Johannes Vermeer - Garota com brinco de pérola - 1665 (Wikimedia Commons) |
Moacir Pimentel
Girando o rosto para a esquerda, ela de repente olha sobre o ombro em
nossa direção, usando um turbante azul e amarelo bobóide, seu rosto suave
iluminado pelo reflexo da grande pérola que se pendura do lóbulo da sua orelha.
Nossos olhares são capturados por ela e acreditamos que fomos merecedores da
atenção da moça e que foi por nossa causa que ela virou a cabeça. Que olhos
largos, quanta intimidade nesse olhar e que boca apetitosa!
Embora nessa obra tanto a pose como a composição sejam tão naturais que
passam quase despercebidas, elas são elementos fundamentais para alcançar as
qualidades expressivas desejadas pelo pintor Johannes Vermeer.
O gesto da modelo girando a cabeça é um recurso pictórico antigo que foi
tenazmente explorado pelo grande mestre italiano Buonarotti. Michelangelo
entendeu que quando o corpo se move em uma direção e a cabeça na direção
oposta, a figura retratada evoca não só movimento mas uma tensão entre o corpo
que retrata impulsos instintivos e a cabeça que representa a função mais
elevada da mente.
O efeito é particularmente pronunciado no trabalho de Michelangelo
talvez porque o corpo inteiro, que é representado frequentemente nu, é
retratado. Mas Vermeer nos dá um pouco da mesma impressão: que a garota estava
saindo da cena e que, pensando melhor, se voltou para dizer-nos mais alguma
coisa.
É o mesmo truque do italiano, só que foi empregado por Vermeer de uma
maneira muito menos veemente e em harmonia com o tom psicológico mais sutil da
tela. O objetivo do pintor nessa tela não foi expressar a luta universal entre
a carne e o espírito, mas a relação incerta e privada entre o pintor e a sua
modelo.
Vermeer criou a ilusão da pérola contra o fundo cinza escuro da pele
sombreada do pescoço da menina com apenas duas valentes pinceladas brancas. Uma
em forma de gota brilhante, em destaque e na frente, captando a luz que entra
pela janela, e a outra mais sutil e mais abaixo, mostrando o reflexo do
colarinho da menina. A pérola dá vida e ilumina e equilibra toda a composição.
Mais brilho úmido adorna esses lábios e o canto da boca, que está aberta
como se ela estivesse prestes a falar. Os dois pontos de tinta branca, um em
cada canto da boca, ajudam a animar o quase sorriso pensativo da moça. É muito
raro encontrar retratos nos quais as bocas não estejam obedientemente fechadas.
Como Vermeer pintou outras mulheres com os lábios entreabertos, suponho que ele
estivesse bastante consciente do efeito que criava.
Talvez o único link razoável que se possa fazer entre as misteriosas
modelos do artista seja entre a garota que posou para esse retrato e outra,
também não identificada, que modelou para a alegoria de Clio - a musa da
criatividade na mitologia grega - em outra obra do pintor que já vimos: A Arte
da Pintura, que abriu o post O Pintor da Luz.
As comparações credíveis entre as faces femininas encontradas na obra de
Vermeer são complicadas - suas mulheres foram eternizadas em diferentes
condições de iluminação, poses e idades. Além disso, Vermeer parece nunca ter
perseguido com afinco nem a semelhança nem a psicologia individuais. Seus
quadros são sempre permeados por um classicismo discreto e têm uma regência
ponderada e com certeza o pintor costumava generalizar suas mulheres
livrando-as do excesso de personalidade individual.
Dona Erudição jura de pés juntos que o oval das cabeças, as faces
planas, o corte das mandíbulas inferiores e o intervalo entre os lábios
superiores e os narizes dessas duas meninas são semelhantes, assim como os
narizes longos e achatados nas pontes. Além, é claro, das sobrancelhas que são
quase imperceptíveis acima dos olhos ovais separados.
Mesmo as poses não são tão diferentes e nelas além da semelhança facial
as duas garotas são irmanadas também por outros elementos como as cores azul e
amarela e as faixas brancas que sobressaem nos colarinhos, quase idênticas em
forma e função. Esses traços diagonais de um branco puro não descrevem as
roupas tanto quanto acentuam as rupturas entre as cabeças das duas garotas e
seus vestidos coloridos.
O tema da menina com o brinco de pérola pode ainda ter sido uma extensão
lógica do interesse evidente de Vermeer pelas presença e atividade femininas.
Em suas pinturas o pintor representou quarenta mulheres e apenas treze homens.
É como se suas pinturas fossem tentativas de explorar os aspectos mais íntimos
da natureza feminina. Porém, nas suas demais composições as mulheres são
representadas envolvidas em várias atividades, como se o artista não estivesse
só interessado nas próprias mulheres, mas também na relação delas com o
contexto social.
O certo é que o tom sensual da expressão dessa garota de lábios
tentadores era, no século XVII, muito mais sugestivo de disponibilidade sexual
do que acontece hoje. A raridade dos lábios entreabertos nos retratos de então
nos leva a questionar se essa face de boca provocante na pintura foi mesmo
concebida como um retrato verdadeiro de alguém, de uma determinada mulher, ou
se, ao contrário, foi apenas uma expressão particular de uma determinada modelo
que, de repente, capturou o interesse do artista e se transformou no objetivo
do trabalho, no verdadeiro tema da pintura.
Mais do que cogitar se as duas jovens eram a mesma pessoa e qual foi a
sua identidade mais vale continuar questionando se Vermeer não teria desejado
retrabalhar a face particularmente sugestiva dessa Clio em um trabalho
independente ou se – quem sabe? - a garota misteriosa não foi elaborada como um
esboço prévio para a Clio da tela A Arte da Pintura.
As cores, a luz, a simplicidade da imagem, esse olhar direto, a boca
sensual fazem com que essa garota nos atraia. Muitas das pinturas de Vermeer
retratam pessoas em seu próprio mundo antigo que não olham nem se conectam com
seus observadores. Mas não essa senhorita que encara e segura o olhar e, por
isso mesmo, é rara e moderna.
Em outras obras de arte o olhar da figura protagonista encara
diretamente os olhos do espectador como faz o dessa garota. Esse tipo de olhar
foi universalmente convencionado e empregado para envolver os observadores em
um diálogo com a pintura. Vermeer intensificou o efeito eliminando o fundo,
tornando difícil para quem olha desviar sua atenção da queda da luz sobre a
expressão desse rosto para outra parte qualquer da cena.
Embora essa garota seja, talvez, uma das mais simples de todas as obras
do pintor ela tem uma composição muito sutil que desempenha um papel
fundamental na determinação do seu conteúdo expressivo e complexo. Essa garota
só falta falar e está prestes a fazê-lo. Interpretamos a sua boca entreaberta
como se ela estivesse prestes a se comunicar verbalmente. Mas não fala e nos
deixa frustrados, morrendo de vontade de saber quem era ela e o que ela tem
para dizer, tentando preencher as lacunas dessa história.
Só que suas palavras mudas permanecem um mistério e é isso o que atrai
as pessoas para a maravilhosa adolescente dessa composição inteligente. Ela
aparece quase que no nosso espaço, se movendo para fora desse fundo escuro, nos
olhando muito viva. Considerando que a menina está à direita da cena, não há
mais nada entre ela e nós.
Sim, pode-se argumentar que, por exemplo, a Mona Lisa também olha para
nós. Só que ela não se envolve, lá sentada na sua pintura e autossuficiência
renascentista. Já a Garota habita ativa e positivamente o espaço pictórico que
a rodeia em vez de ser passivamente encapsulada por ele. Quem contempla a tela
realmente sente a presença física e psicológica da menina de Vermeer que tem a
mágica qualidade de ser incrivelmente aberta e misteriosa ao mesmo tempo e isso
é muito atraente.
Às vezes me parece que o tema da pintura não é tanto a jovem mulher em
si, mas essa interação que ela tanto solicita dos seus observadores ou o que
ela sentia pelo artista. O fato é que nessa obra Vermeer nos faz conscientes da
presença humana como em nenhum outro de seus trabalhos.
Através do uso cuidadoso de sua paleta, ele criou os tons profundos e
ricos nas vestes da moça e para dar à pele uma aparência brilhante, para criar
efeitos de luz e sombra que contrastavam com o fundo escuro.
A identidade da moça continua a ser uma questão aberta e, na minha
humilde opinião e até certo ponto, irrelevante. Se Vermeer considerasse
importante essa identidade, teria deixado pistas na tela ou mesmo prova escrita
em relação a ela.
Porém...
Sedutora e silenciosa, esta criatura sem nome é conhecida simplesmente
como a “Garota com um Brinco de Pérola” e foi pintada por volta de 1665. De tão
linda já serviu de inspiração para um bom romance histórico da lavra da
escritora Tracy Chevalier que virou best-seller antes de ser adaptado em um
filme estrelado pela belíssima e sexy Scarlett Johansson, em 2003.
Devido ao enorme sucesso do livro e do filme, essa obra-prima de Vermeer
viajou pelo vasto mundo, visitando Tóquio, Kobe, São Francisco, Nova York,
Atlanta e Bolonha como parte de uma exposição itinerante que visava arrecadar
fundos para as obras de reforma da Mauritshuis Royal Picture Gallery em Haia,
de cujo acervo a Garota faz parte desde 1903.
Por onde passou a Garota com o Brinco de Pérola atraiu multidões que
deixariam a Scarlett Johansson, ou qualquer outra popstar, verde de inveja.
Mais de dois milhões e meio de pagantes em todo o mundo homenagearam a obra,
que já foi descrita como “a Mona Lisa do Norte”.
O curioso, porém, é que nem sempre foi assim. Cem anos atrás os
visitantes do museu Mauritshuis queriam ver mesmo era outra tela onde, em
tamanho natural, mora O Touro de Paulus Potter, maciço e lamacento, prestigiado
por muitas moscas e rodeado por sua tribo: uma rã, um passarinho, uma vaca e
três ovelhas e, é claro, o fazendeiro.
O bicho, de pé no centro do palco, roubava os holofotes e era
considerado a última palavra do naturalismo holandês. Naquela época, a Garota
estava mais para Gata Borralheira do que estrela hollywoodiana. Hoje parece
incrível que as pessoas não tenham sido capazes então de detectar a qualidade
dessa tela.
Após a morte de Vermeer em 1675, suas telas sumiram na obscuridade por
dois séculos, provando mais uma vez o quanto a História da Arte pode ser injusta.
A tela da Garota deu o ar da graça dela no mundinho da arte pela primeira vez
em 1881, uma década depois da redescoberta de Vermeer pelos franceses.
Nessa ocasião essa maravilha de valor inestimável foi vendida ao oficial
do exército holandês e colecionador de arte Arnoldus Andries des Tombe, que
pagou por ela apenas 2 florins! Após a morte de Tombe o trabalho foi doado ao
museu Mauritshuis, onde se encontra.
Mas a Garota experimentou uma avalanche de popularidade no final do
século XX. O ponto de virada foi a exposição da obra de Vermeer realizada em
Washington na National Gallery of Art em 1995. Sucede que a Garota foi
escolhida como poster-girl, ou seja, como a imagem para o cartaz de promoção da
exposição.
@#$%&@!!
Ela bombou e atingiu o status de celebridade porque uma das coisas mais
interessantes sobre essa pintura é o quanto ela é fotogênica. Como vivemos numa
época de imagens, as lentes das câmaras a amaram, ela ficou perfeita no tal
cartaz e dele catapultou para a fama.
Hoje enquanto conversamos sobre sua beleza enigmática a Garota se
encontra em segurança morando tranquila em Haia, de onde jamais sairá. O
Mauritshuis dia desses anunciou que a pintura permanecerá dentro de suas
paredes indefinidamente. Sucede que a Garota passou a compartilhar o destino do
Nascimento de Venus de Botticelli, de Guernica e de Les Demoiselles d'Avignon
de Picasso, trabalhos tombados e probidos por lei de deixar a segurança de seus
respectivos museus e o solo pátrio de seus pintores.
Mas a especulação continua frenética: A Garota era uma das filhas do
artista ou teria sido sua amante?
Provavelmente nunca conheceremos a identidade da modelo que posou para a
ela, se é que houve mesmo uma. Vermeer, ele mesmo, é uma figura sombria na
história da arte que foi inclusive apelidado de “A Esfinge de Delft”, sua
cidade natal, da qual jamais saiu.
São pobres os dados biográficos desse artista que é reconhecido como um
dos mestres da luz e que se especializou em pintar mulheres em interiores
domésticos e telas cheias de mistério. Ao contrário dos pintores holandeses
seus contemporâneos, que amontoavam nas suas composições objetos e detalhes
narrativos, Vermeer deu um pontapé nas quinquilharias para fora de seus quadros
e preferiu provocar o espectador retendo os seus significados.
Quanto à sua Garota, bem, ela é entre todas as mulheres pintadas pelo
artista a mais desconcertante. Dizem os especialistas que os habitantes da
Delft do século XVII não teriam visto essa pintura como um retrato, mas como um
tipo de quadro conhecido como “tronie”, um estudo de uma cabeça e ombros sempre
com roupas exóticas. No caso o turbante daria um sabor oriental à tela,
transportando seus observadores para o reino distante da imaginação.
Embora seja possível que uma jovem mulher tenha modelado para o artista
constantemente, podemos estar diante não de uma pessoa específica retratada
para a posteridade, mas de algo idealizado, de uma visão mais generalizada,
intemporal e misteriosa - talvez uma ninfa ou uma personagem da Bíblia.
Alguns estudiosos têm teorizado que a Garota seria uma alegoria da
castidade, fazendo uma conexão entre a pintura e os ensinamentos do bispo
Francis De Sales, que descreveu como Isaac enviara brincos para Rebeca como um
primeiro sinal do seu amor e como essa joia teria um significado espiritual,
qual seja o de proteger as orelhas femininas das palavras vãs que não eram “as
pérolas orientais do evangelho”.
Eu cá comigo cogito se Vermeer teria sido inspirado por outra garota e –
quem sabe? - não tenha chegado sozinho às brilhantes soluções pictóricas que A
Garota com um Brinco de Pérola oferece aos pobres mortais. Sucede que um outro
retrato de uma bela e trágica mocinha chamada Beatrice Cenci - que é atribuído
ao pintor Guido Reni! - pode ter dado uma mãozinha à criatividade do colega
holandês.
Guido Reni - Retrato de Bearice Cenci - 1662 (Wikimedia Commons) |
Pintada na primeira metade do século XVII, essa obra e a Garota têm uma
surpreendente semelhança de pose e de gesto. Embora Vermeer jamais tenha estado
na Itália ou tido acesso à imagem de Beatrice supostamente pintada por Reni,
não está fora de questão que ele a tenha analisado. A Beatrice foi copiada
muitas vezes e gravuras de pinturas populares circulavam livremente por toda a
Europa no século XVII, servindo frequentemente como modelo para novas
composições.
Além disso, de acordo com uma teoria amplamente defendida pelos
especialistas, a pérola tem um tamanho impossível, grande demais para pertencer
a uma pobre mortal fora da realeza, e portanto é traduzida como uma bijuteria
feita de vidro veneziano, fato que adiciona mais um elemento à atmosfera geral
de artifício, de história da carochinha.
Mesmo o título da obra, essa identidade amplamente aceita com a pérola,
nem sempre foi tão óbvia como parece hoje. Na verdade, a palavra pérola só
apareceu na história para titular a pintura na segunda metade do século XX. Até
então a obra era conhecida como “A Garota com o Turbante” graças aos panos que
a adornam e contribuem tanto para a expressão curiosa e a aparência exótica da
menina quanto para a incerteza de sua história que é, convenhamos, a chave para
seu fascínio.
A tinta usada nesse turbante era incrivelmente cara pois feita a partir
de uma pedra semipreciosa de nome lapis-lazúli, que era moída para o fabrico da
tinta azul ultramarina. Apesar do alto preço Vermeer usou a cor generosamente
na Garota, mesmo em tempos de dificuldades financeiras, possivelmente graças ao
financiamento de seu generoso e rico patrono Pieter van Ruijven.
Não deixa de ser paradoxal esse mistério vermeeriano. Porque, graças aos
seus pintores, nenhuma outra época parece-nos mais próxima e clara do que a
Holanda do século XVII. Quando os calvinistas esvaziaram as igrejas e proibiram
as imagens sagradas dentro delas, os pintores tiveram que procurar outros
espaços para trabalhar. E como trabalharam!
Mas, embora todas e tantas pinturas holandesas nos revelem muito sobre a
vida do seu tempo, a informação sobre os próprios pintores é frustrantemente
escassa. Através dos inventários, das datas de filiação às guildas - as
associações de profissionais surgidas na Baixa Idade Média - e dos registros de
casamento e nascimentos, conhecemos sobre os pintores alguns fatos básicos.
Sobre Vermeer, pesquisas meticulosas realizadas por historiadores que
passaram pentes finos nos registros da cidade de Delft estabeleceram que ele
nasceu em 1632, era filho de protestantes humildes, passou toda a sua vida na
tranquila cidade natal, casou-se com uma mulher católica ligeiramente mais
velha do que ele, de nome Catharina, com ela teve quinze filhos – dos quais
quatro morreram na infância – morava com a sogra, viveu em débito com o padeiro
a quem pagava com pinturas e quando morreu aos quarenta anos deixou sua família
mergulhada na pobreza e muitas perguntas sem resposta.
Ele pintava na sua casa, usando os mesmos objetos de novo e de novo, mas
quem são aquelas mulheres enigmáticas que olham pelas janelas, escrevem cartas,
tocam alaúdes, vertem leite, fazem renda ou se voltam para chamar a nossa
atenção? Quem era a Garota? Maria Vermeer, Magdalena van Ruijven ou a
imaginária Griet do romance da lavra de Tracy Chevalier?
Há mais de trezentos anos estudiosos e leigos especulam quem foi essa
jovem que nos olha por cima do ombro, mesmo sabendo que ela jamais poderá ser
objetivamente identificada. Colocada em um fundo escuro e indefinido e vestida
com uma fantasia exótica, essa Garota impressionante não pode ser encaixada em
nenhum contexto específico.
Ela não possui atributos que possam, por exemplo, identificá-la
definitivamente como uma figura alegórica. Mesmo sua idade não está
inteiramente clara. Talvez seja em parte essa carência de um quadro histórico
ou iconográfico que transmite essa imediação, essa proximidade a todos os que a
contemplam.
Devido à intimidade dos quadros de Vermeer, muitas vezes se supõe que o
artista representava membros de sua própria família. A candidata mais
frequentemente mencionada para o título de modelo da Garota com Brinco de
Pérola é sua filha mais velha, Maria, que provavelmente nasceu em 1654. Maria
teria a idade certa e já li opiniões altamente subjetivas do tipo “somente um
pai poderia pintar tal retrato não menos enigmático do que a da Mona Lisa de
Leonardo”.
Como assim?
É pura poesia a teoria de que Maria Vermeer tenha posado para a Garota
ou qualquer outra tela do senhor seu pai. Tal versão se baseia apenas na
aparente compatibilidade das idades. Tem mais. Como se não bastasse atribuir à
primogênita dos Vermeer a função de modelo, acadêmicos especializados em arte
têm cogitado se Maria não teria sido também pintora e a verdadeira autora de,
pelo menos, um quinto das obras atribuídas ao pai.
Entre as obras já atribuídas à filha do pintor estão A Patroa e a Criada
e A Garota de Chapéu Vermelho. O curioso é que nelas todas as senhoras
retratadas estão usando os mesmos e famosos brincos de pérolas da família.
Vermeer - A Patroa e a Criada- 1667 / A Garota de Chapéu Vermelho - 1666 (Wikimedia Commons) |
Já outros críticos de arte nos propõem a candidatura da única filha do
mecenas de Vermeer, Magdalena van Ruijven. Essa suposição parece ser
indiretamente reforçada pela presença documentada da tela Garota com o Brinco
de Pérola e de mais duas pinturas de cabeças da paleta do artista numa lista de
obras de arte vendidas em 1696, em um leilão promovido por um cidadão de nome
Jacob Dissius que era marido de Magdalena, a tal filha do mecenas van Ruijven
que, por sua vez, adquirira as pinturas diretamente do próprio pintor.
Magdalena tinha aproximadamente a mesma idade da filha de Vermeer,
Maria, e as famílias Van Ruijven e Vermeer eram vizinhas.
É divertida a brincadeira de imaginar identidades para a Garota mas,
convenhamos, nenhuma categoria na arte pictórica é tão conservadora como a dos
retratos. Um retrato é uma homenagem, a aparência de alguém sendo registrada
para a posteridade, uma imagem para provocar orgulho nas futuras gerações.
Pergunto: por quais cargas d’água o rico e poderoso van Ruijven que
havia investido uma fortuna pagando antecipadamente pelas telas de Vermeer e
que podia sugerir temas e opinar nas composições das pinturas do artista,
desejaria retratar sua própria filha vestida de forma tão pouco convencional e
olhando sexy e boquiaberta para o porvir sem sequer uma sugestão de sua elevada
posição social?
Não há nenhuma mísera evidência que sugira que o conhecedor de arte Van
Ruijven fosse, no século XVII, um pai liberal ao ponto de encomendar uma imagem
sensual da própria filha. Ele, muito provavelmente, simplesmente adquiriu a
tela para seu próprio prazer e não teve nada a ver com quem posara para ela.
Da mesma forma a suposição de que Vermeer retratou uma criada é resultante
de um único fato histórico: ele fez exatamente isso em outras telas, como por
exemplo na Leiteira sobre quem já conversamos.
Talvez essa imagem nos toque a alma funda porque não está resolvida, não
esclarece quem é a Garota, ao contrário do que faz o livro que nos oferece um
enredo coerente embora fictício para a personagem e que, por isso mesmo, já
vendeu muitos milhões de cópias. Nas suas páginas supostamente descobrimos o
que ela está pensando e como ela está se sentindo e o que ela está dizendo.
Mas o livro é de mentirinha e na real o quebra-cabeça permanece sem
solução e por isso em vez de passar para a próxima pintura voltamos para a
Garota de Vermeer de novo e de novo, pendurada lá na parede do seu museu
holandês, tentando desvendar-lhe o mistério. É sempre assim com todas as
obras-primas: em vão desejamos compreendê-las.
E o resto?
E o romance? E o filme? E a sexy Scarlett na pele da doce musa de
Vermeer? O resto e a fictícia Griet, que jamais teve qualquer pretensão à
verdade histórica na qual se transformou no imaginário popular, ficam para uma
outra conversa.
1) Belo texto, belas fotos, belas modelos, belo filme.
ResponderExcluir2)O filme pode ser visto grátis no youtube !
Antonio,
ExcluirFoi ao ler sobre o seu apreço pela Leiteira que pensei em escrever sobre ela e outras belezas de Vermeer.
“Gratidão”
Você falou dela como se fosse de uma namorada kkk Mas ela merece, Moacir!
ResponderExcluirEu adoro quando você pega um quadro e explica todos os detalhes. Para quem é ignorante de arte como eu precisa mesmo soletrar. Agora posso dizer sem mentir que conheço a linda Garota com o brinco de pérola do pintor Vermer. Obrigada!
Mônica,
ExcluirFico feliz que você tenha apreciado o post. “Obrigado!”
Talvez eu tenha mesmo um afeto especial não só pela Garota com o Brinco de Pérola mas por muuuuitas outras meninas. Já falei de algumas delas aqui no blog: a Madona grávida do Piero della Francesca, a jovem mulher debruçada naquela janela de Sevilha do Murillo, a Dama com o Casaco de Peles do El Greco, a Mousmé do van Gogh. Algumas delas são famosas, outras perfeitas desconhecidas, mas todas têm o mesmo mistério. Tenho até mesmo uma “namorada” gótica inesquecível....
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/36/Rogier_van_der_Weyden_Portrait_of_A_lady_C1460.jpg/1200px-Rogier_van_der_Weyden_Portrait_of_A_lady_C1460.jpg
Abração
Moacir,
ResponderExcluirAmei o artigo. Retiro o que disse sobre Vermeer não pintar rostos muito expressivos. Eu tinha me esquecido completamente do da Garota com o brinco de pérola. Achei interessantes todas as informações mas destaco a semelhança entre ela e a menina italiana. Você descreveu tão bem esta obra-prima que fiquei morrendo de vontade de assistir o filme. Parabéns pela maravilhosa aula de Pintura.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirQue bom que você “amou” essa linda Garota que “merece” toda a nossa atenção por resumir no seu rosto tantas e tão humanas emoções. Concordo com você sobre a grande semelhança de gesto, pose e olhar entre a Beatrice e a Garota de Vermeer mas espero que a última tenha tido uma vida mais feliz do que a primeira. Por favor, não deixe de nos contar o que achou do filme.
Outro abraço para você
Prezado Sr. MOACIR PIMENTEL,
ResponderExcluirPerdoe-me a formalidade, mas quem escreve tão bem, quem ama as Artes e as viagens pelo mundo como o senhor, quem as descreve com riqueza de detalhes, quem é um PROFESSOR, não pode ter outro tratamento, de um que se considera seu aluno.
E como é prazeroso ler sua análise da Obra de um Mestre VERMEER, de uma de suas Obras como essa em causa: " A Garota com brinco de pérola".
Só quem ama muito a Pintura pode chegar ao alto nível de conhecimento e observação que tens da Arte.
Muito Obrigado.
Mestre Bortolotto, com quem muito temos aprendido sobre economia e sensatez e fidalguia aqui e noutras paragens virtuais.
ExcluirNão sou professor de coisa nenhuma e, na nossa casa, quem tem formação acadêmica em História da Arte é a minha mulher que aliás iniciou a minha “doutrinação” há quase quarenta anos. Fazer o quê?
Gosto mesmo é de estudar e de pensar e de escrever e pronto. E Dona Arte muito me ajuda a fazer tudo isso pois, como tão bem colocou a Donana, o seu papel é “intrigar, assombrar e forçar a inquietude e o pensamento, as questões e procuras, nunca respostas.”
Muito obrigado lhe digo eu pelo incentivo das suas leitura e palavras generosas.
Abraço
Muito bom. Para mim a pintura começou a ficar interessante no começo do século passado e você sabe disto. Mas não posso deixar passar em branco a qualidade do seu post. E o Vermeer não estava com segundas intenções quando pintou esta garota. Já terceiras, pode até ser, rs
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirEu sei sim e por isso mesmo agradeço-lhe pela sua participação no blog. Mas keep reading pois logo alcançaremos a tal da modernidade e antes disso conversaremos sobre as “terceiras” intenções do prezado Vermeer(rsrs)
Olá Moacir,
ResponderExcluirOnde mais arranjaríamos uma aula tão fantástica?
Garota de brinco, Gata Borralheira, de pergunta ou resposta, filha ou amante, essa obra é maravilhosa. É tão impressionante que a vejo grande e não nos seus pequenos 46,5 x 40 cm.
É sempre assim uma grande obra, " em vão desejamos compreende-las". Por isso são únicas no papel de qualquer arte,que é intrigar, assombrar e forçar a inquietude e o pensamento. Questões e procuras, nunca respostas.
Segundo texto que li Vermeer também teria se inspirado no "Menino em um Turbante" de Michael Sweerts, de dez anos antes. O que você sabe sobre isso?
Apesar do alto preço desse azul maravilhoso, parece que ele o usou em muitas telas. Ainda bem que tinha patrocinador.
Voce questiona se, caso a modelo tivesse sido Magdalena van Ruijven, se um pai deixaria uma filha ser retratada tão sensualmente. O mesmo vale para o pintor se a modelo fosse sua filha Maria. Penso que a teria pintado mais para a inocência de Beatrice Cenci e não sensualizando uma boca entreaberta.
Hum, se Vermeer não precisava das pérolas as " suas mulheres" precisavam muito...(questionável, sei disso rsrs)
Para fazer a Moça no cinema só Scarlett, com sua boca sensual e seu olhar de menina sabida.
Muito, muito obrigada.
Até muito, muito mais.
Pimentel,
ResponderExcluirO seu artigo sobre a obra prima de Vermeer é didático e rico em informações porque você não brinca em serviço. Entretanto ele jamais se torna maçante por causa da sua maneira leve e bem humorada de escrever. Terminada a leitura se fica com pena.
Sampaio,
ExcluirMuito obrigado pela leitura e comentário. Bem sei que os meus rascunhos são longos demais. Daí o nosso Editor ter sugerido as “franquias”. Muito tenho me esforçado para chegar à síntese mas admito que os resultados nem sempre são visíveis (rsrs) Por isso folgo em saber que quando um interminááável texto meu termina, você fica com pena. Mas acho melhor perseverar na economia das pretinhas.
Pimentel,
ResponderExcluirOs teus comentários sobre as obras de artes dos grandes pintores e escultores são tão didáticos e espetaculares, que consegues a atenção mesmo daqueles que não davam muita importância a tais atrações, o meu caso, por exemplo.
Não que eu as desconsiderasse, não, mas jamais seriam aquelas que eu as reputaria como de minhas preferências.
Dito isso, depois de tanto ler os teus textos maravilhosamente bem escritos, com detalhes e pormenores que somente um especialista para poder registrá-los com tanto conhecimento, confesso que aguardo com grande expectativa as tuas análises a respeito, tanto para arquivá-las quanto para tomar conhecimento das informações contidas nos teus artigos sobre as telas analisadas e seus autores.
Portanto, o meu agradecimento sobre sessas aulas que versam sobre pintura e escultura, que enaltecem sobremaneira este blog extraordinário, de modo que também possamos aplaudir e com entusiasmo e devida ênfase, o teu talento primoroso como crítico e observador.
Um forte abraço.
Saúde e paz, extensivos aos teus amados.
Bendl,
ExcluirO que seria do bel canto se todos preferissem a pintura, e dela se todos só gostassem de ópera? O importante é que jamais nos fartaremos de pintura, música, teatro e dos benditos livros e leituras, essas maravilhas que trazem tanta beleza e alegria para as nossas vidas.
É muito bom encontrar um dos seus comentários exagerados debaixo dos meus escritos, mas melhor ainda é comentar debaixo de um dos seus.
Muito obrigado e outro abraço