístico. Eram galeões rápidos e bem
artilhados. O “Principe Real”, 550 tonéis, três mastros e três conveses,
impunha respeito com seus 34 canhões e 380 tripulantes. Tais navios,
obras-primas da construção naval portuguesa, não transportavam cargas oriundas
das inúmeras feitorias lusas espalhadas pelos mares navegados. Essa tarefa era reservada às grandes naus,
aperfeiçoadas nos mais de dois séculos de penosas e fantásticas navegações.
As visitas
periódicas dos galeões possibilitavam ao Conselho Ultramarino, em Lisboa,
exercer o controle das províncias portuguesas. Serviam também para transporte
de tropas e de autoridades civis e eclesiásticas. Neles, viajavam o ouro, a
prata, as porcelanas e as pedras preciosas. Carregavam grande quantidade de
canela e da valiosa pimenta do reino, usada como moeda para variados negócios e
salário das tripulações. Transportavam ainda indígenas e animais exóticos, dos
muitos territórios lusos, conquistados com engenho e arte desde o início do
século XV.
Na frugal
câmara do capitão, além do beliche em um canto, de um baú de roupas e de um
varal para secá-las, havia uma mesa para refeições, presa na antepara. Sobre
ela, ficava a carta náutica do Atlântico Sul, riscada em um couro de carneiro,
e poucos instrumentos rudimentares de navegação. Uma prateleira próxima
guardava alguns livros, “Os Lusíadas” dentre eles. A antepara oposta apoiava um
pequeno altar, com a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes e uma lamparina,
mantida acesa a duras penas. Três vigias, uma em cada bordo e outra no espelho
de popa, garantiam ventilação e luz do sol. O ambiente era impregnado de um
cheiro forte, mistura de suor, fumaça e óleo de peixe. O capitão vivera ali nos
últimos quinze meses, desde a partida de Lisboa para Macau. Sem banho.
Uma barrica
enorme, com seis palmos de pé e quatro de diâmetro, feita de teca finamente
lavrada, dominava o outro canto da câmara. Era um valioso trabalho chinês.
Estava fixada a um forte pé de carneiro a ré, por cintas de ferro batido,
cravadas a ficar. A tampa de madeira grossa era meio roscada na abertura
superior da barrica e atracada por um aldrabão de ferro, em cujo furo passava
um cadeado de respeito. Tal arranjo, acabado com muito breu, garantia a
vedação, impedindo o vazamento da salmoura contida na portentosa barrica. Isso
era essencial para a preservação do corpo de Dom Fernando de Souza Álvares,
ex-governador de Macau, ali mergulhado. Assim se cumpriam as disposições régias
sobre o enterramento opcional em solo português, dos nobres e altos
funcionários da coroa, falecidos nas províncias.
As
instruções para a viagem, recebidas em Portugal, ordenavam a Nuno fazer um
levantamento da situação em Luanda, no retorno a Lisboa. Ela estava em mãos
holandesas desde 1641, com grandes prejuízos para o tráfico de escravos,
explorado pelos portugueses por mais de meio século. Para tanto, havia a bordo
alguns tripulantes oriundos da região, com vivência no sórdido e lucrativo
negócio negreiro.
O “Príncipe
Real” desembarcou quatro deles em uma praia abrigada próxima a Luanda, na
madrugada anterior a chegar à vila. Eram três marinheiros negros, chefiados por
um branco, ajudante do escrivão. Eles teriam três dias para se integrar à
população e percorrer a vila e cercanias, observando tudo de interesse para o
comércio de escravos e para a defesa da praça. O galeão se manteria ao largo e
os apanharia no mesmo local e horário do desembarque.
O arranjo
funcionou e os homens foram recolhidos como acertado. Entretanto, faltava um
dos marinheiros, figura popular a bordo. Nuno esperou até quase o amanhecer e
só aproou ao mar alto com o sol já de fora. Pouco depois, ouviu o grito do
vigia, no cesto de gávea, alertando para a aproximação de um navio, logo
identificado como galeão holandês, vindo da direção de Luanda.
A rápida
reação do capitão Nuno, bom conhecedor de armamento, foi ordenar o preparo do “Príncipe
Real” para combate. Finalmente, surgira a oportunidade tão desejada por ele
desde a China. Adestrara-se bastante para melhorar a cadência de tiro e a
precisão dos canhões, mediante frequentes exercícios, durante as longas
travessias. Assim, contava dispor de respeitável poder de fogo, bem como aferir
as qualidades da afamada pólvora chinesa, comprada em Macau em grande
quantidade.
Um vento
médio soprava para terra e levantava pequenas ondas. Isso aproximou rapidamente
os dois navios, em rumos opostos, quase paralelos. Nuno esperou o holandês
abrir fogo, o que se deu com os dois canhões de proa. Os tiros foram curtos,
com fumaça escura, indicando pólvora fraca. O “Príncipe Real” guinou para fora,
abriu distância para aproveitar-se do maior alcance dos canhões, ganhar
barlavento e ter melhor condição de manobra. O holandês manteve o rumo e deu a
primeira bordada com os canhões de bombordo, fraca e descoordenada, sem atingir
o português.
Nuno guinou
para dentro, em rumo oposto e paralelo ao do inimigo, fora do alcance dos
canhões dele. Ao marcá-lo pela bochecha, o “Príncipe Real” abriu fogo com uma
estrondosa e simultânea bordada dos 14 canhões de bombordo. Antes de a fumaça
se dissipar, vomitou fogo com outra bordada pelo través, e mais uma pela
alheta, conforme se cruzavam os navios. Em seguida, inverteu o rumo e ia sair
em perseguição do inimigo. Não precisava. Ele estava à matroca, dois mastros
quebrados, a vela grande n’água e rombos no costado. A pólvora chinesa era um
sucesso.
O Capitão
Nuno acordou com o canto do galo, companheiro das galinhas no cercado do convés
do castelo, responsáveis pelos ovos e canjas da dieta das autoridades. Em
seguida, ouviu um pigarro forte, vindo da direção da barrica. Era Dom Fernando,
que também despertara com o canto do galo. Uma voz clara e forte falou:
- Ó Nuno,
fizeste-o muito bem ontem. O maldito holandês teve o merecido!
Ao que o
capitão prontamente retrucou, com falsa modéstia:
- Ora pois,
senhor meu tio. Deveu-se isto à qualidade da pólvora chin.
A conversa
prosseguiu com grande naturalidade. Nuno deitado no beliche e a barrica firme
no seu lugar. Esse diálogo se iniciara logo após a saída de Macau. Na primeira
vez em que Dom Fernando falara, o capitão levara um grande susto, mas foi tranquilizado
pelo seu parente e amigo. A partir daí, passaram a conversar com frequência, a
iniciativa sempre do nobre, e que não ocorria toda noite.
O primeiro
canto do galo era sinal para o início das conversas, sempre encerradas antes do
amanhecer. Às vezes, se o galo insistisse em cantar, o morto se calava
subitamente, por mais interessante o assunto. Era comum ocorrerem discussões
acaloradas entre os dois interlocutores. Então, uma pálida luminescência
envolvia a barrica e dela surgia o ectoplasma de Dom Fernando, em pé,
gesticulando. O nobre apreciava tais momentos, por poder esticar o corpo,
sempre curvado na barrica.
A travessia
para o Rio de Janeiro duraria cerca de seis semanas, conforme os ventos e as
correntes. Nuno aproveitou para redigir o relatório sobre Luanda, destinado ao
Conselho Ultramarino em Lisboa. Uma cópia seria para o governador do Rio de
Janeiro, o famoso Dom Salvador Correia de Sá e Benevides. Outra permaneceria a
bordo do “Príncipe Real”. Para tanto, passaram a ocorrer reuniões na câmara,
com Nuno, o escrivão e seu ajudante redator, e os dois marinheiros que o
acompanharam em Luanda, logo dispensados. O ex-bispo de Goa, Dom Manuel de
Castello Branco, o mais ilustre passageiro vivo, comparecia com sua
experiência, a convite do capitão.
As
informações coletadas e o ataque pelo galeão dos holandeses indicavam que eles
não tinham a menor intenção de sair de Luanda. Havia alguns navios armados no
porto, além de tumbeiros lotados de escravos, prontos a zarpar para as
Américas, o Brasil em especial. Os dois fortes do porto tiveram as defesas
melhoradas e foram aumentados o número e o calibre dos canhões. A tropa também
recebera reforços.
Nuno e seus
parceiros de reunião logo concluíram que a chegada de tais notícias no Rio de
Janeiro e em Lisboa certamente iria provocar o envio de outra expedição, para
tentar expulsar os holandeses. Seria a terceira, após o fracasso de duas
anteriores, em 1645, oriundas de Salvador e do Rio, as quais pecaram por mau
planejamento e meios insuficientes. Desses esforços, ficou famosa a trágica
experiência de duas centenas de expedicionários baianos, aprisionados por nativos,
aliados dos holandeses. Tratava-se da poderosa tribo dos Jagas, terríveis
antropófagos. Segundo quatro sobreviventes, os jagas se alimentaram desses
homens, por cerca de três meses, em festivos banquetes.
As condições
políticas para uma nova investida sobre Angola eram bem melhores em 1647, com a
“Restauração”, separando Portugal da Espanha em 1640, e a entronização de
D.João IV, em 1641. Seria necessário reunir mais forças que nas incursões
anteriores, em número e armamento dos navios, e em quantidade, equipamento e
preparo da tropa. Também, importava definir de onde partiriam os navios, quem
os aprestaria e comandaria, e como financiar a operação. Rio e Salvador eram
opções óbvias, mas com carência de navios e de pessoal capacitado. Devido à longa ausência do “Príncipe Real”,
havia dúvidas se os holandeses continuavam em Pernambuco. Por fim, Lisboa seria
outra solução, porém, afogada nas reverberações européias da “Restauração”,
tenderia a delegar a tarefa, como o fizera antes.
Todas essas
incertezas dominavam o pensamento do capitão Nuno, durante a redação do
relatório. Além do mais, os poucos membros do grupo que o ajudavam nisso não
tinham qualificações para opinar sobre tais assuntos. O próprio bispo de Goa
estava desatualizado, pois passara quase dez anos na província. Só restava a
Nuno apelar para Dom Fernando, de dentro da barrica.
Assim foi
feito, para grande espanto do religioso, que não podia recusar a sugestão de
Nuno para incorporar o tio ao grupo. Afinal de contas, o bispo representava
Deus naquela casca de noz, balançando no imenso oceano. O resultado
surpreendeu, com a sabedoria política da igreja como lastro para ponderar os
argumentos. Além disso, passado o ilógico pavor do prelado, ele e o falecido se
tornaram mui amigos. Tudo facilitado pela anuência do bispo em não perguntar ao
morto sobre a “vida do outro lado.” D. Manuel manteve a palavra, apesar de “morrer”
de curiosidade.
O galo
cooperou e muitas madrugadas da travessia foram ocupadas em discussões na câmara
do capitão. Dom Fernando era adepto de deixar o problema com Lisboa. Já Nuno,
tendo escalado no Rio na vinda, defendia que a tarefa seria melhor cumprida a
partir de lá. Ele sabia ser esse o pensamento de Salvador de Sá, baseado em que
a maioria dos tumbeiros, vindos de Angola carregados de escravos, desembarcavam
os infelizes naquele porto. O lindo Rio era a sede do tráfico para o Sul e
Sudeste do Brasil, e o governador tinha grandes interesses nele.
O “Príncipe
Real” fundeou em frente à cidade do Rio de Janeiro, com a Ilha das Cobras pelo
través, em uma límpida manhã de outubro de 1647. Salvador de Sá veio a bordo,
ansioso por novidades. O capitão e o bispo foram hospedados por ele, no Morro
do Castelo. A pesada barrica, com Dom Fernando dentro, foi também para lá, por
razões cerimoniais alegadas pelo prelado e por Nuno. Isso exigiu uma grande
faina para colocá-la em um carro de boi, puxado por duas juntas, que gemeu
penosamente na Ladeira da Misericórdia, até o topo do morro. O galo também foi,
calado...
Bonita descrição histórica, feita por esse bom Escritor Sr. DOMINGOS FERREIRA, da viagem do Galeão Português "Príncipe Real" de 550 Toneladas, 3 Mastros, 3 Conveses, 34 Canhões e 380 Tripulantes, das Índias para Lisboa - Portugal. Ano 1647, época das Guerras Holanda X Espanha. De 1580 - 1640 o Império Português foi incorporado ao Império Espanhol, e a Holanda antiga Colônia Espanhola tinha invadido e ocupado Pernambuco, partes do NE Brasileiro e Angola na África. Em 1640 Portugal recupera sua Coroa na Pessoa do Duque de Bragança que assume como D. JOÃO IV e faz um Tratado de Paz de 10 anos com a Holanda, velha sócia de Portugal desde os primórdios do Comércio do Açúcar, mas os Holandeses não desocupavam Pernambuco e Angola, etc. Teve D. JOÃO IV que fazer uma Guerra Indireta à Holanda, via Independentes Brasileiros contra os Holandeses em Pernambuco, e usando a Esquadra de Guerra do Gov. do Rio de Janeiro SÁ E BENEVIDES na 3ª Tentativa, atacar a reocupar Angola- África. Guerras empreendidas com sucesso, e aí se formou a "Nacionalidade Brasileira".
ResponderExcluirBravamente comandado pelo Capitão NUNO ÁLVARES DE NORONHA, o Principe Real operava perto de Luanda- Angola buscando Informações para depois transmiti-las ao Gov. do Rio de Janeiro SÁ E BENEVIDES, quando encontra Galeão Holandês, manobra então brilhantemente para fora ficando a Barlavento ( tendo o vento a seu favor ), e usando muito bem sua bem treinada Artilharia equipada com excelente e bem seca Pólvora Chinesa, logo põe a pique o Galeão Holandês.
Googlei e aprendi que naquela época, +- 1650, os combates navais não eram mais decididos em abordagem, mas exclusivamente pela Artilharia.
O alcance útil dos canhões navais da época era de 500 m e o ideal era atirar a 250 m, e nessas curtas distâncias, um erro de navegação era fatal. Combatia-se realmente de perto, e quase tudo dependendo do vento.
Parabéns, Sr. DOMINGOS FERREIRA.
Estimado amigo Flavio Bortolotto
ExcluirMuito obrigado por suas detalhadas e gentis observações. Esta fase da nossa história é muito pouco conhecida. O Oceano Atlântico sempre foi teatro de relevantes acontecimentos de nossa colonização, desde o início das primeiras investidas portuguesas, com a conquista de Ceuta,em 1415, no NW da África.
A Reconquista de Angola, dois séculos depois, foi uma parte importante do esforço português para manter o controle do imenso patrimônio de que desfrutou até o século XX.
As segunda e terceira partes deste texto procuram completar, com leveza, o que se passou.
Um forte abraço
Domingos
Domingos, um belo começo para a trilogia, escrita com a sua costumeira verve e competência. Como, pelas injunções de ser o editor, já conheço os próximos dois capítulos, peço sua licença para só comentar no final, por meio de estragar a antecipação dos leitores :)
ResponderExcluirUm abraço do Mano
Estimado Mano
ResponderExcluirPor favor, tenha a maior liberdade para comentar meus textos.
Encaro como uma colaboração importante.
Abraço
Domingos
Prezado Domingos,
ResponderExcluirDesculpe o atraso mas nas paragens onde me encontro a internet nem sempre dá o ar da graça dela. O que eu aprecio na sua prosa, além das ricas informações, é a linguagem saborosa – “vento terral, alheta de boreste, chapitéu, cana do leme" e que tais - que funciona como pimenta do reino e aguça a atenção e, mais ainda, é algo não pode ser ensinado : você respira e vive a narrativa em vez de só escrevê-la. Cria um mundo e o povoa de pessoas, costumes, configurações, necessidades e desejos e fatos históricos. De tudo, o que fica desse ótimo post é o cenário criado por você: a câmara do capitão, os seus móveis, a carta náutica de velino,“Os Lusíadas” – os livros são os melhores companheiros de viagem! - o altar, a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, a lamparina, as três vigias, o cheiro forte de corpos há quinze meses sem banho e a barrica chinesa de teca.
E nesse palco as conversas geopolíticas que rolavam ao primeiro canto do galo – no “quarto d’alva”! - entre a voz ou o ectoplasma de Dom Fernando, o ex-governador de Macau e Nuno Álvares , o capitão do galeão “Príncipe Real” e Dom Manuel, o representante de Deus naquela balançante "casca de noz", enquanto nela viajavam de Macau à Lisboa, com as mais variadas escalas e o objetivo de garantir ao Conselho Ultramarino de Lisboa, uma munição muito mais valiosa do que a pólvora chin: informação.
Ou seja, você relata o vasto mundo enquanto descreve pessoas na tradição mais antiga e grandiosa que a ficção conhece, nos arrastando em “viagens” históricas, em busca de aventura e maravilhas, sabendo muito bem que tudo isso não se encontra no destino mas simplesmente na jornada e nas suas "conversas".
Obrigado, abração e bom Carnaval!