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31/07/2017

A Garota Filmada

imagem Wikimedia

Moacir Pimentel
Ambos os trabalhos de ficção - o romance escrito em 1999 pela escritora Tracy Chevalier e o filme que fizeram a partir dele de nome Garota com um Brinco de Pérola - são muito interessantes mas não têm qualquer compromisso com a verdade histórica e foram profundamente injustos em algumas de suas caracterizações, como no caso da esposa do pintor, Catharina Vermeer, que jamais foi uma antagonista do trabalho do marido.
Johannes Vermeer morreu deixando nas costas da mulher além das crianças para cuidar uma dívida enorme. Inúmeros relatos guardaram para a posteridade um vislumbre de como Catharina lutou na pobreza para manter na família e longe das mãos de seus credores ao menos uma das obras-primas do marido, A Arte da Pintura. Há que suspeitar que ela tenha agido assim por ter orgulho de seu trabalho.
Sabemos por registros históricos ter sido Catharina mimada pelo esposo para compensá-la de uma triste infância na qual fora vítima da violência de um pai cruel. Mas o sucesso do livro e principalmente do filme de certa forma condenaram Catharina e Johannes à infelicidade conjugal e à indiferença afetiva na imaginação popular. Parece-me que os quinze filhos que fizeram juntos provam o contrário (rsrs).
Documentos sobreviventes provam que Johannes e Catharina viveram um casamento tão harmonioso e tranquilo quanto lhes permitia tal número de descendentes. A fertilidade do casal indica que se casaram por amor e não por arranjos familiares.
Não me entenda mal: eu recomendo tanto o livro quanto o filme, cujos enredo e script são excelentes. E entendo que seja apenas humana essa curiosidade sobre quem a Garota pode ter sido. Esse belo rosto virado para nós há séculos atrás exige que nos perguntemos: quem era ela?
Mas ninguém tem nada a ganhar com a imposição no imaginário popular de estereótipos modernos, especialmente se negativos e injustos para com figuras históricas que viveram há mais de trezentos anos e principalmente se uma delas legou ao mundo algumas das mais complexas e comoventes imagens do sentimento humano.
A gente se pergunta como um artista pode ter sido capaz de suportar e até mesmo prosperar criativamente sob o fardo de tamanha paternidade. Mas é sabido que os artistas produziram e produzem obras-primas em uma grande variedade de circunstâncias e eu prefiro acreditar que Johannes e Catharina simplesmente não conseguiam ficar longe um do outro (rsrs)
Acontece que os cérebros humanos gostam de histórias e especialmente daquelas que têm começo, meio e fim e solucionem todos os mistérios. E foi exatamente isso que o romance bem abotoado de Tracy Chevalier fez. Como quando se trata de Vermeer só se pode especular, a escritora, a partir de um enigma no coração da sua obra, se sentiu à vontade para in-ven-tar sua fascinante novela Garota com o Brinco de Pérola.
Muito bem. Uma vez esclarecido que - ao contrário do que muita gente pensa - o livro e o filme são pura ficção, aí temos mais um probleminha pela frente: os dois além de bater de frente com a real são diferentes entre si. (rsrs)
Eu gosto mais de qualquer livro do que dos filmes inspirados por eles. É claro que o mundo do cinema tem um glamour com o qual um livro não pode competir. Mas apesar disso, as luzes brilhantes de um filme não necessariamente ofuscam e anulam a pequena e constante chama de um bom livro. Na verdade, essa chama pode durar muito mais do que o glitter e os efeitos especiais dos screenplays.
Mesmo sendo a Garota uma história muito visual – afinal trata-se da vida de um pintor! - Tracy Chevalier não escreveu o romance como um roteiro para um filme, ou seja, algo facilmente traduzível em imagens. Apesar de alguns tropeços e lacunas eu acho que o filme conseguiu capturar o romance, a verdade emocional do livro, inclusive compreendendo que a chave para a história era a sua contenção. Contrariando a vocação hollywoodiana os personagens principais não vão para debaixo do edredon(rsrs)
(Se vai ter spoilers neste post? Vários! Se você deseja assistir o filme, é melhor virar a página.)
Em geral, os filmes têm narrativas mais simples e são mais lineares e ativos do que os livros que, em vez, são capazes de nos fazer entrar e sair da cabeça dos seus personagens. Livros, muito mais que os filmes, permitem que os seus leitores os interpretem e façam seus próprios enredos. Como controlar o que os leitores pensam, ou como eles retratam cenas e personagens?
Seria triste se os filmes obliterassem os livros ao longo de seus caminhos diversos. Quem lê a novela e assiste o filme Garota com um Brinco de Pérola, ao fim e ao cabo, fica com duas garotas, duas Griets na cabeça. Uma é a luminosa e sensual Griet de Scarlett Johansson e a outra a da escritora, a original, pequena e quieta mas com uma presença constante não diminuída por ter ganho uma irmã mais glamorosa.
Face a tudo que já foi dito você pode avaliar que Vermeer e sua vidinha devagar quase parando – exceto no quesito da reprodução (rsrs) – dificilmente seriam temas para um filme. Filmes tendem a ser sobre coisas que acontecem e não aconteceu muito na vida do pintor holandês do século XVII além de algumas mulheres lendo, escrevendo, fazendo música, apreciando a rua, ou sendo cortejadas por cavaleiros obscuros em quartos tranquilos decorados com uma mistura de parcimônia e luxo.
O filme da Garota é uma história sobre coisas não ditas, palavras mudas, oportunidades desperdiçadas, potencialidades não desenvolvidas e lábios que não foram beijados. Todos esses elementos se encontram na pintura que inspirou o roteiro na qual uma garota está quase saindo e quase sorrindo e quase falando.
Poderiam ter errado a mão nesse enredo, mas deu certo, porque em vez de cozinhar um melodrama apaixonado e intrigas românticas o filme conta uma história que está contente com a sua simplicidade. Como a pintura de Vermeer, ele é um filme contemplativo, reflexivo, subjugado, sem revelações espalhafatosas conflitando com o seu verdadeiro estado de espírito.
Às vezes, um homem e uma mulher simplesmente se olham e se encantam e se consideram mas entre eles há um abismo grande demais para ser superado e eles sabem imediatamente que sim, poderia acontecer mas que nunca vai rolar. Essa é essencialmente a mensagem dessa história.
A Garota com um Brinco de Pérola é um filme tranquilo, quase triste, no qual qualquer turbulência emocional permanece abaixo da superfície e que tem um grande tema: uma obra de arte envolta em mistério e um projeto que, apesar de arruinar a reputação de uma jovem mulher, garantiu-lhe um lugar na história.
O seu sucesso e ritmo depende da gente acreditar na tensão sexual entre Vermeer e Griet, sem que haja entre eles qualquer contato de primeiro grau (rsrs) E acreditamos, embora Tracy tenha escrito um romance cheio de nuances e narrativas internas que não podem ser facilmente traduzidas para a tela.
O filme é pura tentação para os olhos e eu, ao fim e ao cabo, fui capaz de perdoar o script por sua falta de ação e drama e algumas tentativas superficiais de caracterização. Porque o cuidado com o qual o filme foi feito, a fotografia, a ambientação das paisagens e ambientes, a magistral e absorvente iluminação e a visão de Vermeer merecem ser vistas.
A reprodução da cidade de Delft do século XVII é quase perfeita: as ruas de paralelepípedos, os canais e pontes, os frontões de tijolos, a praça com uma estrela de oito pontas no centro, o mercado. Apenas aqui e ali alguns arcos me pareceram mais venezianos do que góticos. É como uma linda pintura assombrada por melancolia, um quadro onde todos parecem existir de verdade.
Os interiores e exteriores, o design suntuoso, a luz, a aparência vermeeriana de tudo fazem cada cena parecer com uma pintura de Vermeer. Han van Meegeren, o famoso falsificador que conseguiu até mesmo vender um Vermeer fajuto para Hermann Göring não teria forjado nada melhor (rsrs)
Aliás as reproduções de pinturas de Vermeer e de outros pintores seiscentistas holandeses penduradas em todos os lugares são de grande qualidade. Assim como os objetos, os móveis, a comida, as louças. Tudo bem que ao assistir focalizamos o rosto de Scarlett Johansson e não a cerâmica de Delft azul e branca empilhada na cozinha. Mas como tudo mais ela é autêntica nessa suntuosa festa visual. Para ser franco, a quantidade de detalhes visuais das obras do pintor às vezes ameaça paralisar o filme.
Durante todo o filme fazemos a mesma coisa que experimentamos com relação ao quadro: especulamos.
E é exatamente isso que fazem tanto o livro quanto o filme, recriando pacientemente a vida na Holanda do século XVII, a rotina diária na casa do pintor, com a sogra, as crianças e um casamento mais tenso do que qualquer registro confiável sugere, e introduzindo uma personagem imaginária mas plausível, uma linda empregada fictícia com quem Vermeer forma um vínculo, um laço mal articulado e jamais consumado.
Mas... em sua transferência para a tela a história se torna menos sobre a garota e mais sobre o pacto secreto que Vermeer tem com a câmara. Porque embora ele tenha pintado mais de dois séculos antes da invenção do cinema, esse artista antecipou o modo como os filmes criam outros mundos e os enchem de luz.
A única coisa que realmente interessava a ele era a luz. Enquanto Rembrandt era a luz sobre os rostos, Vermeer era apenas a luz. Ponto parágrafo.
É como se ele tivesse, às voltas com a sua câmara obscura, antecipado a fotografia. Como já conversamos há evidências convincentes - nos espaços lustrosos e azulados, nos móveis artisticamente desordenados, numa cadeira estofada de veludo puxada para trás, numa toalha amarrotada, numa cortina estampada e na qualidade particular de suas bordas e sombras – de que ele usava lentes para pintar.
O estúdio descrito no livro e visto no filme poderia muito bem ter sido o de um fotógrafo vitoriano com diferentes roupas, e panos e adereços e móveis arranjados em cenas para a câmera obscura do pintor. De qualquer maneira, foi na era da fotografia que o mundo entendeu que Vermeer era um gênio. A fama que ele tem hoje é um fenômeno totalmente moderno.
A redescoberta de Vermeer - quando Proust se encantou com o quadro A Vista de Delft! – rolou logo em seguida à invenção da fotografia. E ele explodiu na cultura popular quando do nascimento do cinema.
Faz todo o sentido porque na minha humilde opinião Vermeer era muito mais um cineasta do que um fotógrafo. Apesar de toda aquela quietude as pinturas dele respiram e se movem e são dramas. Ele é um dramaturgo da luz.
Como já fizera Caravaggio antes dele, ao usar a luz para criar drama Vermeer antecipou o trabalho dos cineastas. Sua Garota é uma tomada perfeita que primeiro isola a atriz na escuridão, para depois fazê-la brilhar com a luz que entra à esquerda como estamos carecas de ver acontecendo com os close - ups das estrelas de cinema.
Na cena pintada por ele a luz é tudo mas não é assim que ela atua em uma fotografia: 
imagem pinterest


A luz funciona no filme, assim como nas tintas de Vermeer, porque é teatral, é pausada, tem emoção, carne e sangue.
As suas pinturas são quase jogos abstratos de luz, tanto que quando a gente olha para os rostos de perto, eles se desintegram, desaparecem em luz clara e turva e muito estranha.
Vermeer, há séculos atrás, já era um cineasta que usava e abusava da luz natural, que já contava histórias - ou melhor, insinuava histórias que poderiam ser contadas - com a luz ambiente atmosférica enchendo os interiores pálidos de uma casa holandesa, iluminando telas brancas, enquadrando o olhar indecifrável dessa menina com um único brinco de pérola emprestado.
Mas que tal deixar de blábláblá artístico e conversar sobre a história do livro e do filme?
Logo na abertura vemos a maravilhosa Scarlett Johansson descascando uma cebola. Vamos combinar? Da primeira vez que eu vi a atriz há valentes anos atrás ela tinha só quinze anos e estava berrando em um filme de terror cheio de aranhas gigantescas e furiosas. Não recordo de absolutamente nada sobre a trama a não ser que alguns dos seres aracnídeos olhavam para a Scarlett exatamente como eu – embevecidos e de queixo caído!
Em Garota com o Brinco de Pérola a atriz já era “de maior”. Nossinhora! Já o Colin Firth, que interpreta um romântico Vermeer cativado pelo florescimento das mente e beleza intocadas de sua modelo, é capaz de nos fazer dar asas à imaginação especulativa sobre como teriam sido os relacionamento dos artistas holandeses do século XVII com suas modelos desconhecidas.
Não, não se trata da Cinderela mas da Griet, uma empregada doméstica que se tornou a musa do pintor e protagonista de uma obra prima na qual o artista pintou sua pele tão opalescente quanto a pérola do brinco, só que em um filme cheio de longos silêncios que vêm depois de suspiros mais longos ainda.
Pudera!! Com tal protagonista, não era para menos!
A Griet, vivida por Scarlett Johansson na telona, é uma garota holandesa nascida em uma família protestante digna, mas empobrecida, cujo pai, um pintor de azulejos de Delft, pertence à mesma guilda na qual Vermeer é mestre. Mas ele perdera a visão em um acidente de trabalho que o deixou incapaz de trabalhar e colocou seus familiares em uma situação financeira precária. Griet aprendera a ser os olhos do pai descrevendo o mundo para ele. Ela tem um talento especial para isso - uma consciência visual de cor e harmonia.
Griet desceu de nível social e do seu mundinho seguro ao concordar em trabalhar na casa do pintor. Ela encara seu novo papel como um sacrifício, mas também com um tremor de excitação pois seu pai a ensinara a reverenciar a arte.
Além disso, apesar de Griet dormir no chão de terra batida de uma adega e de se ocupar da lavagem de roupa para muuuuitos membros da família Vermeer, o emprego lhe garante um status especial, uma distinção: só a ela é permitida a entrada no estúdio do mestre.
Ser uma adolescente protestante e empregada na casa da família católica do famoso pintor Johannes Vermeer deve ter sido dureza!
-“Tape os ouvidos e mantenha-se afastada de suas orações católicas!” recomenda-lhe a mãe, antes de Griet amarrar e esconder os belos cabelos dentro de uma modesta touca tradicional holandesa e sair de casa para tentar se encaixar como serva em uma casa cheia de mulheres dominadoras.
No filme Catharina Vermeer é uma mulher ríspida e de cara amarrada, perpetuamente apaixonada e grávida do marido. Às vezes parece estar parada onde espera que ninguém a veja.
É grande a semelhança da atriz que encarna a personagem de Catharina com algumas figuras de telas do artista como, por exemplo, a Mulher com um Colar de Pérolas, vestida com um casaco amarelo forrado de pele que olha diretamente para o seu reflexo em uma janela retro- iluminada, enquanto segura seu colar. Ou estaria ela mostrando-se para alguém lá fora? É uma tela estranha onde a estranheza é o drama. 
Vermeer - Garota com um colar de pérolas (1664) / Mulher de azul lendo uma carta (1663)

O figurino da esposa do pintor nos remete a outra pintura dele na qual uma mulher vestida de azul lê uma carta. As opiniões entre os historiadores da arte diferem sobre se a figura está ou não grávida na pintura.
Maria Thins é a mãe de Catharina, a sogra do pintor que sempre vestida de preto mais parece uma personagem rembrandtiana. Ela mora com o casal e, na verdade, é o homem da casa, quem comanda as vidas dentro dela com mão de ferro porque negocia as encomendas e gerencia o dinheiro do genro.
Ela se comporta como se fosse o capataz de uma fábrica na qual sua filha tem que agradar o marido e produzir bebês enquanto o genro fabrica pinturas. Ambos têm uma única produção por ano o que, segundo Maria, era demais para a mamãe e de menos para o pintor. Dureza!
Ninguém jamais diz o que pensa nessa casa, exceto essa senhora, cujos pensamentos são óbvios - $$$!! – tão tragicamente perspicaz e decidida a fazer o que ela pensa que deve ser feito.
Tanneke, a leiteira que já conhecemos de pretéritas conversas, apesar de dura na queda é a coisa mais próxima de uma amiga que Griet encontra no novo lar.
Vermeer tenta conciliar a paz doméstica com a criatividade e em vez de rondar a cidade à procura de temas inspiradores permanece em casa mal-humorado, lendo e bebendo canecas contemplativas de cerveja enquanto as crianças pintam o sete.
A ansiedade da separação da adolescente Griet de seus entes queridos permeia o filme inteiro e ela jamais deixa de parecer perdida e exilada às voltas com trabalhos brutais, crianças barulhentas e mimadas e uma patroa prestes a acrescentar outra boca à ninhada.
Quando Griet chega à casa dos Vermeer, ela vê os vizinhos falidos chorando ao lado do canal enquanto os oficiais de justiça e policiais levam seus móveis. E teme pelos seus! Percebe-se logo por cenas como essa que esse filme é sobre como uma jovem mulher tenta resistir a um sistema concebido para torná-la irremediavelmente vulnerável.
Ela trabalha duro, quase sem palavras, na posição mais baixa em uma hierarquia áspera e enfrentando até mesmo o tratamento rancoroso e cruel de Cornélia, uma das filhas do pintor.
Entre suas outras tantas tarefas – esfregar, polir, varrer, buscar água, lavar, passar, por, tirar e servir a mesa - Griet é encarregada das compras da família no mercado e lá conhece Pieter, o filho do açougueiro, que se apaixona por ela. Eles se tornam castos namorados. Tem mais.
Ela desenvolve um grande interesse pelo estúdio do patrão e seus objetos. Quando ela pergunta à patroa se deve limpar as janelas explicando à perplexa mulher, em seguida, que isso mudaria a luz, Catharina nos é pintada como uma loura burra e indiferente à arte do marido enquanto fica evidente que Griet tem uma compreensão natural da arte e uma sensibilidade superior à da esposa petulante e à da sogra dominadora.
O golpe de mestre desse filme é o estúdio vazio e misterioso de Vermeer que nos é tão familiar devido a tantas pinturas, habitado por um modelo de madeira estranho e robótico e, em uma das cenas, por uma câmera obscura. Griet muito aprecia o atelier. Ele é reconfortante para a menina orientada a limpá-lo sem mover nada, deixando todas as coisas sempre no mesmo lugar, uma habilidade que adquirira para dar qualidade de vida ao pai cego no lar que deixara para trás.
Para a menina o estúdio era um oásis de paz, uma sala ordenada, vazia da bagunça da vida cotidiana, diferente do resto da casa. Ali ela se sentia em outro mundo, onde não escutava os gritos das crianças, o choro dos bebês, a música de Catharina, o tilintar das chaves de Maria, o barulho das vassouras de Tanneke enquanto com reverência espanava os objetos que conhecemos das pinturas do artista: uma bacia, a bela cortina, uma jarra, uma cadeira enfeitada com cabeças de leão cinzeladas.
Quando Griet passa a circular no seu espaço a sua beleza logo atrai a atenção do intenso mas distraído Vermeer, às voltas com uma tela para manter a família alimentada e vestida. Quando ele a vê em frente à janela, lavando as vidraças, espiando-o por cima do ombro, ele ordena:
- “Não se mexa!”.
Ela se detém na pose e então é dispensada sem saber que se tornara a inspiração para um outro quadro.
Vermeer percebe que Griet é inteligente de uma forma natural, que responde instintivamente ao trabalho manual da pintura - ao ofício, à técnica, à estratégia, até à química, que fica encantada de saber que a cor chamada amarelo indiano era destilada da urina de vacas alimentadas com folhas de manga.
É óbvio que o pintor e Griet conversam na privacidade do estúdio - onde sua esposa Catharina jamais entra porque “não entende de pintura” - e ele passa a incentivar as apreciação e curiosidade que Griet tem pela pintura e o seu senso intuitivo de luz e cor. Ela também aprende a moer os pigmentos de Vermeer e, gradualmente, é atraída para o processo criativo em si e sutilmente começa a influenciar o trabalho do artista.
Impressionado com a beleza e inteligência da moça, ele logo está apaixonado o suficiente para querer pintá-la. Ela também está muito intrigada com Vermeer, um excêntrico taciturno cujos olhos escuros abrigam reserva, receio, desejo e finalmente apreço.
Aqui entre nós e baixinho, que pintor não ficaria encantado pela Scarlett – epa! Foi mal! - quero dizer pela Griet ao perguntar-lhe de que cor eram as nuvens e ouví-la responder que eram amarelas e cinzas e violetas?
Ele bebe – e se embriaga! - da compreensão que ela tem de sua arte, do seu senso estético apurado evidente até mesmo no modo como a moça arruma verduras e legumes montando uma salada.
A cena na qual que ele demonstra para a “aluna” o funcionamento de uma câmera obscura e tenta fazê-la entender a luz tem poder emocional real.
- “Você sabe o que é isso?” pergunta, mostrando à moça uma caixa de madeira.
É como assistir a um par de pirralhos trocando segredos debaixo de um cobertor. E quando esse Vermeer pintor fala das imagens projetadas pela geringonça, o faz rapidamente e com paixão, as palavras fervendo para fora dele.
Embora Griet abaixe a cabeça na presença do patrão a timidez da primeira-mulher-na-história-desse-mundo a entender uma camara obscura parece insincera. Outras vezes, Vermeer e Griet olham um para o outro, silenciosos, aflitos, ele por desejo, ela por submissão e deferência e a gente tem a sensação de que qualquer diálogo seria uma intrusão demasiado grosseira neste esplendor visual.
Mas o filme é tão ambicioso e intrigante e bonito que a gente fica ligado, comendo pipoca e bebendo os detalhes. Na verdade os protagonistas conversam muito mais sobre arte e religião e família na novela de Chevalier do que no filme. Diz o pintor católico à serva protestante:
- “As pinturas podem servir a um propósito espiritual para os católicos, mas recordam também que os protestantes veem Deus em toda parte, em tudo. Coisas - mesas e cadeiras, tigelas e cântaros, soldados e donzelas - eles não estão celebrando a criação de Deus também?”
Quando ele está pintando o quadro que reconhecemos como Mulher Escrevendo uma Carta, Griet altera a posição do pano colocado sobre a mesa, amarrotando-o. Quando Vermeer retorna ao estúdio e a questiona por que o fizera ela responde:
- “Alguma desordem na cena é necessária para contrastar com a sua tranquilidade. Algo para provocar o olho. E, no entanto, deve ser algo agradável para os olhos também, e é, porque o pano e o braço da figura estão em uma posição similar”.
O vínculo entre mestre e empregada se aprofunda. Entre eles cresce uma cumplicidade que é profundamente erótica, embora nunca carnal. O mundo secreto que compartilham não é verbalizado por nenhum dos dois, pois ela é uma criada e ele um artista auto-absorvido e suas vidas só podem se tocar no estúdio.
Griet luta para saber quem ela é e onde ela pode se encaixar, vibra com a intoxicante descoberta de seus próprios dotes perceptivos, diverte-se moendo as cores, encanta-se quando Vermeer ensina-a a misturar as tintas, tendo o cuidado de manter as “conversas” em segredo, pois ambos sabem que Catharina reagiria mal se desconfiasse dessa intimidade “artística”.
Em contraste, Maria Thins, a ambiciosa e pragmática sogra do artista, acredita que Griet pode ser útil para a carreira do genro. As encomendas dele são mediadas pela imperiosa Maria, cujo objetivo de vida parece ser manter Vermeer nas boas graças de van Ruijven, o patrono rico do pintor, a quem ela bajula de dia, de tarde e de noite. Sucede que o lascivo colecionador tem bom olho para a beleza e mantém os seus em Griet.
“Você tem olhos muito grandes”, diz o velho à garota, transformando um elogio em assédio sexual. Aliás o ator parece apreciar cada momento do assalto. Seus apetites francamente projetados fazem dele a única pessoa no filme capaz de prazer. Ele descreve para a moça o contato da seda contra a pele de uma mulher como se a estivesse acariciando. Só que a caça foge e o mecenas deseja-a ainda mais.
Se Vermeer é muito tímido para revelar sentimentos por sua criada, Van Ruijven não é. Ele quer porque quer a moça e, de lambuja deseja uma pintura da menina. Isto, naturalmente, seria inaceitável para Catharina, cuja qualidade mais desenvolvida é a insegurança mas não é nada demais para a senhora sua mãe, que deve manter o rico patrono da família feliz e todas as boquinhas circundantes alimentadas.
Assim Vermeer aceita a encomenda para pintar um retrato sensual de Griet e ela torna-se sua modelo.
É aqui que tanto o romance quanto o filme se tornam mais complicados do que o relato de uma obsessão erótica sublimada pelo êxtase artístico. A pintura foi encomendada pelo rico patrono de Vermeer, Van Ruijven, que desejava possuir um retrato sensual de Griet, uma imagem que estimulasse a sua cupidez estética.
Mas, sem que ninguém diga uma palavra, se compreende que Van Ruijven, como um frequente e honrado visitante da casa de Vermeer, terá ampla oportunidade de assediar sexualmente a criada e de levá-la para cama. A pintura para o colecionador seria um souvenir da caçada.
Há, portanto, cheiro de enxofre nessa encomenda da qual o pintor, financeiramente sempre com a corda no pescoço, é ambiguamente cúmplice: ele se prepara para vender Griet de corpo e alma, e a pintura se torna o símbolo dessa traição.
Essa impressão – ou desconfiança - era compartilhada pela mãe de Griet que acreditava que as pinturas de Vermeer “não eram boas para a alma”. Diz ela:
- “Do jeito que você fala desse quadro parece que ele é uma cena religiosa. É como se a mulher que você descreve fosse a Virgem Maria quando ela é apenas uma mulher”.
Também tem peso no enredo do livro a passagem de Anton van Leeuwenhoek, o inventor óptico e amigo de Vermeer que virou astrônomo e geógrafo nos seus quadros, que adverte Griet quando a vê posar para a Garota:
- “Os olhos dele valem um quarto cheio de ouro. Mas às vezes ele vê o mundo apenas como ele quer que ele seja, não como ele é. Ele não entende as consequências de sua visão para os outros. Ele pensa somente em si mesmo e em seu trabalho, não em você. As mulheres em suas pinturas - ele as aprisiona em seu mundo.”
O fato é que Vermeer e Griet se aproximam mais ainda durante as sessões secretas de modelagem para o retrato e Catharina – grávida outra vez! – e o resto da família sentem que algo está acontecendo. Griet tem que enfrentar a hostilidade da filha manipuladora do pintor, Cornélia, que a acusa inclusive de roubo. Quando Vermeer defende a criada e desmascara a própria filha, o ciúme passa a atormentar Catharina.
A senhora Vermeer demonstra ser, se não sem noção, muito masoquista pois eventualmente o marido convence a esposa a permitir que Griet se mude do seu porão escuro de terra batida e passe a pernoitar no sótão, mais perto do estúdio do patrão, onde ela poderia misturar suas tintas em paz. E então, é claro, eles começam a dormir juntos?
Não nestes livro ou filme.
Com certeza a atração entre Griet e Vermeer é o motor da história mais significa muito mais do que ela mesma. Há um elemento erótico, complexo e revelador, mas isso nunca é mais do que implícito. Na verdade ela sente um fascínio crescente por ele e seu talento, mas tem que lutar contra o assédio sexual cada vez mais afoito de Van Ruijven e com a falta dele por parte do dono da casa que não toma as providências.
Não é à toa que a Griet pareçe sempre confusa, prestes a cair no choro e que procure conforto nos braços do namoradinho. Quanto à carne, é Pieter, o filho do açougueiro e eventual refúgio, que agita Griet. O que Vermeer significa para ela é a transformação, o despertar de uma vida maior e um poder insuspeito: o da arte!
A mãe de Griet, uma mulher sábia, é cautelosa com o apego de sua filha a seu mestre e atravessa o filme ansiosa para vê-la seguramente casada com o jovem rapaz do “nível” dela, um bom marido em um mundo onde status e oportunidade são atribuídos por casta.
Griet gosta do jovem Pieter, sente-se à vontade com ele. Na verdade, ela está tão intimidada e assustada que já mal fala com Vermeer, o homem do seu encanto. Aquele que a deseja carnalmente, aquele que foi cativado pelo brilho de seus belos olhos, lábios úmidos e bastos cabelos, mas que decide sublimar a paixão expressando-a em uma obra de arte.
O fato é que o pintor decide também que a Griet precisa posar com os brincos de Catharina. Como as orelhas da moça não são furadas, ele contribui com ternura para essa penetração. A impressão que se tem é a de que Griet percebe que, mais cedo ou mais tarde, será possuída quando sua orelha é dolorosamente perfurada por Vermeer e ela sangra.
Trata-se de um defloramento simbólico ou metonímico. Em seguida Griet procura Pieter e, como a carne é fraca, eles terminam se amando torridamente em um celeiro. E ficamos com a impressão que a garota entregou-se antes que lhe tomassem a virgindade.
Com a orelha devidamente perfurada e sempre em segredo Griet posa para Vermeer adornada pelos brincos da patroa e o pintor finaliza o retrato da Garota com o Brinco de Pérola. Mas Catharina descobre que seu marido tem secretamente pintado um retrato de Griet para van Ruijven e que a moça tem modelado com as suas pérolas. Ela acusa sua mãe de cumplicidade com a amante do marido, invade o estúdio e exige que Vermeer lhe mostre o quadro.
- “É obsceno!” Catharina grita, precipitando-se com uma faca para destruir a tela e falhando.
No máximo, a pintura teria parecido sutilmente sensual no século XVII. Muitos contemporâneos de Vermeer, como Rembrandt, estavam pintando nus frontais e esplêndidos.
E então uma Catharina ensandecida expulsa Griet, em estado de choque de sua casa. O marido não se opõe e a garota regressa à casa paterna onde mais tarde é visitada não pelo pintor mas pela cozinheira da família que lhe entrega uma encomenda: um pacote selado contendo o lenço azul com o qual ela escondia os cabelos pousando para a tela e, escondidas nas suas dobras, as pérolas.
O clímax desse enredo é ver Griet tomar o seu lugar tanto na tela como na história, tendo pago pelo privilégio com a sua reputação, um terrível preço a pagar na Holanda do século XVII.
Tanto o romance quanto o filme são densos, misteriosos, impregnados de atmosfera e enraizados na escravidão e negação da vida de uma serva. Além disso são profundamente reveladores sobre o processo criativo da pintura e é melhor ler e/ou assistir com um livro sobre as pinturas de Vermeer aberto à nossa beira.
O longo close-up do rosto de Griet enquanto ela modela e a tomada final mostrando a obra de arte amorosamente são inesquecíveis. O filme é uma verdadeira pintura, uma homenagem inteligente e detalhada à arte do pintor.
Mas a cena que, na minha opinião, resume o filme, uma sequência impecável, mostra Griet sozinha no estúdio do pintor olhando para a tela em que ele está trabalhando – A Criada com uma Jarra de Água. A garota olha para a composição, para o que está sendo pintado, olha para trás, para frente. E então ela afasta a cadeira que está próxima da janela, eliminando-a da composição.
Quando Vermeer volta e vê o que ela fez, ele estuda cuidadosamente a composição e também remove a cadeira de sua pintura. E finalmente pergunta à garota porque movera a cadeira ao que ela responde:
- “Ela estava encurralada!”
É que Griet jamais poderia ser uma açougueira, mas poderia ser uma pintora. A humanidade tem Shakespeares e Machados de Assis analfabetos, Mozarts que nunca ouviram uma nota, pintores que nunca tocaram em um pincel. Griet poderia ser uma pintora e Vermeer percebeu isso.
Entendeu o senso pictórico da garota, mesmo quando ela estava só organizando seus objetos de trabalho, ou recusando-se a limpar as janelas porque iria alterar a luz de um trabalho em andamento, ou observando que um mapa ao fundo enfraquece a composição, ou rearranjando um pano azul para fornecer o toque necessário de desordem para animar a serenidade e mesmice cromática de um retrato.
Ela soube, antes dele, que seria precisamente a faísca do brinco aquilo que acenderia o seu retrato. Da mesma forma que soube antes de seu pintor que usar os brincos de Catharina significaria um desastre. Insistiu, interessada apenas na pintura, não em si própria nem nas consequências que ela enfrentou recusando-se a se dobrar.
Essa recusa de desistir da obra de arte é o triunfo do livro e do filme. Nos momentos de maior intimidade entre a pobre criada e o famoso artista os vemos sentados lado a lado em comunicação sem palavras, misturando tintas, fazendo ambos o mesmo trabalho, compreendendo-se e compartilhando algo mais.
Não acredite que esse filme é sobre a misteriosa identidade da modelo, ou sobre as fontes de inspiração de Vermeer, ou sobre as pinturas de gênero. Se fosse sobre essas coisas todas teria sido um filme muito chato.
Garota com um Brinco de Pérola é sobre como um homem e uma menina que poderia ser sua filha compartilharam uma compreensão profissional que nenhum deles tinha de qualquer maneira com mais ninguém.
Eu olho para a pintura e percebo finalmente que Griet está dizendo a Vermeer, sem usar qualquer palavra, muito mais do que disse no filme quanto viu o seu retrato concluído:
- “Você capturou a minha alma”.
Ela está dizendo, muito principalmente, que se pintura fosse dela a teria pintado exatamente assim.



28/07/2017

O Oitavo “Ciclo de Viagens”

 Navio Aeródromo Chinês - imagem - Revista do Clube Naval

 Domingos Ferreira 
“O Navio-Aeródromo Liaoning, da Marinha do Exército de Libertação Popular da China, e mais alguns navios menores, estão operando no Leste do Mediterrâneo, com base no porto de Tartus, ao Norte da Síria, onde desembarcaram 1.000 fuzileiros navais. Suas aeronaves e a tropa estão cooperando com a Rússia nos combates contra o Estado Islâmico na região.”
Essa notícia apareceu na imprensa de vários países da área, em meados de outubro de 2015. Ela veio acrescentar mais inquietação ao dramático quadro político, estratégico e militar no Oriente Médio, desde o final da I Guerra Mundial, seguido pela extinção do império turco-otomano, a II Guerra Mundial, a criação do estado de Israel, a Guerra Irã/Iraque a invasão do Iraque, perpassados pela extrema valoração do petróleo desde então.
A inesperada e robusta presença militar da China na região traria novos fatores de peso ao indecifrável e interminável xadrez ali jogado pelas grandes potências, cujo teatro mais dramático atual está nas areias encharcadas de sangue da Síria.
De fato havia navios chineses no Mediterrâneo, mas não o NAe Liaoning. Eles eram navios de guerra de médio porte, pertencentes a um dos Grupos-Tarefa da Força-Tarefa Permanente 145, da Marinha do Exército de Libertação Popular da China, PLANavy, ou PLAN. Muitos desses GTs estão, há alguns anos, operando nos sete mares, com a missão específica de mostrar a bandeira chinesa a todos os povos do mundo. Eles podem ser identificados, metaforicamente, como os integrantes do “8º Ciclo de Viagens” do Almirante Zheng He, seis séculos depois, desta vez em todas as latitudes e longitudes... 
O Brasil recebeu a visita de um desses GTs, constituído por uma fragata, um contratorpedeiro e um navio de apoio chineses, em outubro de 2013, quando estiveram no Rio de Janeiro. Sua programação, tanto no mar como nos portos, foi muito semelhante ao que ocorre, desde sempre, com rotineiras visitas de navios de guerra de outras marinhas. As diferenças estavam em que eles tinham vindo do Chile, e certamente de outros países, onde fizeram visitas semelhantes.
Fragata Antiaérea Chinesa - imagem - Revista do Clube Naval

Cabe ressaltar que a visitação pública a esses navios atingiu uma presença muito grande de chineses oriundos de outros estados do Brasil, que viajaram para o Rio de Janeiro com tal finalidade. Além desse GT, o porto de Salvador recebeu, em abril próximo passado, a visita de um navio hidro-oceanográfico chinês, então operando no Atlântico Sul.
Quanto à suposta presença do NAe Liaoning no conflito da Síria, em outubro de 2015, o que ocorreu, de fato, foi a presença de um GT chinês padrão que visitou o Egito, dentro do procedimento adotado pela FTP 145. Esses navios tinham efetuado visitas na costa Leste da África e navegado pelo Mar Vermelho, onde estiveram no porto de Jedá (Meca), da Arábia Saudita. Em seguida, penetraram no Mediterrâneo, pelo Canal de Suez. Isso deu uma grande visibilidade a eles, causando vários boatos.
Além dos já citados, é longa a enumeração dos países visitados pelos GTs da Força Tarefa Permanente 145 da China, nos últimos anos, em todos os continentes. A título de exemplo, podem ser citados Portugal, Inglaterra, Espanha, Alemanha, França, Itália, Suécia, Finlândia, Rússia, etc... na Europa; Canadá, Cuba, México, Argentina, Guatemala, Peru, Venezuela, Colômbia, etc... nas Américas ; Austrália e Nova Zelândia, na Oceania; Marrocos, Nigéria, Camarões, Angola, Namíbia, África do Sul, Moçambique, Quênia, Djibouti, etc... na África; Índia, Japão, Indonésia, Timor Leste, Miamar, Tailândia, Filipinas, Vietname, etc... na Ásia. 
Não à toa, o caso dos Estados Unidos é singular. Nos primeiros dias de setembro de 2015, um GT de cinco navios chineses, de porte médio, navegou ao longo das ilhas Aleutas (americanas) e percorreu as águas territoriais da costa do Alaska. Esse fato se passou logo após o presidente Obama ter visitado aquele estado e, também, pouco antes de ele ter um encontro com o presidente chinês em Nova York. Além disso, dois GTs da FT145 chinesa visitaram, em novembro do mesmo ano, cidades das costas do Leste e do Oeste americanos, dentro do padrão pré-estabelecido.
Essa intensa movimentação naval chinesa tem semelhança com o que os EUA fizeram em 1907/1909, quando sua “Great White Fleet” efetuou a circunavegação do globo terrestre. O então presidente Theodore Roosevelt tinha motivações semelhantes aos atuais dirigentes chineses, ao mostrarem a todos os povos que estão chegando preparados para o jogo bruto no grande teatro político e estratégico mundial. A única diferença na execução dessa magna tarefa é que os navios americanos navegaram juntos, enquanto os chineses ora operam navios que frequentam os cinco continentes.
A Marinha do Exército de Libertação do Povo da China, PLAN, já é a primeira força naval dos mares, em número de unidades, que somam 783 incluindo navios de combate, auxiliares e de defesa costeira. E ela cresce em ritmo acelerado, dentro de um orçamento de defesa anual de US$155 bilhões, em 2016.
A título de comparação, a Marinha dos EUA dispõe de 470 navios de combate e auxiliares, incluindo defesa costeira, dentro de um orçamento de defesa de US$581 bilhões, o que possibilita manter essa ordem de grandeza e renovação constante. A Rússia é a terceira colocada, com 350 navios de combate e auxiliares, com um orçamento de defesa bastante reduzido para US$46,6 bilhões.(1)
Os chineses, desde 1950, quando foi formalmente criada sua Marinha, no início do governo de MaoTseTung, fizeram um enorme esforço para atingir um papel relevante nas atividades no mar. No princípio, tiveram uma colaboração decisiva da União Soviética, por razões político-estratégicas da Guerra Fria.
Isso resultou em uma participação inicial dominante de equipamento russo em seus meios flutuantes. Tal quadro alterou-se, paulatinamente, conforme a histórica diligência chinesa absorvia as tecnologias necessárias à construção de seus navios, dos menores aos maiores. O mesmo ocorreu com a fabricação de sistemas de armas, dos mais simples aos mais complexos, dentro de um procedimento que abrange todos os setores industriais da China.
Na virada do século XXI, simbolicamente denominado “Século dos Mares”, pelo Almirantado chinês, a maioria dos meios flutuantes incorporados às suas forças navais já era projetada e construída no país, com o objetivo de atingir a totalidade. Dentro de tal procedimento, os setores aeronaval e dos grandes cruzadores com mísseis balísticos, por suas complexidades, foram os últimos a participar nessa extraordinária caminhada para a desejada supremacia nos mares.
 O NAe Liaoning é o inacabado “Varyag”, da Rússia, cujo casco foi adquirido em 1998, pela China, reformado, e concluído em 2012, quando entrou em serviço na PLAN. Ele tem bem servido de laboratório para os chineses adquirirem conhecimento e experiência em arquitetura, engenharia, logística e operações aeronavais. Essas últimas são realizadas com diversas aeronaves, destacando-se os caças J15, supersônicos (Mach 1,98).(2)
O resultado concreto de tais esforços surgiu em 31/12/2015, com o início da construção, no estaleiro de Dalian, no nordeste do país, do primeiro de dois NAes “totalmente chineses”, com cerca de 300m de comprimento e 60 a 70 mil toneladas, em uma série de seis, a ser completada até 2030.
Esse esforço ciclópico da China, em três gerações, já resultou em uma gigantesca Marinha, que se reflete no resumo apresentado a seguir.
-  Distritos Navais : 7
- Pessoal: 250.000 militares, incluindo cerca de 50.000 Fuzileiros Navais; 56.000 integrantes das Forças Aeronavais (650 aeronaves) e 35.000 da Força de Defesa Costeira.
As unidades de combate e auxiliares da Marinha da China (PLAN) são assim distribuídas, em termos de tipos e quantidades de navios: 
Marinha de Guerra Chinesa - Revista do Clube Naval

Há ainda alguns aspectos a destacar nestas considerações finais. O principal dentre eles é terem sido evitadas menções ao armamento nuclear. É óbvio que a existência dele perpassa todos os níveis operacionais de emprego dos seus meios navais, com as marinhas consideradas exercendo total domínio sobre eles.
O segundo fato diz respeito à comparação entre as Marinhas da China e dos Estados Unidos. Atualmente, a Marinha Americana é muito superior em quase todos os quesitos a atender. No caso, cabe destacar o setor aeronaval, dispondo de dez Navios-Aeródromos de grande porte, com deslocamentos acima de 100.000 toneladas e cerca de 3.000 aeronaves em diversas atividades.
Contudo, o que se tenta ressaltar neste texto é o fato de que a jovem Marinha chinesa, em três gerações, atingiu o segundo lugar dentre todas as demais, e caminha celeremente para ombrear-se com a Marinha dos EUA dentro de poucas décadas. Os crescentes atritos entre elas, nos mares orientais, já asseguram isso.
É conveniente, também, atentar para o fato de que a população da China atual é 90% constituída pela etnia Han, a mesma que a governava durante a dinastia Ming (1368-1644) quando foi formalizado o conceito de “Império do Meio”, e fechou-se, arrogantemente, ao resto do mundo.
Outra e última ressalva diz respeito à mínima inclusão no texto de detalhes sobre os sistemas de armas em uso nos navios e aeronaves, que incitam enorme curiosidade. Quem não fica intrigado com um míssil balístico hipersônico (Mach 4,5/5,0)(2), com penetração atmosférica controlada, utilizável de aeronave, navio de superfície ou submarino mergulhado.? Ele pode atingir, com ogiva nuclear ou convencional, um poderoso NAe, a 50 milhas (92,6 km) de distância, dentro de 5 minutos após lançado. Por isso são chamados de “Matadores de Porta-Aviões”. A PLAN - Marinha da China já dispõe deles. Tecnologia russa?... Chinesa?
A China anunciou, recentemente, e já está implantando, o programa "One Belt One Road". Trata-se de um gigantesco empreendimento de uma versão moderna da "Rota da Seda" e dos "Ciclos de Viagem dos Navios do Tesouro". Seus objetivos principais são ampliar (dominar?) o comércio com a Eurásia e assegurar seu próprio abastecimento de petróleo. Para tanto, já criou um Banco de Desenvolvimento, para apoio financeiro, operando centenas de bilhões de dólares.
Encerro este texto com palavras do grande Almirante Zheng He, escritas há seiscentos anos. Elas estão gravadas em uma placa de bronze no monumento em sua honra existente no porto de Chang Le, na província de Fu Jian, na costa SE do Mar da China:
“Nós navegamos mais de 100.000 li (30.000 milhas marítimas) de imensos espaços de mar, enfrentando enormes ondas oceânicas, como montanhas se elevando aos céus; e nossos olhos avistaram regiões bárbaras muito distantes, escondidas entre translúcidos vapores azuis; enquanto as velas enfunadas, içadas nos grandes mastros, parecendo nuvens, nos levavam dia e noite, tão rápido como uma estrela, ao atravessar aquelas ondas selvagens, desbravando amplos e novos caminhos.”
Observações
(1) 2016 - GFP/ Global Firing Power -World Military Strength –Total Navy Ships Strength (by country);
(2) Mach 1,0 = velocidade do som = 1.250 km/hora