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Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Depois da luz e da cor o visitante mediunizado pelas belezas da Sagrada
Família se espanta com o tamanho do templo, com aquelas abóbadas altíssimas e
com uma impressionante variedade de colunas que foram concebidas, de caso
pensado, para parecer com árvores crescendo inclinadas dentro da Basílica.
Como já vimos na conversa anterior, na Sagrada Família a luz natural
penetra e mistura-se com as luzes elétricas de última geração, dando a
impressão de que os raios do sol furam o dossel de uma floresta. Tudo contribui
para uma sensação de que, embora se esteja dentro da igreja, pode-se facilmente
imaginar estar do lado fora, em uma selva branca rodeada por algumas das mais
intensamente coloridas janelas de vitrais que já se viu.
Gaudí nesse projeto usou e abusou da luz natural em uma das exibições
mais impressionantes que eu já vi. Muito mais do que a cor proporcionada pelos
materiais de construção utilizados tais como os diferentes tipos de pedra e
azulejos nas abóbadas, pelos muitos detalhes simbólicos coloridos nas colunas e
capiteis e claraboias e vidros, é a luz do sol que dota o interior da Sagrada
Família de vida harmoniosa e acentua a plasticidade da nave e, acima de tudo,
conduz à introspecção.
Também as colunas ramificadas, além de ter uma função estrutural,
convidam à oração e à celebração da fé.
A pergunta que não quer se calar é: “ISSO
é realmente Gaudí?”
Essa igreja conservou a cara do grande arquiteto catalão que ajustava
seus edifícios à medida que eles avançavam, modificando detalhes em resposta às
pedras incomuns que lhe traziam das pedreiras?
Eu acho que é uma excelente interpretação de Gaudí. A sua visão genial é
visível em todos os elementos e segmentos da Sagrada Família. Prestaram atenção
a cada detalhe dos croquis, esboços, maquetes sobreviventes do seu trabalho e
exatamente como fazia o mestre integraram perfeitamente esculturas, vitrais,
cerâmica e outros artesanatos na arquitetura grandiosa.
É claro que desde 1882 o trabalho que vem sendo realizado na Sagrada
Família prossegue. E realmente não mais estamos diante da imaginação de um só
singular e genial arquiteto religioso, mas do esforço de várias gerações
determinadas de profissionais dedicados.
O certo é que Gaudí estava muito à frente de seu tempo e que aqueles que
criticam a Sagrada Família fazem isso em grande parte porque se recusam a ver
além do inusitado de suas formas ricamente decoradas e aparentemente
arbitrárias. Se rasparmos a superfície, entretanto, esse assombroso edifício
confirma ser uma proeza, uma incrível exibição de força, habilidade e
engenhosidade, de matemática altamente sofisticada e de engenharia estrutural
avançada.
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Moacir Pimentel |
Para criar seus arcos e tetos que são, ao mesmo tempo, elegantes e
estruturalmente muito fortes, em vez de fazer desenhos tradicionais Gaudí criou
um suporte de alvenaria para um complexo conjunto de correntes suspensas e
penduradas pra poder estudar a matemática dessas curvas chamadas de catenárias,
da palavra latina para catena ou corrente.
As curvas catenárias do arquiteto eram as formas que as correntes
tomavam quando ele as suspendia pelas duas extremidades e, em seguida,
deixava-as cair naturalmente sob a força da gravidade. Olhando para um espelho
no chão, ele desenhava os arcos e colunas de seus projetos à imagem e
semelhança do reflexo das correntes no espelho
O método altamente inovador e baseado na teoria da reversão da catenária
foi chamado por ele de “o modelo pendurado”. Gaudí simplesmente entendeu que a
forma da catenária de cabeça para baixo era perfeita para um arco de alvenaria
de pedra de cabeça para cima. Simples assim.
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Imagens Wikimedia / Moacir Pimenel |
Esse sistema de correntes resultou nas linhas para suas colunas, arcos,
paredes e abóbadas e assim ele obteve a forma absolutamente precisa e exata da
estrutura da Sagrada Família, sem ter realizado nenhuma operação de cálculo e
sem possibilidade de erro.
O interior concebido por ele para a Sagrada Família é um delírio formado
por inéditas colunas arbóreas inclinadas e abóbadas baseadas em hiperboloides e
paraboloides buscando sempre a forma da catenária. Um método descomplicado,
intuitivo e elementar que permitiu a Gaudí obter formas equilibradas muito
semelhantes às que existem na natureza.
Hoje os seus projetos são concluídos à luz do design espacial e de
técnicas paramétricas de modelagem computacional. Em uma época na qual as
pedras do templo são cortadas por máquinas computadorizadas não deixa de ser
humilhante que o arquiteto fosse capaz de elaborar modelos matemáticos
tridimensionais complexos em sua mente, usando apenas a intuição. Um milagre
arquitetônico.
Gaudí era de opinão que o gótico era imperfeito, porque as suas formas
retas, o seu sistema de pilares e arcobotantes não refletiam as leis da
natureza que, segundo ele, é propensa às formas geométricas regradas, como são
o paraboloide hiperbólico, o hiberboloide, o helicoide e o conoide.
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Moacir Pimentel |
Antigamente quando eu ouvia um destes palavrões - paraboloide
hiperbólico, hiberboloide, helicoide e conoide - ficava cismado e encolhido na
minha insignificância e envergonhado de confessar que não fazia a menor ideia
do que fossem.
Hoje já consigo fazer uma elementar tradução: são apenas formas
abstraídas por Gaudí da natureza - em juncos, árvores, ossos, conchas etc -
depois traduzidas para o desenho das colunas, abóbadas e elementos geométricos
que se entrecruzam na estrutura da Sagrada Família, sem o uso de contrafortes
góticos.
A forma helicoidal, por exemplo, é universal. Ela mora em todas as
formas de matéria, da estrutura microcósmica atômica à estrutura molecular do
DNA e à forma espiral macrocósmica das galáxias. Após o estudo cuidadoso da
estrutura de esqueletos de animais, plantas ou conchas, Gaudí encontrou novas formas
que adotou como guias, depois de cálculos matemáticos provarem que eram
adequadas para seu propósito. Como as suas escadarias na forma da espiral
logarítmica presente nos fósseis de conchas jurássicas.
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Moacir Pimentel |
Ele aplicou nas colunas a forma dos troncos do eucalipto ou do
castanheiro, afirmando que as colunas teriam sido muito provavelmente, na sua
origem, inspiradas pela forma das árvores que crescem do mesmo jeito. Gaudí
idealizou todas as colunas da Sagrada Família usando este modelo helicoide que
ele associava ao movimento.
Já as formas dos ossos humanos - tíbias e fíbulas e fêmures - são
hiperboloides e foram usadas por ele nas fachadas da Sagrada Família.
Paraboloide hiperbólica é a forma dos nervos entre os dedos, que o arquiteto
aplicou em suas criptas e que associava à luz . E last but not least conoide é forma mais frequente das folhas das
árvores que o arquiteto usou e abusou por todos os lados.
Gaudí, para quem a Caverna do Salitre em Collbató foi uma das fontes de
inspiração, dizia que não existe melhor estrutura do que um tronco de árvore ou
um esqueleto humano, formas ao mesmo tempo funcionais e estéticas, que empregou
adaptando a linguagem da natureza às formas estruturais da arquitetura,
aproveitando as suas qualidades estruturais, acústicas e de difusão da luz.
Com o passar do tempo, à medida que o trabalho de Gaudi se desenvolveu,
a influência das formas naturais tornou-se mais perceptível em suas construções
maiores. Ele não mais as aplicava só decorativamente, como fazia em seus
prédios primordiais, mas em estruturas criadas para resistir ao vento e ao
clima e ao tempo como as torres da Sagrada Família, cujas curvas seguem
fórmulas matemáticas semelhantes.
Olhe para a abóbada que coroa o interior da nave da basílica. Ela não se
assemelha a uma floresta densa de árvores com luz solar brilhando através dos
troncos e galhos?
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Moacir Pimentel |
Gaudí esperava que pudéssemos vê-la assim. Tudo o que ele projetou foi
abstraído do seu entorno, segundo suas próprias palavras, vinha “do Grande
Livro da Natureza”. Seus livros didáticos eram as montanhas e grutas que ele
adorava explorar.
As colunas-árvores da Sagrada Familia têm sistemas de ramificação, os
seus galhos se espalham cada vez mais finos imitando o crescimento
tridimensional das árvores, que acompanham a necessidade biológica de ocupar
espaços livres sem sombras.
Foi isso que Gaudí fez: criou uma estrutura ramificada que faz ótimo uso
da superfície disponível ao dividir suas colunas ramificando-as como as árvores
e dividindo-as em vários ramos em determinadas alturas. Cada ramo de uma
coluna-árvore e a própria coluna só suportam uma seção particular da
superestrutura, direcionados para o centro de gravidade da seção da abóbada que
tem que suportar.
Pelo conjunto de elementos aplicados nas colunas - inclinação, forma
helicoidal, ramificação em várias colunas menores etc, etc - o arquiteto
conseguiu uma simples forma de suportar o peso das abóbadas sem necessidade dos
contrafortes exteriores dos tempos góticos.
Na realidade, por mais que tentassem seus continuadores não conseguiram
juntar os fragmentos restantes dos modelos arquitetônicos de Gaudí da Sagrada
Família usando a geometria, até que a ficha caiu e – fiat lux! – compreenderam que a sua imaginação matemática
excepcional estava enraizada em fenômenos naturais e que ele fora beber na
fonte das formações rochosas das montanhas.
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Moacir Pimentel |
Gaudi era um homem de idéias simples e de senso comum e na sua
arquitetura se fundem a estrutura e a decoração. Ele claramente aceitou a
natureza como seu guia. Todos os aspectos de seu trabalho demonstram isso: que
não copia a natureza mas compreende a sua geometria e seus princípios e estuda
a sua infinidade de formas.
Ele estudou as leis da estática e da dinâmica, as estruturas naturais da
composição fibrosa - como juncos, bastões e ossos - interessado principalmente
nas forças internas da natureza, que se expressam na superfície. Isso pode ser
contemplado nas suas colunas inclinadas e nas paredes entortadas que suportam
tantos tetos estranhos.
Se a natureza sempre trabalha procurando soluções funcionais sob a
inexorável lei da gravidade, ele foi muito sábio ao estudar as estruturas
naturais que durante milhões de anos tiveram uma operação perfeita. Conhecendo
a essência dessas estruturas, Gaudi simplesmente levou-as para o mundo da
construção.
Por outro lado, as colunas do interior do templo têm variada simbologia
– que os medalhões brilhantes decodificam - e representam os apóstolos, os
evangelistas, cidades e até continentes, os bispados da Catalunha, os
padroeiros de cada diocese e por aí vai.
Gaudí desenhou uma planta em cruz latina muito comum nas igrejas
monásticas dos beneditinos medievais e naquelas românicas do Caminho de
Santiago. O templo tem - por enquanto! - um altar encimado por um relevo da
Sagrada Família sobre uma cripta rodeada por doze capelas, sendo que sete delas
dispostas em forma de rotunda e cinco em linha reta.
O arquiteto está sepultado na capela de Nossa Senhora do Carmo sem muito
alarde, talvez em respeito a sua personalidade arredia. O túmulo de Josep Maria
Bocabella, o construtor, se encontra na capela do Santo Cristo.
Desse altar brotam cinco naves de noventa metros de comprimento, e um
cruzeiro de três naves de sessenta metros cada. A igreja tem quarenta e seis
metros de altura nas abóbadas da nave central e trinta nas laterais. Já a
abóbada da torre central a ser erguida chegará aos sessenta metros. Tudo isso
em uma zona edificada de quatro mil e quinhentos metros quadrados com
capacidade para receber quatorze mil fieis e mais de dois mil cantores no coro.
Mora no templo ainda uma abside – uma abóbada semicilíndrica sobre a
qual será erguida a torre da Virgem Maria - que contém uma profusa decoração
escultórica onde se destacam as estátuas dedicadas aos santos fundadores de
ordens religiosas como São Bento, São Francisco de Assis e Santa Clara, os
monogramas de Jesus, Maria e José, em meio a narcisos, lírios e outros
elementos como ervas, trigo, gárgulas, cobras, lagartos, salamandras, dragões e
sapos espalhados pelos pilares e laterais das capelas.
Pode ser difícil para aqueles com uma decidida preferência por linhas
retas e pela estética minimalista apreciar esta façanha absolutamente brilhante
de construção imaginativa, mas a Sagrada Família inspirou o trabalho de alguns
dos melhores engenheiros e arquitetos do mundo ao longo do século passado como,
por exemplo, Oscar Niemeyer.
A data da conclusão da Sagrada Família tem sido por muito tempo
nebulosa, uma questão de conjectura ao invés de fato. Em 2013 dois terços do
edifício monumental estavam concluídos e o prognóstico era o de que a Sagrada
Família estaria concluída em 2026, cento e quarenta e quatro anos após o início
da sua construção, no centésimo aniversário da morte de Gaudí.
Não sei se Gaudí teria concordado com essa data mais ou menos
estabelecida para a conclusão da Sagrada Família. Ele era um homem que há muito
havia engolido sua vaidade juvenil e enterrado seu orgulho.
Num mundo em que, cada vez mais, a arquitetura tornou-se uma forma de
publicidade e de design de produtos como vistosos “ícones” que são construídos
em poucos meses como se isso fosse uma virtude, a saga da basílica de Gaudí nos
ensina a lição da paciência.
A arquitetura que vale a pena, seja uma casa ou uma catedral, tem suas
estações. A arquitetura real, verdadeira e bela ao serviço do nosso espírito e
dos nossos sentidos, bem como das nossas necessidades quotidianas é o resultado
final de criadores satisfeitos e não de gestão de prazos e de consumidores
insatisfeitos.
A construção vagarosa da Sagrada Família permitiu que novos talentos com
novas habilidades se unissem para completar a obra-prima de Gaudí, e ao tomar a
estrada lenta a Sagrada Família abraçou as habilidades, inteligências e ofícios
de gerações sucessivas.
Ao fim e ao cabo Antoni Gaudí em vez de um edifício terá criado uma
experiência de construção. Começou um processo que continuará por muito tempo
ainda e é uma espécie de educação ética e imaginativa. Não existe no vasto
mundo outro prédio como esse, no qual a colocação de cada pedra, de cada
escultura, de cada detalhe por artesãos modernos intuitivamente tentando
perseguir os planos de Gaudí, é um ato sagrado e reverente.
Quando a pedra final for posicionada, a Basílica será o lugar de oração
mais estranho e possivelmente o mais controverso jamais construído em uma
escala tão épica e o Templo Expiatório da Sagrada Família continuará a
assombrar a imaginação das gerações vindouras que poderão vir a conhecer o
arquiteto como Santo Antoni Gaudí.
Há muito tempo que estamos familiarizados com as torres e fachadas da
Sagrada Família, o modo como o edifício entra em erupção no horizonte de
Barcelona, atingindo os céus. Quando estiver pronta essa floresta petrificada
emocionante de luz, cor e pedra mostrará ao mundo que a sua modernidade está na
maneira como Gaudí internaliza o que normalmente é deixado de fora - plantas,
animais, natureza – e coloca no exterior o que geralmente está confinado dentro
das paredes de uma igreja: retábulos e esculturas narrando a história da
cristandade.
Viveremos para ver a Sagrada Família terminada, teremos a chance de
voltar a Barcelona para ver todas as belas torres levantadas?