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Moacir Pimentel
Ambos os trabalhos de ficção - o romance escrito em 1999 pela escritora
Tracy Chevalier e o filme que fizeram a partir dele de nome Garota com um
Brinco de Pérola - são muito interessantes mas não têm qualquer compromisso com
a verdade histórica e foram profundamente injustos em algumas de suas
caracterizações, como no caso da esposa do pintor, Catharina Vermeer, que
jamais foi uma antagonista do trabalho do marido.
Johannes Vermeer morreu deixando nas costas da mulher além das crianças
para cuidar uma dívida enorme. Inúmeros relatos guardaram para a posteridade um
vislumbre de como Catharina lutou na pobreza para manter na família e longe das
mãos de seus credores ao menos uma das obras-primas do marido, A Arte da
Pintura. Há que suspeitar que ela tenha agido assim por ter orgulho de seu
trabalho.
Sabemos por registros históricos ter sido Catharina mimada pelo esposo
para compensá-la de uma triste infância na qual fora vítima da violência de um
pai cruel. Mas o sucesso do livro e principalmente do filme de certa forma
condenaram Catharina e Johannes à infelicidade conjugal e à indiferença afetiva
na imaginação popular. Parece-me que os quinze filhos que fizeram juntos provam
o contrário (rsrs).
Documentos sobreviventes provam que Johannes e Catharina viveram um
casamento tão harmonioso e tranquilo quanto lhes permitia tal número de
descendentes. A fertilidade do casal indica que se casaram por amor e não por
arranjos familiares.
Não me entenda mal: eu recomendo tanto o livro quanto o filme, cujos
enredo e script são excelentes. E entendo que seja apenas humana essa
curiosidade sobre quem a Garota pode ter sido. Esse belo rosto virado para nós
há séculos atrás exige que nos perguntemos: quem era ela?
Mas ninguém tem nada a ganhar com a imposição no imaginário popular de
estereótipos modernos, especialmente se negativos e injustos para com figuras
históricas que viveram há mais de trezentos anos e principalmente se uma delas
legou ao mundo algumas das mais complexas e comoventes imagens do sentimento
humano.
A gente se pergunta como um artista pode ter sido capaz de suportar e
até mesmo prosperar criativamente sob o fardo de tamanha paternidade. Mas é
sabido que os artistas produziram e produzem obras-primas em uma grande
variedade de circunstâncias e eu prefiro acreditar que Johannes e Catharina
simplesmente não conseguiam ficar longe um do outro (rsrs)
Acontece que os cérebros humanos gostam de histórias e especialmente
daquelas que têm começo, meio e fim e solucionem todos os mistérios. E foi
exatamente isso que o romance bem abotoado de Tracy Chevalier fez. Como quando
se trata de Vermeer só se pode especular, a escritora, a partir de um enigma no
coração da sua obra, se sentiu à vontade para in-ven-tar sua fascinante novela
Garota com o Brinco de Pérola.
Muito bem. Uma vez esclarecido que - ao contrário do que muita gente
pensa - o livro e o filme são pura ficção, aí temos mais um probleminha pela
frente: os dois além de bater de frente com a real são diferentes entre si.
(rsrs)
Eu gosto mais de qualquer livro do que dos filmes inspirados por eles. É
claro que o mundo do cinema tem um glamour com o qual um livro não pode
competir. Mas apesar disso, as luzes brilhantes de um filme não necessariamente
ofuscam e anulam a pequena e constante chama de um bom livro. Na verdade, essa
chama pode durar muito mais do que o glitter e os efeitos especiais dos screenplays.
Mesmo sendo a Garota uma história muito visual – afinal trata-se da vida
de um pintor! - Tracy Chevalier não escreveu o romance como um roteiro para um
filme, ou seja, algo facilmente traduzível em imagens. Apesar de alguns
tropeços e lacunas eu acho que o filme conseguiu capturar o romance, a verdade
emocional do livro, inclusive compreendendo que a chave para a história era a
sua contenção. Contrariando a vocação hollywoodiana os personagens principais
não vão para debaixo do edredon(rsrs)
(Se vai ter spoilers neste post? Vários!
Se você deseja assistir o filme, é melhor virar a página.)
Em geral, os filmes têm narrativas mais simples e são mais lineares e
ativos do que os livros que, em vez, são capazes de nos fazer entrar e sair da
cabeça dos seus personagens. Livros, muito mais que os filmes, permitem que os
seus leitores os interpretem e façam seus próprios enredos. Como controlar o
que os leitores pensam, ou como eles retratam cenas e personagens?
Seria triste se os filmes obliterassem os livros ao longo de seus
caminhos diversos. Quem lê a novela e assiste o filme Garota com um Brinco de
Pérola, ao fim e ao cabo, fica com duas garotas, duas Griets na cabeça. Uma é a
luminosa e sensual Griet de Scarlett Johansson e a outra a da escritora, a
original, pequena e quieta mas com uma presença constante não diminuída por ter
ganho uma irmã mais glamorosa.
Face a tudo que já foi dito você pode avaliar que Vermeer e sua vidinha
devagar quase parando – exceto no quesito da reprodução (rsrs) – dificilmente
seriam temas para um filme. Filmes tendem a ser sobre coisas que acontecem e
não aconteceu muito na vida do pintor holandês do século XVII além de algumas
mulheres lendo, escrevendo, fazendo música, apreciando a rua, ou sendo
cortejadas por cavaleiros obscuros em quartos tranquilos decorados com uma
mistura de parcimônia e luxo.
O filme da Garota é uma história sobre coisas não ditas, palavras mudas,
oportunidades desperdiçadas, potencialidades não desenvolvidas e lábios que não
foram beijados. Todos esses elementos se encontram na pintura que inspirou o
roteiro na qual uma garota está quase saindo e quase sorrindo e quase falando.
Poderiam ter errado a mão nesse enredo, mas deu certo, porque em vez de
cozinhar um melodrama apaixonado e intrigas românticas o filme conta uma
história que está contente com a sua simplicidade. Como a pintura de Vermeer,
ele é um filme contemplativo, reflexivo, subjugado, sem revelações
espalhafatosas conflitando com o seu verdadeiro estado de espírito.
Às vezes, um homem e uma mulher simplesmente se olham e se encantam e se
consideram mas entre eles há um abismo grande demais para ser superado e eles
sabem imediatamente que sim, poderia acontecer mas que nunca vai rolar. Essa é
essencialmente a mensagem dessa história.
A Garota com um Brinco de Pérola é um filme tranquilo, quase triste, no
qual qualquer turbulência emocional permanece abaixo da superfície e que tem um
grande tema: uma obra de arte envolta em mistério e um projeto que, apesar de
arruinar a reputação de uma jovem mulher, garantiu-lhe um lugar na história.
O seu sucesso e ritmo depende da gente acreditar na tensão sexual entre
Vermeer e Griet, sem que haja entre eles qualquer contato de primeiro grau
(rsrs) E acreditamos, embora Tracy tenha escrito um romance cheio de nuances e
narrativas internas que não podem ser facilmente traduzidas para a tela.
O filme é pura tentação para os olhos e eu, ao fim e ao cabo, fui capaz
de perdoar o script por sua falta de ação e drama e algumas tentativas
superficiais de caracterização. Porque o cuidado com o qual o filme foi feito,
a fotografia, a ambientação das paisagens e ambientes, a magistral e absorvente
iluminação e a visão de Vermeer merecem ser vistas.
A reprodução da cidade de Delft do século XVII é quase perfeita: as ruas
de paralelepípedos, os canais e pontes, os frontões de tijolos, a praça com uma
estrela de oito pontas no centro, o mercado. Apenas aqui e ali alguns arcos me
pareceram mais venezianos do que góticos. É como uma linda pintura assombrada
por melancolia, um quadro onde todos parecem existir de verdade.
Os interiores e exteriores, o design suntuoso, a luz, a aparência
vermeeriana de tudo fazem cada cena parecer com uma pintura de Vermeer. Han van
Meegeren, o famoso falsificador que conseguiu até mesmo vender um Vermeer
fajuto para Hermann Göring não teria forjado nada melhor (rsrs)
Aliás as reproduções de pinturas de Vermeer e de outros pintores
seiscentistas holandeses penduradas em todos os lugares são de grande
qualidade. Assim como os objetos, os móveis, a comida, as louças. Tudo bem que
ao assistir focalizamos o rosto de Scarlett Johansson e não a cerâmica de Delft
azul e branca empilhada na cozinha. Mas como tudo mais ela é autêntica nessa
suntuosa festa visual. Para ser franco, a quantidade de detalhes visuais das
obras do pintor às vezes ameaça paralisar o filme.
Durante todo o filme fazemos a mesma coisa que experimentamos com
relação ao quadro: especulamos.
E é exatamente isso que fazem tanto o livro quanto o filme, recriando
pacientemente a vida na Holanda do século XVII, a rotina diária na casa do
pintor, com a sogra, as crianças e um casamento mais tenso do que qualquer
registro confiável sugere, e introduzindo uma personagem imaginária mas plausível,
uma linda empregada fictícia com quem Vermeer forma um vínculo, um laço mal
articulado e jamais consumado.
Mas... em sua transferência para a tela a história se torna menos sobre
a garota e mais sobre o pacto secreto que Vermeer tem com a câmara. Porque
embora ele tenha pintado mais de dois séculos antes da invenção do cinema, esse
artista antecipou o modo como os filmes criam outros mundos e os enchem de luz.
A única coisa que realmente interessava a ele era a luz. Enquanto
Rembrandt era a luz sobre os rostos, Vermeer era apenas a luz. Ponto parágrafo.
É como se ele tivesse, às voltas com a sua câmara obscura, antecipado a
fotografia. Como já conversamos há evidências convincentes - nos espaços
lustrosos e azulados, nos móveis artisticamente desordenados, numa cadeira
estofada de veludo puxada para trás, numa toalha amarrotada, numa cortina
estampada e na qualidade particular de suas bordas e sombras – de que ele usava
lentes para pintar.
O estúdio descrito no livro e visto no filme poderia muito bem ter sido
o de um fotógrafo vitoriano com diferentes roupas, e panos e adereços e móveis
arranjados em cenas para a câmera obscura do pintor. De qualquer maneira, foi
na era da fotografia que o mundo entendeu que Vermeer era um gênio. A fama que
ele tem hoje é um fenômeno totalmente moderno.
A redescoberta de Vermeer - quando Proust se encantou com o quadro A
Vista de Delft! – rolou logo em seguida à invenção da fotografia. E ele
explodiu na cultura popular quando do nascimento do cinema.
Faz todo o sentido porque na minha humilde opinião Vermeer era muito
mais um cineasta do que um fotógrafo. Apesar de toda aquela quietude as
pinturas dele respiram e se movem e são dramas. Ele é um dramaturgo da luz.
Como já fizera Caravaggio antes dele, ao usar a luz para criar drama
Vermeer antecipou o trabalho dos cineastas. Sua Garota é uma tomada perfeita
que primeiro isola a atriz na escuridão, para depois fazê-la brilhar com a luz
que entra à esquerda como estamos carecas de ver acontecendo com os close - ups
das estrelas de cinema.
Na cena pintada por ele a luz é tudo mas não é assim que ela atua em uma
fotografia:
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A luz funciona no filme, assim como nas tintas de Vermeer, porque é
teatral, é pausada, tem emoção, carne e sangue.
As suas pinturas são quase jogos abstratos de luz, tanto que quando a
gente olha para os rostos de perto, eles se desintegram, desaparecem em luz
clara e turva e muito estranha.
Vermeer, há séculos atrás, já era um cineasta que usava e abusava da luz
natural, que já contava histórias - ou melhor, insinuava histórias que poderiam
ser contadas - com a luz ambiente atmosférica enchendo os interiores pálidos de
uma casa holandesa, iluminando telas brancas, enquadrando o olhar indecifrável
dessa menina com um único brinco de pérola emprestado.
Mas que tal deixar de blábláblá artístico e conversar sobre a história
do livro e do filme?
Logo na abertura vemos a maravilhosa Scarlett Johansson descascando uma
cebola. Vamos combinar? Da primeira vez que eu vi a atriz há valentes anos
atrás ela tinha só quinze anos e estava berrando em um filme de terror cheio de
aranhas gigantescas e furiosas. Não recordo de absolutamente nada sobre a trama
a não ser que alguns dos seres aracnídeos olhavam para a Scarlett exatamente
como eu – embevecidos e de queixo caído!
Em Garota com o Brinco de Pérola a atriz já era “de maior”. Nossinhora!
Já o Colin Firth, que interpreta um romântico Vermeer cativado pelo
florescimento das mente e beleza intocadas de sua modelo, é capaz de nos fazer
dar asas à imaginação especulativa sobre como teriam sido os relacionamento dos
artistas holandeses do século XVII com suas modelos desconhecidas.
Não, não se trata da Cinderela mas da Griet, uma empregada doméstica que
se tornou a musa do pintor e protagonista de uma obra prima na qual o artista
pintou sua pele tão opalescente quanto a pérola do brinco, só que em um filme
cheio de longos silêncios que vêm depois de suspiros mais longos ainda.
Pudera!! Com tal protagonista, não era para menos!
A Griet, vivida por Scarlett Johansson na telona, é uma garota holandesa
nascida em uma família protestante digna, mas empobrecida, cujo pai, um pintor
de azulejos de Delft, pertence à mesma guilda na qual Vermeer é mestre. Mas ele
perdera a visão em um acidente de trabalho que o deixou incapaz de trabalhar e
colocou seus familiares em uma situação financeira precária. Griet aprendera a
ser os olhos do pai descrevendo o mundo para ele. Ela tem um talento especial
para isso - uma consciência visual de cor e harmonia.
Griet desceu de nível social e do seu mundinho seguro ao concordar em
trabalhar na casa do pintor. Ela encara seu novo papel como um sacrifício, mas
também com um tremor de excitação pois seu pai a ensinara a reverenciar a arte.
Além disso, apesar de Griet dormir no chão de terra batida de uma adega
e de se ocupar da lavagem de roupa para muuuuitos membros da família Vermeer, o
emprego lhe garante um status especial, uma distinção: só a ela é permitida a
entrada no estúdio do mestre.
Ser uma adolescente protestante e empregada na casa da família católica
do famoso pintor Johannes Vermeer deve ter sido dureza!
-“Tape os ouvidos e mantenha-se afastada de
suas orações católicas!” recomenda-lhe a mãe, antes de Griet
amarrar e esconder os belos cabelos dentro de uma modesta touca tradicional
holandesa e sair de casa para tentar se encaixar como serva em uma casa cheia
de mulheres dominadoras.
No filme Catharina Vermeer é uma mulher ríspida e de cara amarrada,
perpetuamente apaixonada e grávida do marido. Às vezes parece estar parada onde
espera que ninguém a veja.
É grande a semelhança da atriz que encarna a personagem de Catharina com
algumas figuras de telas do artista como, por exemplo, a Mulher com um Colar de
Pérolas, vestida com um casaco amarelo forrado de pele que olha diretamente
para o seu reflexo em uma janela retro- iluminada, enquanto segura seu colar.
Ou estaria ela mostrando-se para alguém lá fora? É uma tela estranha onde a
estranheza é o drama.
O figurino da esposa do pintor nos remete a outra pintura dele na qual
uma mulher vestida de azul lê uma carta. As opiniões entre os historiadores da
arte diferem sobre se a figura está ou não grávida na pintura.
Maria Thins é a mãe de Catharina, a sogra do pintor que sempre vestida
de preto mais parece uma personagem rembrandtiana. Ela mora com o casal e, na
verdade, é o homem da casa, quem comanda as vidas dentro dela com mão de ferro
porque negocia as encomendas e gerencia o dinheiro do genro.
Ela se comporta como se fosse o capataz de uma fábrica na qual sua filha
tem que agradar o marido e produzir bebês enquanto o genro fabrica pinturas.
Ambos têm uma única produção por ano o que, segundo Maria, era demais para a
mamãe e de menos para o pintor. Dureza!
Ninguém jamais diz o que pensa nessa casa, exceto essa senhora, cujos
pensamentos são óbvios - $$$!! – tão tragicamente perspicaz e decidida a fazer
o que ela pensa que deve ser feito.
Tanneke, a leiteira que já conhecemos de pretéritas conversas, apesar de
dura na queda é a coisa mais próxima de uma amiga que Griet encontra no novo
lar.
Vermeer tenta conciliar a paz doméstica com a criatividade e em vez de
rondar a cidade à procura de temas inspiradores permanece em casa mal-humorado,
lendo e bebendo canecas contemplativas de cerveja enquanto as crianças pintam o
sete.
A ansiedade da separação da adolescente Griet de seus entes queridos
permeia o filme inteiro e ela jamais deixa de parecer perdida e exilada às
voltas com trabalhos brutais, crianças barulhentas e mimadas e uma patroa
prestes a acrescentar outra boca à ninhada.
Quando Griet chega à casa dos Vermeer, ela vê os vizinhos falidos
chorando ao lado do canal enquanto os oficiais de justiça e policiais levam
seus móveis. E teme pelos seus! Percebe-se logo por cenas como essa que esse
filme é sobre como uma jovem mulher tenta resistir a um sistema concebido para
torná-la irremediavelmente vulnerável.
Ela trabalha duro, quase sem palavras, na posição mais baixa em uma
hierarquia áspera e enfrentando até mesmo o tratamento rancoroso e cruel de
Cornélia, uma das filhas do pintor.
Entre suas outras tantas tarefas – esfregar, polir, varrer, buscar água,
lavar, passar, por, tirar e servir a mesa - Griet é encarregada das compras da
família no mercado e lá conhece Pieter, o filho do açougueiro, que se apaixona
por ela. Eles se tornam castos namorados. Tem mais.
Ela desenvolve um grande interesse pelo estúdio do patrão e seus
objetos. Quando ela pergunta à patroa se deve limpar as janelas explicando à
perplexa mulher, em seguida, que isso mudaria a luz, Catharina nos é pintada
como uma loura burra e indiferente à arte do marido enquanto fica evidente que
Griet tem uma compreensão natural da arte e uma sensibilidade superior à da
esposa petulante e à da sogra dominadora.
O golpe de mestre desse filme é o estúdio vazio e misterioso de Vermeer
que nos é tão familiar devido a tantas pinturas, habitado por um modelo de
madeira estranho e robótico e, em uma das cenas, por uma câmera obscura. Griet
muito aprecia o atelier. Ele é reconfortante para a menina orientada a limpá-lo
sem mover nada, deixando todas as coisas sempre no mesmo lugar, uma habilidade
que adquirira para dar qualidade de vida ao pai cego no lar que deixara para
trás.
Para a menina o estúdio era um oásis de paz, uma sala ordenada, vazia da
bagunça da vida cotidiana, diferente do resto da casa. Ali ela se sentia em
outro mundo, onde não escutava os gritos das crianças, o choro dos bebês, a música
de Catharina, o tilintar das chaves de Maria, o barulho das vassouras de
Tanneke enquanto com reverência espanava os objetos que conhecemos das pinturas
do artista: uma bacia, a bela cortina, uma jarra, uma cadeira enfeitada com
cabeças de leão cinzeladas.
Quando Griet passa a circular no seu espaço a sua beleza logo atrai a
atenção do intenso mas distraído Vermeer, às voltas com uma tela para manter a
família alimentada e vestida. Quando ele a vê em frente à janela, lavando as
vidraças, espiando-o por cima do ombro, ele ordena:
- “Não se mexa!”.
Ela se detém na pose e então é dispensada sem saber que se tornara a
inspiração para um outro quadro.
Vermeer percebe que Griet é inteligente de uma forma natural, que
responde instintivamente ao trabalho manual da pintura - ao ofício, à técnica,
à estratégia, até à química, que fica encantada de saber que a cor chamada
amarelo indiano era destilada da urina de vacas alimentadas com folhas de
manga.
É óbvio que o pintor e Griet conversam na privacidade do estúdio - onde
sua esposa Catharina jamais entra porque “não entende de pintura” - e ele passa
a incentivar as apreciação e curiosidade que Griet tem pela pintura e o seu
senso intuitivo de luz e cor. Ela também aprende a moer os pigmentos de Vermeer
e, gradualmente, é atraída para o processo criativo em si e sutilmente começa a
influenciar o trabalho do artista.
Impressionado com a beleza e inteligência da moça, ele logo está
apaixonado o suficiente para querer pintá-la. Ela também está muito intrigada com
Vermeer, um excêntrico taciturno cujos olhos escuros abrigam reserva, receio,
desejo e finalmente apreço.
Aqui entre nós e baixinho, que pintor não ficaria encantado pela
Scarlett – epa! Foi mal! - quero dizer pela Griet ao perguntar-lhe de que cor
eram as nuvens e ouví-la responder que eram amarelas e cinzas e violetas?
Ele bebe – e se embriaga! - da compreensão que ela tem de sua arte, do
seu senso estético apurado evidente até mesmo no modo como a moça arruma
verduras e legumes montando uma salada.
A cena na qual que ele demonstra para a “aluna” o funcionamento de uma
câmera obscura e tenta fazê-la entender a luz tem poder emocional real.
- “Você sabe o que é isso?” pergunta, mostrando à moça uma caixa de madeira.
É como assistir a um par de pirralhos trocando segredos debaixo de um
cobertor. E quando esse Vermeer pintor fala das imagens projetadas pela
geringonça, o faz rapidamente e com paixão, as palavras fervendo para fora
dele.
Embora Griet abaixe a cabeça na presença do patrão a timidez da
primeira-mulher-na-história-desse-mundo a entender uma camara obscura parece
insincera. Outras vezes, Vermeer e Griet olham um para o outro, silenciosos,
aflitos, ele por desejo, ela por submissão e deferência e a gente tem a
sensação de que qualquer diálogo seria uma intrusão demasiado grosseira neste
esplendor visual.
Mas o filme é tão ambicioso e intrigante e bonito que a gente fica
ligado, comendo pipoca e bebendo os detalhes. Na verdade os protagonistas
conversam muito mais sobre arte e religião e família na novela de Chevalier do
que no filme. Diz o pintor católico à serva protestante:
- “As pinturas podem servir a um
propósito espiritual para os católicos, mas recordam também que os protestantes
veem Deus em toda parte, em tudo. Coisas - mesas e cadeiras, tigelas e
cântaros, soldados e donzelas - eles não estão celebrando a criação de Deus
também?”
Quando ele está pintando o quadro que reconhecemos como Mulher
Escrevendo uma Carta, Griet altera a posição do pano colocado sobre a mesa,
amarrotando-o. Quando Vermeer retorna ao estúdio e a questiona por que o fizera
ela responde:
- “Alguma desordem na cena é
necessária para contrastar com a sua tranquilidade. Algo para provocar o olho.
E, no entanto, deve ser algo agradável para os olhos também, e é, porque o pano
e o braço da figura estão em uma posição similar”.
O vínculo entre mestre e empregada se aprofunda. Entre eles cresce uma
cumplicidade que é profundamente erótica, embora nunca carnal. O mundo secreto
que compartilham não é verbalizado por nenhum dos dois, pois ela é uma criada e
ele um artista auto-absorvido e suas vidas só podem se tocar no estúdio.
Griet luta para saber quem ela é e onde ela pode se encaixar, vibra com
a intoxicante descoberta de seus próprios dotes perceptivos, diverte-se moendo
as cores, encanta-se quando Vermeer ensina-a a misturar as tintas, tendo o
cuidado de manter as “conversas” em segredo, pois ambos sabem que Catharina
reagiria mal se desconfiasse dessa intimidade “artística”.
Em contraste, Maria Thins, a ambiciosa e pragmática sogra do artista,
acredita que Griet pode ser útil para a carreira do genro. As encomendas dele
são mediadas pela imperiosa Maria, cujo objetivo de vida parece
ser manter Vermeer nas boas graças de van Ruijven, o patrono rico do pintor, a
quem ela bajula de dia, de tarde e de noite. Sucede que o lascivo colecionador
tem bom olho para a beleza e mantém os seus em Griet.
- “Você tem olhos muito
grandes”, diz o velho à garota, transformando um elogio em assédio sexual.
Aliás o ator parece apreciar cada momento do assalto. Seus apetites francamente
projetados fazem dele a única pessoa no filme capaz de prazer. Ele descreve
para a moça o contato da seda contra a pele de uma mulher como se a estivesse
acariciando. Só que a caça foge e o mecenas deseja-a ainda mais.
Se Vermeer é muito tímido para revelar sentimentos por sua criada, Van
Ruijven não é. Ele quer porque quer a moça e, de lambuja deseja uma pintura da
menina. Isto, naturalmente, seria inaceitável para Catharina, cuja qualidade
mais desenvolvida é a insegurança mas não é nada demais para a senhora sua mãe,
que deve manter o rico patrono da família feliz e todas as boquinhas
circundantes alimentadas.
Assim Vermeer aceita a encomenda para pintar um retrato sensual de Griet
e ela torna-se sua modelo.
É aqui que tanto o romance quanto o filme se tornam mais complicados do
que o relato de uma obsessão erótica sublimada pelo êxtase artístico. A pintura
foi encomendada pelo rico patrono de Vermeer, Van Ruijven, que desejava possuir
um retrato sensual de Griet, uma imagem que estimulasse a sua cupidez estética.
Mas, sem que ninguém diga uma palavra, se compreende que Van Ruijven,
como um frequente e honrado visitante da casa de Vermeer, terá ampla
oportunidade de assediar sexualmente a criada e de levá-la para cama. A pintura
para o colecionador seria um souvenir da caçada.
Há, portanto, cheiro de enxofre nessa encomenda da qual o pintor,
financeiramente sempre com a corda no pescoço, é ambiguamente cúmplice: ele se
prepara para vender Griet de corpo e alma, e a pintura se torna o símbolo dessa
traição.
Essa impressão – ou desconfiança - era compartilhada pela mãe de Griet
que acreditava que as pinturas de Vermeer “não eram boas para a alma”. Diz ela:
- “Do jeito que você fala desse
quadro parece que ele é uma cena religiosa. É como se a mulher que você
descreve fosse a Virgem Maria quando ela é apenas uma mulher”.
Também tem peso no enredo do livro a passagem de Anton van Leeuwenhoek,
o inventor óptico e amigo de Vermeer que virou astrônomo e geógrafo nos seus
quadros, que adverte Griet quando a vê posar para a Garota:
- “Os olhos dele valem um quarto
cheio de ouro. Mas às vezes ele vê o mundo apenas como ele quer que ele seja,
não como ele é. Ele não entende as consequências de sua visão para os outros.
Ele pensa somente em si mesmo e em seu trabalho, não em você. As mulheres em
suas pinturas - ele as aprisiona em seu mundo.”
O fato é que Vermeer e Griet se aproximam mais ainda durante as sessões
secretas de modelagem para o retrato e Catharina – grávida outra vez! – e o
resto da família sentem que algo está acontecendo. Griet tem que enfrentar a
hostilidade da filha manipuladora do pintor, Cornélia, que a acusa inclusive de
roubo. Quando Vermeer defende a criada e desmascara a própria filha, o ciúme
passa a atormentar Catharina.
A senhora Vermeer demonstra ser, se não sem noção, muito masoquista pois
eventualmente o marido convence a esposa a permitir que Griet se mude do seu
porão escuro de terra batida e passe a pernoitar no sótão, mais perto do
estúdio do patrão, onde ela poderia misturar suas tintas em paz. E então, é
claro, eles começam a dormir juntos?
Não nestes livro ou filme.
Com certeza a atração entre Griet e Vermeer é o motor da história mais
significa muito mais do que ela mesma. Há um elemento erótico, complexo e
revelador, mas isso nunca é mais do que implícito. Na verdade ela sente um
fascínio crescente por ele e seu talento, mas tem que lutar contra o assédio
sexual cada vez mais afoito de Van Ruijven e com a falta dele por parte do dono
da casa que não toma as providências.
Não é à toa que a Griet pareçe sempre confusa, prestes a cair no choro e
que procure conforto nos braços do namoradinho. Quanto à carne, é Pieter, o
filho do açougueiro e eventual refúgio, que agita Griet. O que Vermeer
significa para ela é a transformação, o despertar de uma vida maior e um poder
insuspeito: o da arte!
A mãe de Griet, uma mulher sábia, é cautelosa com o apego de sua filha a
seu mestre e atravessa o filme ansiosa para vê-la seguramente casada com o
jovem rapaz do “nível” dela, um bom marido em um mundo onde status e
oportunidade são atribuídos por casta.
Griet gosta do jovem Pieter, sente-se à vontade com ele. Na verdade, ela
está tão intimidada e assustada que já mal fala com Vermeer, o homem do seu
encanto. Aquele que a deseja carnalmente, aquele que foi cativado pelo brilho
de seus belos olhos, lábios úmidos e bastos cabelos, mas que decide sublimar a
paixão expressando-a em uma obra de arte.
O fato é que o pintor decide também que a Griet precisa posar com os
brincos de Catharina. Como as orelhas da moça não são furadas, ele contribui
com ternura para essa penetração. A impressão que se tem é a de que Griet
percebe que, mais cedo ou mais tarde, será possuída quando sua orelha é
dolorosamente perfurada por Vermeer e ela sangra.
Trata-se de um defloramento simbólico ou metonímico. Em seguida Griet
procura Pieter e, como a carne é fraca, eles terminam se amando torridamente em
um celeiro. E ficamos com a impressão que a garota entregou-se antes que lhe
tomassem a virgindade.
Com a orelha devidamente perfurada e sempre em segredo Griet posa para
Vermeer adornada pelos brincos da patroa e o pintor finaliza o retrato da
Garota com o Brinco de Pérola. Mas Catharina descobre que seu marido tem
secretamente pintado um retrato de Griet para van Ruijven e que a moça tem
modelado com as suas pérolas. Ela acusa sua mãe de cumplicidade com a amante do
marido, invade o estúdio e exige que Vermeer lhe mostre o quadro.
- “É obsceno!” Catharina grita, precipitando-se com uma faca para destruir a tela e
falhando.
No máximo, a pintura teria parecido sutilmente sensual no século XVII.
Muitos contemporâneos de Vermeer, como Rembrandt, estavam pintando nus frontais
e esplêndidos.
E então uma Catharina ensandecida expulsa Griet, em estado de choque de
sua casa. O marido não se opõe e a garota regressa à casa paterna onde mais
tarde é visitada não pelo pintor mas pela cozinheira da família que lhe entrega
uma encomenda: um pacote selado contendo o lenço azul com o qual ela escondia
os cabelos pousando para a tela e, escondidas nas suas dobras, as pérolas.
O clímax desse enredo é ver Griet tomar o seu lugar tanto na tela como
na história, tendo pago pelo privilégio com a sua reputação, um terrível preço
a pagar na Holanda do século XVII.
Tanto o romance quanto o filme são densos, misteriosos, impregnados de
atmosfera e enraizados na escravidão e negação da vida de uma serva. Além disso
são profundamente reveladores sobre o processo criativo da pintura e é melhor
ler e/ou assistir com um livro sobre as pinturas de Vermeer aberto à nossa
beira.
O longo close-up do rosto de Griet enquanto ela modela e a tomada final
mostrando a obra de arte amorosamente são inesquecíveis. O filme é uma
verdadeira pintura, uma homenagem inteligente e detalhada à arte do pintor.
Mas a cena que, na minha opinião, resume o filme, uma sequência
impecável, mostra Griet sozinha no estúdio do pintor olhando para a tela em que
ele está trabalhando – A Criada com uma Jarra de Água. A garota olha para a
composição, para o que está sendo pintado, olha para trás, para frente. E então
ela afasta a cadeira que está próxima da janela, eliminando-a da composição.
Quando Vermeer volta e vê o que ela fez, ele estuda cuidadosamente a
composição e também remove a cadeira de sua pintura. E finalmente pergunta à
garota porque movera a cadeira ao que ela responde:
- “Ela estava encurralada!”
É que Griet jamais poderia ser uma açougueira, mas poderia ser uma
pintora. A humanidade tem Shakespeares e Machados de Assis analfabetos, Mozarts
que nunca ouviram uma nota, pintores que nunca tocaram em um pincel. Griet
poderia ser uma pintora e Vermeer percebeu isso.
Entendeu o senso pictórico da garota, mesmo quando ela estava só
organizando seus objetos de trabalho, ou recusando-se a limpar as janelas
porque iria alterar a luz de um trabalho em andamento, ou observando que um
mapa ao fundo enfraquece a composição, ou rearranjando um pano azul para
fornecer o toque necessário de desordem para animar a serenidade e mesmice
cromática de um retrato.
Ela soube, antes dele, que seria precisamente a faísca do brinco aquilo
que acenderia o seu retrato. Da mesma forma que soube antes de seu pintor que
usar os brincos de Catharina significaria um desastre. Insistiu, interessada
apenas na pintura, não em si própria nem nas consequências que ela enfrentou
recusando-se a se dobrar.
Essa recusa de desistir da obra de arte é o triunfo do livro e do filme.
Nos momentos de maior intimidade entre a pobre criada e o famoso artista os
vemos sentados lado a lado em comunicação sem palavras, misturando tintas,
fazendo ambos o mesmo trabalho, compreendendo-se e compartilhando algo mais.
Não acredite que esse filme é sobre a misteriosa identidade da modelo,
ou sobre as fontes de inspiração de Vermeer, ou sobre as pinturas de gênero. Se
fosse sobre essas coisas todas teria sido um filme muito chato.
Garota com um Brinco de Pérola é sobre como um homem e uma menina que
poderia ser sua filha compartilharam uma compreensão profissional que nenhum
deles tinha de qualquer maneira com mais ninguém.
Eu olho para a pintura e percebo finalmente que Griet está dizendo a
Vermeer, sem usar qualquer palavra, muito mais do que disse no filme quanto viu
o seu retrato concluído:
- “Você capturou a minha alma”.
Ela está dizendo, muito principalmente, que se pintura fosse dela a
teria pintado exatamente assim.