Ana Nunes
Ah... nossa casa! É uma delícia.
Nem é um pedaço do paraíso, é ele inteiro.
Começa pelo cheiro bom quando chego. É
mistura de lírio branco na janela, violeta e suculenta em outra. Também de
flor-de-maio, pequena e teimosa que escolhe seu mês de abrir em cores, julho,
agosto, até setembro... mas nunca, nunca em maio. De paz e de amor antigo. E de
coisas que nos esperam como se vivas!
Como as poltronas da sala há muito
conhecidas de nossos corpos cansados e sempre com promessas de acolhimento.
Essas mesmas poltronas moles que já foram poste Gucci para o gato coçar
garrinhas afiadas.
Às vezes cheiro de bolo escuro de açúcar
mascavo e nozes e passas que atravessa porta afora e escapa pela escada...
Outro cheiro escuro e quente de café que combina com aviso de pão novo na
padaria da esquina.
Outras vezes traz cheiro de risoto do marido,
tratado com paciência e panela larga. E feito certamente ao som de vinho
colorindo o copo.
Tem cheiro de vento tocando música nos
tubos do sino e de sol afastando sombras e invadindo cantos. E de chuva caindo
no passeio e acordando a terra e o verde da planta. E desmanchando os pequenos
jasmins cheirosos da árvore antiga embaixo da janela.
E tem cheiro dos meus perfumes preferidos
que sem eles não sei nem andar!
E cheiros macios que variam de estação,
com pêssego ou abacaxi ou manga.
Acontecem por aqui duas tocas onde nos
escondemos para criar desenhos e textos, e até mesmo para descansarmos um do
outro quando se faz necessário. Porque amor também precisa de folga! E ouvir
músicas diferentes, do jazz intelectual ao Freddie Mercury, o queridinho das
coroas. Como se fossem duas casas da noite que oferecessem escolhas musicais. E
escolhas literárias. Recursos tecnológicos bem novos numa e uma boa prensa na
outra. E lápis de mil cores e ferramentas variadas. Papéis grandes e pequenos,
brancos e coloridos, e o material dos netos na gaveta da mapoteca.
Na toca do redator os livros se
multiplicam à noite, acho. É uma biblioteca meio bagunçada onde as prateleiras
já nasceram cheias. De Kama Sutra a Yeats sem preconceito ou preferências. Por
lá perdi o livro de uma poetisa húngara que procuro há uns seis meses. Acho que
de tão apertadas suas letras preciosas se misturaram a tantas outras e escreveram
outros livros não achados por não sabidos.
Na sala Sebastião Salgado harmoniza com
Monet, e junto ao telefone, na sala de jantar, os livros de saberes e sabores
são protegidos por meu Pinóquio que veio das enchentes de Friburgo. O único bem
meu não permitido aos netos... Comida e fantasia, aqui se alimentam corpo e
alma.
É aqui o nosso paraíso que no verão se
transforma no nosso inferno preferido de tão insolado! Que traz tentações
nudistas hoje inapropriadas, como diz o netinho politicamente correto...
E tem uma cama deliciosa, de descanso e
vadiagem. Cama de lençóis macios no cheiro leve e acolhedor do pano lavado,
água, sabão e sol. Neles deixamos nossos corpos usados do dia no sono sedutor.
Tem de onça, tem branco e preto, colorido e branco bordado de branco para os
dias nascidos em festa. Tem refúgio de edredom para as noites de julho. Asilo
do cansaço!
Um poema me disse para não lembrar dos
mortos quando estendemos os lençóis. Mas foi ler e nunca mais esquecer, e
lembrar sempre ao fazer a cama. Mas hoje penso neles com a alma em paz, feliz
por tê-los tido.
Ao lado, nas mesas de cabeceira, pequenas
lâmpadas para iluminar nossas leituras, canções de me-ninar!
Tem o quarto dos nossos meninos de
quarenta e quatro anos com os brinquedos dos meninos netos. Com gatos pelas
paredes e retratos pintados de filhos e noras. Uma barra na porta onde essas
novas crianças vão medindo seu crescer pulando até alcança-la. E sabem então
que estão ficando grandes.
Tem banheiros claros de sol, com vaso
pendurado no teto, a voluntariosa flor-de-maio, e quadro na parede. E também
escultura de ferro forjada nas oficinas da escola e castiçal que o sogro
esculpiu na madeira. Tem giz de cera especial para azulejo para os miúdos
desenharem e os graúdos deixarem recados. Que depois tenho pena de apagar!
E, por fim, a nossa mesa com cadeiras, que
de tarde toma tons dourados de sol coado pelas rendas da cortina. Aqui juntamos
gente querida e comidinha quente. Ou fria se forem tempos “infernais”. A mesa é
para oito e de repente são doze, cotovelo com cotovelo, ou quinze não sei como.
Não adianta fazer outros cantinhos com jogo americano porque funciona é com
todos juntos e amontoados. Nossos alegres e informais encontros barulhentos de
risos e vozes convocados com badaladas de um cincerro antigo quando o jantar
fica pronto.
Tem gravura de panela na parede para
lembrar da cozinha para arrumar e termômetro porque me amarro no tempo.
A cozinha pequena, nesses momentos de
ervas e aromas pulsa como uma colmeia, ali, no uso do fogão, que nos ajuntamos,
e esse ajuntamento atrai mais um e mais outro de não acabar e de não caber
mais. E as conversas... inesperadas, sedutoras, reveladoras e divertidas. Será
a cozinha o coração dessa casa?
Entre essas paredes brancas chorei minhas
dores e cumpri meus lutos. Fizemos nossos filhos e os criamos. Daqui saíram
para construir seus caminhos.
Entre essas paredes brancas tem o velho e
tem o novo. Tem um cuco quase centenário, uma avoenga terrina e concha em
flores e frutas, e uma adaga da guerra dos Farrapos. Tem desenhos dos netos presos
com fita crepe nas portas, porque as paredes estão cheias de outros desenhos e
quadros. Tem vuduzinho grávido em caixa de fazer tijolo e escultura do
masculino e do feminino. Tem até gato engaiolado no teto.
É uma casa antiga de quase cinquenta anos,
onde lembranças foram trazidas pela magia das viagens e do querer, onde o café
é apenas o motivo para uma troca de ideias, e onde só são queridos os muito
amados. É que a gente ama muito...
Às vezes tenho a impressão que essas
paredes brancas acolheram um mercado persa...
E de tanto isso essas paredes brancas
viraram nossa Wikipédia!
E já andei avisando que um dia vou virar
personagem do Garcia Marques e nunca mais vou sair de casa...
Até outro dia ensolarado.
1) Digamos ... Anapédia, parabéns !
ResponderExcluir2)Bela crônica, importante texto. A respiração de um lar.
3) Eis a beleza da Literatura, de coisas aparentemente simples, mas com significações profundas.
4)Para completar a cena, gravuras ótimas.
Olá Antonio,
ExcluirObrigada pelos elogios.
Adorei " A respiração de um lar". Era exatamente isso que eu queria descrever!
O simples sempre é melhor, não é?
Até mais.
O magnífico artigo da Ana comprova o que venho divulgando sistematicamente, que o lugar da mulher é em casa, usando das suas prendas domésticas, lavando, passando, costurando, cozinhando, e tratando o seu esposo como amo e senhor (heheheheheheheheheheheheheheheheheehhe)!
ResponderExcluirBrincadeiras à parte - ainda bem que a Marli não vai ler o meu comentário -, a descrição que a Ana faz da sua casa e o quanto gosta do ambiente que ela criou junto com seu esposo, o nosso amigo Wilson, é o paraíso que menciona, a calma, a tranquilidade, os cheiros, as cores ... exatamente como deseja.
Ora, a Ana nos oferece uma das formas de se ser feliz!
A casa onde moramos, por mais simples e humilde que seja ou mais confortável e espaçosa que se apresenta!
E os detalhes narrados, os pormenores ... brilhante, Ana, onde somente a sensibilidade feminina seria capaz de descrever com maestria o lar onde se reside, o refúgio natural das pessoas, a sua toca, a sua caverna, a sua fortaleza, o seu paraíso como muito bem escreveste!
Neste aspecto, minha colega dissidente, somos muito parecidos, pois para eu sair de casa somente por motivo de força maior, caso contrário até mesmo as compras peço por telefone!
E como gosto do meu escritório ou Oficina do Pensamento, conforme denominei este espaço onde as ideias precisam ser consertadas ou reformadas quase que diariamente!
Um grande e forte abraço, respeitoso, como sempre.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Amigo Francisco, rebelde!
ExcluirVocê vem divulgando e a gente vai fazendo: lava, passa, cozinha (costurar não, só sei remendar e não gosto!) e trata o marido como UM IGUAL!( hehehehehehe)
É assim, paraíso, como vejo a minha casa. Por isso não descrevi o apartamento ou a rua. A casa é o de dentro. Segundo a minha querida sogra, o Mano sempre dizia ao chegar em casa depois de uma viagem ou passeio: o fino é chegar em casa! Virou mote na família!
E pelo que entendi, você também vai virar personagem!!!
"Saúde e paz" para ti também.
Atë mais.
Muito lindo, Ana. Você disse tudo que sinto pela minha casa mas não sei falar. Obrigada.
ResponderExcluirBenvinda Mônica!
ExcluirQue bom que você gostou. No fundo, as casas devem significar o mesmo, pois são nosso refúgio!
Obrigada digo eu.
um prazer participar deste castelo onde cabem todos, saudades de um café com vcs.
ResponderExcluirum lar onde encontramos acolhimento sempre
obrigada pelo belo texto !!
Oi prima querida,
ExcluirVenha logo tomar este café!
Esperando você.
Prezada Autora D. ANA NUNES,
ResponderExcluirAh... nossa casa! É uma delícia.
Nem é um pedaço do paraíso, é ele inteiro. ( ANA NUNES ).
"Lar, Doce Lar".
Sua criatividade e Arte de Escrever são dignas dos maiores elogios. É muito prazeroso ler um Artigo de D. ANA NUNES, qualquer que seja, sempre Poéticos, com toques de Bom-Humor e Elegância. Complementa-os sempre, Quadros/Pinturas/Desenhos de mesma Autoria D. ANA NUNES, muitas vezes discretíssimos no canto. Há se fosse eu, destaca-los-ia em Letras Garrafais e cores fortes.
Muito Obrigado por essa bonita descrição do LAR, cujo Centro realmente é a Cozinha/Sala de Jantar, a meu ver, melhor quando são conjugadas.
Olá Flávio Bortolotto,
ExcluirElegante é voce, não mude nunca!
Seus elogios foram muito bons e muito exagerados. Folgo ( linguagem clássica para um cara clássico) em saber que você gosta assim dos meus desenhos!
Muito obrigada!
Até mais.
Dizer o que dessa casa tão bem contada?
ResponderExcluirApenas da minha felicidade de viver com aquela que povoou essa casa de luzes e cores e aromas e sabores e alegria...
Fizemos juntos! Acho que deu certo!
ExcluirCaríssima Donana,
ResponderExcluirDá gosto ler as suas poesias em verso e prosa e formas e cores cujo único senão é serem tão raras. E mesmo que senhora já tenha dito tudo não é que pinta uma vontade de tentar definir o que é esse castelo, a nossa casa, o lar, o único lugar onde rola a previsibilidade em um mundo tão incerto? Afinal o que faz de uma morada um lar?
Faz bem à alma descrever esse santuário onde os chatos não entram e onde se pode tirar a roupa e o sapato e experimentar a maravilha que é não resistir às "tentações nudísticas" e se deixar ficar emocionalmente nu, sem reservas, sem patrulhamento, sem edição e sem remorso ao lado de quem sabemos que vai continuar à nossa beira apesar de quaisquer ventos e para o que der e vier.
Quando eu era mochileiro a avó de meus netos se encontrou comigo algumas vezes pela estrada, em acomodações toscas, rústicas mesmo. Mas então ela jogava um lençol sobre a cama, pendurava a bolsa em um prego, colocava duas ou três conchas sobre o criado mudo e pregava fotos e postais na parede e pronto. Parecia mágica mas, de repente, estávamos em casa! Desconfio que não existiriam castelos para chamar de nossos sem as castelãs que fazem dos trapinhos da vida colchas de retalhos, das sobras de rendas mandalas, das linhas e rugas rendas, da varanda horta, dos jarros canteiros e dos porta retratos a prisão dos sempre renovados momentos felizes. Acho que as casas só viram lares por obra e graça e alquimia das santas milagreiras peritas em harmonizar ânimos, temperamentos, gostos, formas, cores e sabores para inventar-nos tocas aconchegantes e seguras. Esses cantos que são tão nossos porque neles todos os objetos são bytes de memórias, flashes de um amor antigo e partes de uma longa história.
"Até" LOGO "mais"
Olá Moacir,
ExcluirSempre é bom dividir e se saber lida e gostada. E rara por não ter sua criatividade de teclado, sua intimidade com "pretinhas", tão bem sucedida. Primeiro tenho que saber apelos do coração e daí a urticária literária.
Pressinto alguma!
"onde os chatos não entram... e poder se deixar ficar emocionalmente nu, sem reservas ou patrulhamento..." Como viver sem este lugar e sem essa história de amor construído? Não saberia dizer. Felizmente!
Até mais, devagar e sempre.
Ana, como sempre, contando as maravilhas de uma vida muito bem vivida. Traduzindo em lindas palavras o sonho de todos nós. E obrigada por fazer o meu irmão feliz.
ResponderExcluirObrigada Tita.
ResponderExcluirÉ uma vida bem vivida que faz parte de uma outra casa que adotei, e penso ter sido adotada. E onde também sou bem feliz. Onde todos construimos afetos e caminhos.
Um beijo.