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Moacir Pimentel
Quem leu as memórias da participação do escritor George Orwell na guerra
civil espanhola, talvez se recorde de que, embora ele não estivesse em
Barcelona como um turista, fez uma descrição lírica da cidade ao descrever-se
como um sentinela em cima de um telhado e de arma na mão, vigiando a rua lá
embaixo em meio do que parecia ser uma guerra interminável entre os comunistas
e o seu próprio grupo esquerdista.
De onde se encontrava Orwell tinha uma excelente vista de Barcelona e
portanto, além de mencionar que na cidade o tráfego tinha parado, as lojas
estavam fechadas e as pedras da pavimentação estavam sendo arrancadas para
construir barricadas, falou de como lá do alto vislumbrara, um após o outro, os
edifícios altos e esbeltos, as cúpulas de vidro e os fantásticos telhados
ondulados com telhas brilhantes verdes e cor de cobre e, para leste, o
brilhante mar azul.
Com certeza que o jovem revolucionário tinha coisas mais urgentes em sua
mente do que identificar o criador daqueles telhados estranhos, mas tenho
certeza de que foi a Casa Batlló que chamou a atenção do escritor britânico,
ali no seu posto de sentinela em 1937, em um telhado qualquer perto da Praça de
Catalunya, onde os anarquistas haviam tomado a Central Telefônica e onde nasce
o Passeig de Gràcia, o endereço da surreal casa desenhada pelo arquiteto Antoni
Gaudí, cuja foto abre o post.
Nessa construção Gaudí começou a praticar mais do que o “modernismo
catalão”, que misturava o estilo mourisco com a Art Nouveau, mas uma
arquitetura inédita e personalíssima na qual usava a geometria de formas
encontradas na natureza e as temperava com a sua infinita criatividade.
Quem vai a Barcelona, via de regra termina passando a maior parte do seu
tempo caçando casas e igrejas projetadas por Antoni Gaudí. Os edifícios
projetados por ele são símbolos da cidade de Barcelona assim como aqueles da
lavra de Frank Lloyd Wright o são para Chicago.
Existe até mesmo uma “Rota do Modernismo” marcada pelas calçadas de
Barcelona e muita gente de máquinas em punho caminhando a olhar para os pés.
(rsrs) Bobagem! Os fãs de Gaudí devoram sem mastigar, às pressas e da forma
errada, em um mesmo dia, tanto as formas surpreendentes da Basílica da Sagrada
Família, quanto o colorido do descontraído Parque Güell, quanto a casa
curvilínea de nome La Pedrera, ou Casa Milá, um exemplo quintessencial do
modernismo e o último projeto que ele aceitou antes de se concentrar
completamente na Sagrada Família.
O triste é que, nesse corre corre, a maioria dos fazedores de selfies
icônicas termina passando direto e sem nem notar o belíssimo portão da Casa
Vicens, o primeiro trabalho realizado pelo arquiteto, ainda desprovido do seu
estilo característico, mas já pleno dos elementos mouros, dos arcos e colunas
que remetem à Alhambra, às reminiscências de certas entradas de casas
marroquinas, e às palmeiras mediterrâneas... ou seriam conchas do mar?
Simplesmente não se pode ver tudo nem fazer todas as fotos emblemáticas
de uma vez.
Da primeira vez que desembarquei em Barcelona, de um trem vindo da
Andaluzia e das maiores realizações artísticas do Islão, a minha cabeça estava
cheia de mesquitas e palácios mouriscos. O encantamento diante da visão da
Alhambra à luz do entardecer, das vistas longas de Granada e do céu azul
parecendo flutuar rente as suas janelas, foi exatamente a sensação que tive
diante da Casa Batlló e não acidentalmente.
A arquitetura de Gaudí foi inspirada pelo Al-Andalus não apenas em
flashes de orientalismo, em coisas mouriscas como é o caso do belo portão da
Casa Vincens ou no uso de azulejos coloridos, mas sobretudo na forma como
trabalhou o espaço.
Não podemos olhar para a Alhambra como faríamos, digamos, para a cúpula
de São Pedro simplesmente porque a primeira foi feita para ser habitada. As
paredes e os tetos de Gaudí pela cidade são tão oscilantes e irreais como as paredes
árabes da Alhambra e criam a mesma rica sensação de uma realidade à beira de desaparecer em
puro espírito, mas elas abrigaram famílias.
Nas coisas de Gaudí encontramos uma combinação única de biologia e
matemática e isso é o que atrai tanto a tantos na arquitetura dele. Suas
primeiras obras, criativas e originais, que assumiram os estilos gótico e o
revival mudéjar de seu tempo, são interessantes, mas suas obras posteriores são
simplesmente fascinantes porque são tão diferentes de todos os designs do seu
tempo, dos mais convencionais aos mais
vangardistas.
Escolhi um trabalho específico de Antoní Gaudí - a Casa Batlló - para
começar a conversar sobre sua obra porque para mim, depois da Basílica da
Sagrada Família - que merecerá vários posts para chamar de seus - ela é a
obra-prima do arquiteto. Porque nesse projeto ele conseguiu perfeitamente
atingir a expressão e a poesia, mas criando uma casa funcional e um espaço
habitável.
Um poeta não necessita incluir luminárias ou portas nos seus versos. Um
pintor não tem que colocar um banheiro nas suas tintas. Mas um arquiteto
precisa. Uma casa tem que trabalhar para as pessoas. Como conseguir isso e, ao
mesmo tempo, transformar todo o lugar em uma obra unificada de arte?
É preciso se ter uma visão excepcionalmente forte, um senso quase
místico de propósito. É por isso que muitos dos maiores arquitetos da
humanidade - Michelangelo, Bernini e Gaudí - foram profundamente religiosos. De
certa forma pode-se dizer que a arquitetura é a melhor resposta para ateus
militantes, porque quase todos os mais belos edifícios do mundo são religiosos.
Porém Gaudí, apesar de ser inegavelmente um arquiteto cristão, não
estava trabalhando uma simples tradição cristã. Longe disso. A Casa Batlló é um
lugar para se viver, embora ela tantalize a mente com a idéia de paraíso.
Alguém já construiu alguma coisa parecida com um sonho? A resposta é sim.
fotografia Moacir Pimentel |
Na verdade até hoje, quando a fama de Antoni Gaudí é inigualável por
qualquer outro arquiteto vivo ou morto, muita gente ainda se encanta nas ruas
de Barcelona, parando de boca aberta diante dos edifícios projetados por ele.
Foi olhando para essa fachada que o artista Francisco Brennand perguntou ao
motorista de táxi:
“Que diabo é ISSO?”
Brennand resume melhor do que eu essa narrativa catalã:
“Dois fantasmas me acompanham nesta vida:
o de meu pai e o de Gaudí.”
Aconteceu-me mais ou menos a mesma coisa quando da primeira visão que
tive da Casa Batlò. Saí da estação de metrô do Passeig de Gràcia, uma rua
agitada e ruidosa, e ali, entre tantas outras fachadas retas, olhei para uma
construção que se abaulava e se retorcia até sua cumieira turquesa, verde e violeta,
como os telhados daquelas casas dos livros de histórias de trancoso. E
continuei fixando a fachada, manchada por fragmentos de azulejos que se dobrava
em varandas, apoiadas por enormes ossos de pedra e a cumieira onde havia uma
torre e uma cruz para lá de bulbosa.
E não entendi nada!
Por um momento eu não tive certeza do que era AQUILO mas uma coisa eu
sabia: era belo. E ao contemplá-lo só posso dizer que senti o mesmo sentimento
de bondade e virtude que me move, por exemplo, diante das mesquitas arábes ou
das grandes catedrais da Idade Média, ou da arquitetura submersa de Veneza. Uma
vontade romântica e bobóide de acreditar que os seres humanos, por natureza,
querem fazer o bem e não o mal, e que é por isso que respondemos à visão da
verdadeira bondade e/ou beleza quando ela é fixada na pedra.
Antoni Gaudí, um católico fervoroso, tentou trazer o céu à terra inventando
edifícios fantásticos que explodem em cores, liberdade e hedonismo, numa moral
arquitetônica altruísta e social.
Gaudí foi uma explosão de talento dentro da revolução estilística que
convulsionou Barcelona há cem anos. Ele foi o gênio entre os modernistas
defensores de uma estética diferente, uma versão catalã distinta da resposta
florida da Art Nouveau ao desafio da vida na virada do século.
Esse modernismo catalão anterior ao modernismo não surgiu do nada.
Centenas de anos antes, Barcelona tinha sido o grande porto marítimo da terra
medieval de Aragão, com sua própria linguagem e uma identidade cultural catalã
que se espalhou para a França. Castela e Aragão foram unificados no
Renascimento, e no século XIX a Espanha era um lugar triste e ruinoso, onde o
catolicismo era violentamente imposto em uma sociedade empobrecida pela
Revolução Industrial.
Barcelona no entanto era diferente. Era dinâmica e viu-se como líder
cultural de uma Catalunha que tinha mais em comum com Paris do que Madrid.
Artistas como o jovem Picasso - que começou a fazer seu nome como parte de um
grupo de modernistas frequentadores do caf Els Quatre Gats - mudaram-se facilmente
da Barcelona de Gaudí para a butte Montmartre de Toulouse-Lautrec.
O estilo “moderno” era profundamente romântico, um sonho esfumaçado da
vida urbana. Talvez a coisa mais parecida com a arquitetura flutuante de Gaudí
fora de Barcelona sejam as sinuosas estruturas de bronze Art Nouveau que
serviram de entradas para as estações de metrô de Paris - uma das quais pode
ser vista agora no museu Salvador Dalí na sua cidade natal. Dalí,
orgulhosamente catalão, afirmou ter sido Gaudí a sua verdadeira inspiração, e
adotou-lhe o “terrível e comestível” estilo modernista.
Assim, em Barcelona, o tal modernismo foi sobre como encontrar uma
poesia para o novo mundo turbulento do século XX. De um lado estavam as casas
dos novos ricos, palácios comparáveis aos dos Medici e Strozzi na Itália do
Renascimento, mas do outro morava a extrema pobreza operária.
Em 1909 a cidade foi despedaçada por tumultos num trailer da guerra
civil que viria em 1936, quando o exército de Franco se rebelou contra a
república democrática em nome da Espanha católica e chegaram a Barcelona, transformada
no centro da resistência popular, voluntários como George Orwell.
Olhando para os edifícios no Passeig de Gràcia, é muito fácil ver como o
estilo modernista se encaixa na história desta cidade.
Grandes palácios foram idealizados, por exemplo, pelo arquiteto Domènech
i Montaner como o Hospital de Sant Pau e o belíssimo Palau de la Música
Catalana, abaixo, ambos declarados pela UNESCO Patrimônio da Humanidade.
Ou pelo seu colega Puig i Cadafalch, o idealizador do Palau del Baró de
Quadras, do Café Torino e da Casa Terrades. Mas tais construções eram apenas
uma combinação dos estilos neogótico e mourisco e a influência de correntes
estéticas dominantes em outros países europeu. São construções belas e ricas
mas não são absolutamente as emocionantes novidades de Gaudí.
Às suas criações Gaudí aplicou claramente e habilmente a sinuosidade da
Art Nouveau mas aplicou clara e habilmente o seu espírito às suas investigações sobre a estrutura
física subjacente. Se a Art Nouveau procurou inspiração na natureza, Gaudi
olhou para a natureza e dela extraiu uma arquitetura inovadora que abriu novos
caminhos em sua engenharia básica.
No final do século XIX a área onde fica o Passeig de Gràcia e onde mora
essa casa - o bairro do Eixample - não fazia parte de Barcelona. Era uma aldeia
ligada à cidade por estrada para onde os cidadãos ricos começaram a se mudar
enquanto Barcelona inchava.
Um rico industrial têxtil chamado Josep Batlló tinha comprado o lote de
número 43 do Passeig, mas estava descontente com o design da casa. Então, em
1904, contratou Gaudí para reformá-la e torná-la o mais alto e mais notável
palacete do quarteirão. Ele não se fez de rogado.
Até hoje e em meio aos carros que passam velozes e aos pedestres que
caminham apressados em uma Barcelona rápida por demais onde não se tem tempo a
perder, esse edifício continua chamando a atenção bem no meio da rua que não é
tão comum.
A obra-prima de Gaudí é flanqueada por duas outras extravagantes
criações suas colegas de fin-de-siècle. Uma é uma mistura quixotesca de
fantasia mourisca e gótico veneziano, a outra tem um telhado escalonado, como
se fosse a casa de um sisudo comerciante holandês que tivesse sido contaminada
pela festa circundante.
Tais casas foram encomendadas por outros empresários ricos determinados
a exibir sua riqueza. Elas foram construídas em rivalidade explícita e sob
brilho da publicidade modernista do início de 1900.
A fileira de casas rivais formada pela Casa Batlló de Gaudí, pela Casa Lleó Morera do famoso Domènech i
Montaner e pela Casa Amatller de autoria do arquiteto Puig i Cadafalch, formam
o quarteirão de Barcelona popularmente conhecido como “a maçã da discórdia”,
devido ao grande contraste estético entre as três obras.
As casas tinham apelidos: a Gaudí foi chamada de La Casa dels Ossos
porque suas colunas parecem um pouco com fêmures – ou tíbias? - e bem assim de
a Casa do Dragão, por que seu telhado parece a traseira do bicho. As demais
foram apelidadas de Floral e Flamenga.
Críticos e caricaturistas zombaram imensamente da ambição e rivalidade
dos arquitetos Domènech i Montaner, Puig i Cadafalch e Antoni Gaudí mas o certo
é que entre as irmãs espalhafatosas a Casa Batlló se destaca.
De longe, ela parece ser de um cinza ósseo, mas, após uma inspeção mais
detalhada, emergem pequenas colônias bacterianas de fragmentos vermelhos,
amarelos,verdes, roxos e azuis que trazem vida para a fachada, mesmo que os
estranhos balcões e janelas sussurrem uma mensagem subliminar sobre
esqueletos.(rsrs)
A fachada cintilante da Casa Batlló é composta por pequenos pedaços de
vidro e de azulejos partidos. O termo adequado para essa colagem de pedaços de
cerâmica é “trencadís”, do verbo catalão “trencar”, que significa quebrar. As
peças de vidro conferem ao edifício digno de morar no céu um efeito que não é
da terra mas subaquático e que prossegue por toda a casa, como a água que
brilha quando a luz a atinge e muda de cor ao longo do dia.
Talvez Gaudí tenha se inspirado nos nenúfares de Monet e nas máscaras do
Carnaval de Veneza para criar essa fachada mas como explicar as manchas
cerâmicas, os pilares com formatos ósseos, as varandas com o das conchas e um
telhado tão corcunda que sugere um dragão fugido de um mundo de lendas e lutas
há muito esquecido?
Basicamente ele tentou evitar quaisquer linhas rígidas e retas. Mas como
poderia ter sido diferente se ele foi buscar inspiração no mar e na vida
submarina? Eu não acho que o arquiteto propositadamente omitiu linhas retas e
ângulos retos, mas simplesmente copiou as formas orgânicas e suaves encontradas
na natureza.
A Casa Batlló permanece independente da arquitetura histórica que a
circunda divergindo dela. Ela também foi encomendada pela rica burguesia, mas
projeta um extraordinário ethos comum. Algum sexto sentido interior nos diz ali
na rua que há maravilhas dentro da Casa e que é preciso conferir.
No salão, todas as paredes são curvas, em espiral, como os movimentos do
mar e você se sente como se estivesse dentro de uma caverna profunda e então o
invisível torna-se o mais importante na arquitetura de Guadí, o sentido de um
espaço oceânico.
Apesar de suas estranhezas é fácil perceber que Gaudí, de fato,
construiu o espaço para uma família, com salas e quartos e salas de banho
contempladas com lareiras de azulejo afundadas nas paredes impossíveis, um
acessório arquitetônico caseiro emanando aconchego e conforto.
Veja como a influência da natureza é patente na lareira do escritório,
que tem a forma de um cogumelo. Preste também atenção aos bancos laterais: um é
mais curto e o outro mais comprido. Dizem que as moças da família namoravam
sentadas com seus pretendentes no banco mais longo enquanto que o menor era
ocupado pelo segurador de velas de plantão. Será que Gaudí pensou até nessas
minúcias?
O arquiteto que nasceu pobre em 1852 e estudou arquitetura na
Universidade de Barcelona à custa de imensos sacrifícios de seus pais nunca se
casou apesar de relatos de algumas grandes paixões. Sua vida foi fervente, isto
sim, de ascetismo católico e muito trabalho. Em uma cidade obcecada pela
construção, não foi difícil para o talentoso arquiteto fidelizar uma rede de
patronos e clientes ricos e religiosos, como os industriais Josep Batlló e
Eusebi Güell, os respectivos patrocinadores e donos da Casa e do Parque aos
quais emprestaram seus sobrenomes.
Em outras palavras, Gaudí é um daqueles cuja biografia nada diz sobre
seu trabalho. Que ele era intenso e disciplinado é óbvio nas suas realizações,
e em cima da Casa Batlló uma cruz proclama a fé do arquiteto. Mas de onde vêm a
liberdade onírica e o hedonismo grave desta casa?
Desde a entrada é intensificada a impressão de se estar sob o mar: as
paredes do hall estão decoradas com um padrão de bolhas e um corrimão que mais
parece um molusco gigante.
A ampla sala de estar de frente para a rua é um salão celestial. Seu
teto é líquido e um vórtice foi esculpido nele nos dando a impressão que o
espaço está girando em turbilhão em torno de uma lâmpada dentada feita para
parecer uma concha de nautilus, uma espiral logarítmica ou como tão bem
descreveu a criancinha cara-pálida ao nosso lado o “ralo da banheira” (rsrs)
No meio da casa, existe uma espécie de poço de luz que conduz a
luminosidade do sol para os andares inferiores e os quartos de dormir. Uma
sacada de gênio! Para garantir uma distribuição uniforme dessa luz natural
pelos andares superiores e inferiores, Gaudí posicionou os azulejos de modo que
os azuis mais escuros, absorvendo a luz, flutuassem no alto e os azuis mais
pálidos, refletindo luz, dominassem abaixo.
As janelas de formato estranho que nos fazem pensar nas guelras dos peixes ou nos rabos das sereias
são mais estreitas no piso superior e gradualmente se expandem para permitir
mais ar no inferior.
Passa-se por salas que se curvam e balançam conforme as marés, sobe-se
uma escadaria de azulejos azuis até um sótão branco e etéreo e, finalmente,
atravessamos uma colunata formada por dezenas de arcos de minimalismo pálido, que
possibilitaram ao arquiteto abrir a planta do edifício, quase sem necessitar
usar colunas, fazendo o que quisesse lá dentro, além de claro, criar ambientes
maiores, mais claros e ventilados.
Emergindo desse corredor de gesso e luz se chega a um terraço espaçoso,
ao telhado fascinante onde o arquiteto agrupou as chaminés como dançarinos
congelados no tempo que se balançam no ritmo do ir e vir das ondas.
Nas chaminés foram reutilizados pedaços de ladrilhos e azulejos de
outros edifícios. Nisso, Gaudí talvez tenha sido um pioneiro, um dos primeiros
arquitetos a ter noção de sustentabilidade - isso em 1904! - essa palavra tão
na moda nos dias de hoje, que significa apenas pensar um pouco mais no impacto
na natureza, quando se cria qualquer coisa.
O telhado é uma colina pontiaguda enfeitada com escamas azuis e
castanhas e protegida por uma torre. Ele se assemelha a um pássaro pré-histórico ou mesmo a um
dragão. Gaudí era um católico muito devoto, e o santo padroeiro da Catalunha é
Sant Jordi – o São Jorge que matou um dragão e salvou uma donzela.
Diz Dona Lenda que o telhado seria o dragão, que as colunas e varandas
seriam os ossos e os crânios dos humanos devorados pelo malvado, que a cruz que
coroa o telhado seria o punho da espada com a qual o santo matou a fera e que a
varanda superior com a forma de uma flor seria a rosa que nasceu do sangue do
animal derrotado e morto.
Na verdade Gaudí jamais explicou a ninguém os significados das suas
criações mas os especialistas acreditam que ele inseriu sim esse símbolo
regional na casa: a espinha dorsal do lagarto gigante drapeada sobre a fachada,
traspassada pela lança reluzente de São Jorge, representada pela torre.
De todas as janelas se olha para uma cidade transfigurada e emoldurada
por vitrais multicores com círculos de vidro azul e rosa - ou devo dizer por
conchas e ouriços-do-mar em um mundo azulado? Seja como for é um ambiente calmo
e descontraído.
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O sólido se dissolve e ao espaço são dadas novas formas e não há uma
linha de visão que não ofereça alguma nova surpresa. Porém essas janelas não
são apenas fantasia e poesia. Elas tinham o objetivo de criar um ambiente
agradável e confortável. A varanda grande do piso principal é formada por
várias janelas enormes que deixam o sol entrar a fim de maximizar o espaço da
sala de estar e ele criou um sistema inteligente de polias para levantar as
janelas em vez de abri-las para dentro ou para fora.
Aprende-se com Antoni Gaudí que a arquitetura é a arte que todos nós
encontramos mais frequentemente, mais intimamente, porque é funcional e
necessária à vida.
É difícil estabelecer onde a “arte” começa e termina em um edifício. Mas
o gênio arquitetônico não se conforma com um certo conjunto de regras, que ele
transcende para fazer com que aquilo que edifica contenha um pensamento. Para
mim, há algo incomparavelmente belo em um edifício que é a verdadeira auto
expressão de uma mente apaixonada.
Como veremos na Basílica da Sagrada Família, depois de dar uma última
olhada na Casa Batlló.
Lindo post, Moacir. Me fez lembrar de quando eu comprei meu apartamento e passei um tempo interessada em arquitetura e decoração quando a moda era 'menos é mais'. Acho que o Gaudi não acreditava nisto kkk Adorei a sua solidariedade pelos pobres artistas arquitetos que tem que colocar lustres e banheiros nas suas obras de arte kkk. O seu texto é maravilhoso e as fotos perfeitas mas o vídeo ajuda a entender o dragão, as 'colônias bacterianas' e a sensação de estar no fundo do mar. Gostei dos mosaicos da fachada que parecem um bordado e do janelão com os vidros coloridos. Obrigada por compartilhar tantas coisas bonitas!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirPenso que a filosofia do "menos é mais", como todas as outras, na arquitetura e na vida, tem lá seus argumentos. Afinal hoje temos mais informações e menos laços afetivos, mais facilidades e menos tempo, mais informação e menos juízo (rsrs)
Note que mesmo em meio a essa sinfonia de formas estranhas há momentos de belo minimalismo nessa Casa como, por exemplo, o que podemos ver naquele corredor formado por arcos claros. É claro que Gaudí tem coisas que a gente gosta mais ou menos e coisas pelas quais tem mixed feelings, mas que o cara era um gênio ninguém duvida. É fato que a mente arquitetônica dele sempre em ebulição e para lá de transbordante, se expressava mesmo era pelo mais. Mas a genialidade dele reside no fato de que, embora coerente com as suas visões ele jamais perdeu de vista o seu ofício, ou seja , o uso para o qual se destinavam seus edifícios. Não é importante definir se a arquitetura de Gaudí é de mais ou de menos, se é bela ou feia, se é de bom ou mau gosto. Mas perceber que Gaudí é sempre Gaudí: originalíssimo, único, diferente de tudo antes e depois dele e apesar da aparente doidice .... funcional!
Abração
Moacir,
ResponderExcluirQuando visitei a cidade primeiro fui correndo ver a Sagrada Família para depois conhecer as demais construções de Gaudi. Como nada pode se comparar com a Igreja o resto perdeu um pouco do brilho. Adorei o Museu Picasso de Barcelona porque mostra o trabalho dele do começo para o fim, do jeito mais fácil para se entender o conjunto da obra. Você está certo ao falar primeiro das lindas casas para depois escrever sobre a obra-prima do arquiteto. Vou esperar ansiosa pelo artigo da Sagrada Família e no de hoje destaco um trecho muito especial porque é preciso acreditar:
'Uma vontade romântica e bobóide de acreditar que os seres humanos, por natureza, querem fazer o bem e não o mal, e que é por isso que respondemos à visão da verdadeira bondade e/ou beleza quando ela é fixada na pedra'.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirConcordo com você que uma análise cronológica do trabalho de um criador ajuda na compreensão do conjunto da obra. Mas a cognição não é tudo e não explica o encantamento que sentimos - ou não! - diante da arte, essa magia que, como a paixão, não se sabe mas se sente. Não costumo comparar artistas e / ou seus trabalhos. Assim, a Casa Batlló é uma moradia de sonho, a Sagrada Família é um templo impressionante e o Parque Guêll é um perfeito espaço público de lazer. Por ter sido capaz dessas conversas entre a criatividade e o espaço real a ser trabalhado, a imaginação e a funcionalidade, o sonho e a matemática é que Guadí foi um milagre. Espero que você leia sem se cansar(rsrs) a futura e loooonga “franquia” da Sagrada Família
Outro abraço para você
Prezado Sr. MOACIR PIMENTEL,
ResponderExcluirÉ sempre um grande prazer ler suas descrições de viagens, Américas, Europa, Ásia e África..., e especialmente quando focalizas o Povo e também as Obras de Artes mais importantes desses locais.
Esse Artigo então sobre a Catalunha, e especialmente a Casa Battló, Projetada pelo gênio de ANTONI GAUDI, está fantástico.
A fachada como dizem os Argentinos, é "infartante", e os milhares detalhes, também.
Como escreveu com Maestria a Sra. MÔNICA SILVA, acima, faço minha suas palavras e também digo: "Obrigado por compartilhar tantas coisas bonitas".
Como é importante a Arte, especialmente a Arquitetura, para imortalizar um inteligente CONTRATANTE.
Por mais bem ranqueado na Revista FORBES, por mais Rico que tenha sido o Sr. BATTLÓ, quem iria saber dele, não fosse essa "eterna maravilha de Casa BATTLÓ, do Arq. ANTONI GAUDI, em Barcelona- Espanha, que o imortalizou.
Abração.
Senhor Flávio Bortolotto,
ExcluirPara começo de conversa deixe que lhe diga que estou mais do que acostumado com a formalidade no tratar porque faz décadas casei com uma filha do Minho e poucos povos são mais educados que o lusitano. No entanto mesmo os prezados tugas quando a gente insiste muuuuito passam a nos tratar na segunda pessoa do singular (rsrs) Que tal tentarmos?
Em segundo lugar muito aprecio seus comentários sempre inteligentes e pertinentes e por eles lhe agradeço imenso. Finalmente eu não poderia concordar mais com você a respeito do Sr. Batlló: permanece quem cria significado, fica quem edifica. Porém Dona História nos prova que a arte é uma das características da civilização e que só em sociedades abastadas rolou o ócio criativo. Como os chineses eu penso que o dinheiro se não é vida é parte importante dela, algo que precisamos entender e respeitar e aprender a usar. Mas, sem dúvida, só a arte é capaz de nos demonstrar a materialidade das coisas desse mundo para além do seu valor de troca.
Abração
Parabéns por mais um post de viagem diferenciado.
ResponderExcluirCarlos,
ExcluirOs meus escritos tentam traduzir viagens que fiz e faço por vários motivos: trabalho, laços familiares, curiosidade pelo vasto mundo. Tento, com muita disciplina, rascunhá-los para que sejam não exatamente “diferenciados” mas pelo menos um pouco mais do que meros roteiros turísticos. Muito obrigado pelo comentário.
Muito bom, Moacir. Gaudi é tão extraordinário que para ousar entender tudo AQUILO que ele criou e você descreveu só mesmo tomando antes umas e outras, rs.
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirA gente termina mesmo se referindo às obras de Gaudí com o velho bordão popular : "É uma loucura"! Certa vez ouvi um cara muito jovem olhando para o teto da Sagrada Família de boca aberta para depois comentar com a namorada à sua beira : “Seja lá o que Gaudí fumava devia ser de muito boa qualidade”. (rsrs) Muito ao contrário, o arquiteto não tinha vícios e/ou prazeres para além do trabalho. Mas entendo o espanto do rapaz, o mesmo que sentimos quando olhamos para o teto da Sistina, as praças de Bernini, as curvas de Brasília , a Praça de São Marcos debaixo d’água, as Pirâmides do Egito, a Muralha da China e que também nos toma de assalto quando contemplamos o Rio de Janeiro lá de cima, o Everest , o Grand Canyon, as Cataratas de Iguaçu e a verdura amazônica.
Para experimentar essa grandeza, seja da lavra da natureza ou feita por mãos humanas, essas coisas que são maiores que a vida e que de sê-lo nos consolam, não é preciso "cabeça feita" mas alma funda. Para criá-las às vezes penso que se tem que estar tocado por alguma coisa que não é bem desse mundo. Porém....
Tomar umas e outras e relaxar com a galera mais querida num final de semana, principalmente se chuvoso, é sempre uma ótima pedida (rsrs)
Abração
1)Licença Moacir e demais, depois eu comento as importantes dicas do Pimentel neste artigo.
ResponderExcluir2)Quero registrar que hoje, 08/07/2017, é o Dia do Padeiro, Dia dos Panificadores e afins. Minhas saudações a todos os amigos e familiares desses profissionais.
3)Saudações reencarnacionistas desde a Etrúria, quando lá fui Padeiro e graças a este bom blog escrevi sobre o fato.
4)Nada como um pãozinho quente nesse inverno ! Com os devidos acompanhamentos que cada um gostar...
1)Cada artigo do Pimentel é um belo capítulo de um livro de vivências em várias partes do planeta.
ResponderExcluir2)Livro bem ilustrado com fotos maravilhosas.
3)Viagens de um viajante. A volta ao mundo em 80 capítulos. E quando chegar nos 80, por ser muito bom, mais outros 80 capítulos.
Antonio,
ExcluirCompartilho com você o afeto antigo pelo pão universal e nosso de todo dia. Já quanto aos meus capítulos tenho sérias dúvidas. Às vezes eles me parecem demais e interminááááveis ou me perco nas fotos ou pinta um branco criativo. Mas...as pretinhas são tão viciantes quanto o pão e quem resiste?
Abraço e boa semana de trabalho
Pimentel,
ResponderExcluirUm texto magnífico. Não esticarei o comentário porque a minha pequenez no manejo das letras me impede e você e os demais comentaristas já disseram tudo.
Sampaio,
ExcluirMagnífico, com certeza, é o tema e não o texto. E discordo veementemente quanto a você não esticar os comentários que muitas vezes são muito mais ricos e divertidos do que a matéria. Comente sempre, por favor. Muito obrigado.
Olá Moacir,
ResponderExcluirSeu belo e interessante post me deixou, devo confessar, com o maior sentimento de ignorância. Mesmo assim, e até porque, adorei.
Se para você a Casa Batló lembra nenúfares de Monet, máscaras do Carnaval de Veneza, ossos, dragões e lendas, para mim é Alice nas maravilhas, a casa de doces de João e Maria e suspiros doces e leves "prestes a desaparecer". Sonho e fantasia.
O pequeno cara pálida estava coberto de razão.
Se as obras de Gaudi são " a auto expressão de uma mente apaixonada" assim também você as descreve.
Estivemos no Masp quando da exposição de desenhos e maquetes do Gaudi. Maravilhosos!
Até mais.
Caríssima Donana,
ExcluirComo não se entusiasmar rascunhando quando o tema é apaixonante? Agora...Tenho certeza de que depois desses meses de convívio p&b , todos nos reconheceríamos um texto seu fosse onde fosse, pelos estilo, espírito, humor, sensibilidade e qualidade. Sei que já lhe disseram mas não custa repetir: a senhora escreve bem demais!
Que bom que apreciou o artigo e que a Casa a levou pela mão pelas terras e espelhos e suspiros e perguntas sem respostas da Alice e pelas doces peripécias do João e da Maria. Além de me remeter de cabeça aos lírios d’água e às máscaras e aos carnavais venezianos as estranhezas do catalão também me lembram os versos do florentino Dante. Mas isso é de uma outra conversa.
“Até mais”
Moacir,
ResponderExcluirNessa exposição no Masp, de que a Ana falou, havia desenhos e maquetes primorosas de partes da catedral, da Casa Battló e do Parc Guell. Duas coisas que me impressionaram foram os modelos reduzidos das correntes para cálculo das catenárias para os arcos da catedral (achei a idéia brilhante) e os detalhes dos móveis, luminárias, até os trincos das portas e fechaduras da Casa Battlò, que foram desenhados também pelo Gaudí e fabricados por encomenda.
Muito interessante na exposição, da mesma maneira que no seu artigo, a explicação do que está por trás da parte visível da produção do arquiteto.
Saí de lá com a impressão de que Gaudí quando concebia alguma coisa concebia e projetava por inteiro, da visão geral até os menores detalhes.
Wilson,
ExcluirVocê tem toda razão: ele se ocupava de todos os detalhes do projeto por menores que fossem.
Há vários “museus” de Gaudí em Barcelona – na Basílica , no Parque Güell, e no sotão da Casa Millà – esse último o meu favorito. Lá fiquei impressionado com um dos fantásticos “modelos pendurados” em tamanho real bem em cima de um espelho. É o melhor sítio para se entender como ele trabalhava as tais curvas catenárias e infelizmente eu não fotografei, devido a uma das cláusulas pétreas da nossa Constituição doméstica. Dona Wiki tinha um registro da instalação mas não o seu reflexo ou a maquete. Uma pena. Ali a gente entende que ele simplesmente não fazia esboços, que pulava essa etapa, preferindo em vez construir com arames os arcos de catenária invertidos tão estruturalmente perfeitos que não exigiam reforço e que por isso mesmo revolucionaram o arco gótico, barateando as construções e viabilizando seus delírios verticais.
Fico feliz de saber que você e a Donana também viram tais maravilhas.
Abraço
Pimentel,
ResponderExcluirGrato pelo texto, abordando com maestria e detalhes magníficos, uma das cidades mais belas e interessantes do mundo, Barcelona.
Um mundo à parte, inclusive da própria Espanha, pois os catalães têm o seu idioma característico, que dificulta aos espanhóis entendê-lo, e se trata da segunda maior cidade espanhola, depois de Madri, além de ser a sede do maior e mais rico clube de futebol do planeta, o Barcelona!
Notável como vanguarda arquitetônica, fantástica nas artes, reconhecida como berço de grandes artistas, Barcelona, a meu ver, é uma das cinco mais belas cidades do planeta, onde destaco o nosso amado Rio de Janeiro, Paris, Florença e São Francisco, completando as minhas preferidas, sendo que conheço apenas o Rio e, Paris, muito bem, mesmo sem ter estado na capital francesa, em razão das postagens estupendas de tua autoria, que me deixaram um quase cicerone da Cidade Luz.
Agradeço, Pimentel, mais este artigo, que mostra a beleza de Barcelona, uma cidade que enaltece a capacidade criativa do ser humano.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirEu não sabia que você tinha tanta simpatia pela bela Barcelona que conheço bem por ter sido o lar de familiares muito queridos de minha mulher por muitos anos.Agradeço-lhe pelas boas palavras e espero que continue lendo. Sei que você aprecia as velhas catedrais do velho mundo e uma delas será o próximo tema.
"Saúde e Paz" e outro abraço.