A janela (foto de Heraldo Palmeira) |
Heraldo Palmeira
Vi a cidade enorme a primeira vez com deslumbramento e medo. Tudo era
gigantesco, superlativo, impressionante. O desejo de me sentir local soou
audacioso demais. E eu me senti apenas o grão de areia temendo o vento.
Dei os passos claudicantes de quem chega e não conhece. Experimentei,
fui aos poucos, marquei um território suficiente para me caber dentro dele.
Tudo era novo, inclusive o jeito de viver, todo mundo apressado como se não
fosse amanhecer o dia seguinte. Entrei no jogo, não havia alternativa. Aprendi
com todo mundo a ter emergências que não mereciam urgência nenhuma, não faziam
falta, mas sempre soavam indispensáveis.
Fui embora quando chegou a hora de ir, vencido o primeiro tempo do jogo.
Havia um desafio em outro lugar e não faltei com meu espírito inquieto,
curioso, confiante. Afinal, já ouvi que o mundo é mundo em qualquer lugar, o
que muda é o tamanho e o jeito de ser de cada local – e das suas pessoas. O
passar do tempo vai cada vez mais me convencendo a respeitar essa teoria.
Rodei meio mundo, voltei muitas vezes por períodos curtos e, vinte anos
depois, a vida me deu direito a um segundo tempo. Escolhido sem urgência.
Cheguei de novo. As rugas impressas ao longo da jornada ajudaram a determinar o
ritmo. Com mala e cuia guardadas em seus devidos lugares, meti pé no asfalto
urbano.
Gastei sola, fui revendo tudo, pessoas e locais, estabelecendo novos
territórios, o prazer aumentando. Percebi que me sentir local já não era tão
audacioso, apenas uma questão de lugares e horas certos. E foi acontecendo. Sem
pressa. A cidade virando minha não por propriedade, mas por afinidade.
Delicada, bondosa, quente, acolhedora. Frio somente o seu inverno famoso.
O andar pelo mundo me ensinou a arte de formar pares e a usar a
aritmética para multiplicá-los, montar trios, quartetos... nunca esquecendo de
que tudo é uma via de mão dupla. E fui convivendo com personagens conhecidos e
anônimos, sempre usando o mesmo tom na partitura dos relacionamentos porque
nenhuma nota é mais importante do que as outras.
Os primeiros tempos foram ao redor do coração sensorial da cidade, a
avenida Paulista. Um ambiente multitudo, pulsando vinte e quatro horas por dia,
todos os dias, sem trégua. Confluência de tudo e de quase todos.
Queria repetir o que vivi nos tempos do Rio, quando finalmente subi a
colina e fui viver o cotidiano incomum de Santa Teresa, muito diferente do
resto da cidade. Sou atraído por lugares assim, deve ser coisa de quem vem do
interior.
Aqui a ladeira foi menor, vim para o alto de Perdizes – ou das Perdizes,
como dizem os mais tradicionais. Casa. Rua sem saída, fechada em condomínio,
portão na entrada. Só entra quem tem negócio. Transversal de uma avenida
importante onde tem de tudo. O glamour é discreto, sem exibicionismo. Melhor
assim.
O ambiente bucólico e calmo cria um ar de cidade de interior que reflete
numa ótima convivência entre as pessoas. Muita gente se conhece. Muita gente se
conhece pelo nome. E os estranhos são logo notados.
O arvoredo cria um cenário espetacular com o sol, ainda mais no entardecer,
quando o dourado parece marcar ponto ali. A passarada faz farra o dia todo,
como que celebrando a natureza ao redor. Na minha rua os gatos vivem à solta,
perambulando pelas casas como se fossem de todas elas. Há sempre um pratinho de
comida a mais, para o da casa não passar vergonha com suas visitas.
A rua do entardecer dourado (foto de Heraldo Palmeira) |
No campanário da igreja os sinos dobram em seu repique tradicional ao
meio-dia e na Hora do Angelus. Nada muito longo, apenas para nos lembrar que o
tempo está passando, que o mistério permeia a vida independentemente de
religião ou fé.
A padaria de todos os dias é sagrada. Outro dia, almoçando com um amigo,
testemunhei uma moça entregando um buquê de flores para a atendente. Duas
amigas festejando o Dia das Mães, com tom de agradecimento por algum favor
feito antes. Alegria verdadeira, farra que fizemos juntos porque a presenteada
deixou o cartão cair na calçada, que eu prontamente apanhei.
– Tá vendo só? Eu me desdobro para escrever umas linhas e ela joga fora
antes de abrir!
– Bem feito, podia ter escolhido uma amiga melhor – emendei e caímos
todos na gargalhada.
Há também o pé-sujo de lei, comida caseira da melhor qualidade! Segredo
tão bem guardado que sequer tem placa na porta. Nenhuma indicação comercial,
apenas aberto de forma acolhedora. A feijoada famosa – tem de ser reservada –
servida na calçada lateral é um prazer indescritível.
O velho garçom senta-se à mesa para conversar um pouquinho quando o
serviço dá um refresco – gosto de almoçar tarde e, aqui e ali, tenho esse
privilégio!
A calçada do sabor (foto de Heraldo Palmeira) |
A lavanderia faz atendimento domiciliar sem cobrar mais por isso. Tem
preços em conta, mas o atendente vai logo avisando que, havendo regularidade,
se conversa um desconto. E quando há desencontro na hora da entrega, a vizinha
recebe tudo como se fosse a coisa mais natural do mundo.
O ponto de táxi é um reduto de veteranos que nem se dão mais ao trabalho
de reclamar dos aplicativos de mobilidade urbana. E, convenhamos, nenhum
serviço moderninho oferece aquele papo inigualável sobre qualquer assunto.
Afinal, não se faz história do dia para a noite.
Acordamos com a passarinhada. Os barulhos urbanos são menores, ainda há
um resto de silêncio noturno. Mas aqui as escuridões também se perderam em
tanta iluminação, o que certamente faz nossos passarinhos – os sabiás no
comando dos silvos e gorjeios a plenos pulmões – começarem a sinfonia ali pelas
três da manhã.
Sim, os coitados estão confusos, não mais anoitece de acordo com as
referências de claro e escuro que guardam na memória genética. A luzerna da
cidade dá o comando errado e eles acreditam que já amanheceu no meio da
madrugada.
Mas a gente termina se acostumando e, quando acorda com a música deles,
aproveita para tomar uma aguinha, ir ao banheiro, apagar uma luz que ficou
acesa, e adormece de novo embalado pela sinfonia.
Sejamos racionais, fomos nós que destrambelhamos a lógica da natureza
com a mania de interferir em tudo. Agora, para quem tem a sorte de merecer esse
pelotão de cantores silvestres, é aguentar o tranco e mudar, mesmo sem querer,
o relógio biológico. É o troco que nos cabe.
Um dos grandes tesouros que tenho aqui é a minha janela. Não há prédio
diante dela, apenas algumas casas da mesma altura, que não têm a menor intenção
de esconder a vista do cinturão purificador da copa das árvores. Ou o céu noturno
que se esforça para ser pleno, apesar dos prédios e torres mais distantes.
Do alto da pequena colina posso ver um pouco do vale que se esparrama lá
adiante, e a rota dos passarinhos livres pelo direito de ir e vir num espaço
aéreo que não precisa de controladores de voo.
Da minha janela posso ver os periquitos e maritacas nos fios e postes
que estão quase ao alcance da mão. Gosto de assoviar com eles, certo de que
estou sendo aceito no bando. Educados, eles fingem que sim, pois não vivem para
fazer ninguém infeliz.
Posso ver a mulher bonita da casa da frente, sempre sozinha, que não é
simpática, que não é antipática. Que é sempre pródiga quando se curva para
tirar coisas do porta-malas do carrinho inglês e enleva a cena com todos os
contornos dos desejos puros e impuros. Impontuais. Perfeitos. Felizes.
Posso ver o movimento do gato da casa entrando e saindo para seus
compromissos, pois escolheu exatamente a minha janela e o telhado do andar de
baixo como rota particular. Ele nunca deixa de fazer uma social quando está de
passagem, ronronando ou se esfregando nas minhas canelas. Se tem mais tempo,
acomoda em meu colo e fica assistindo as letras chegando em correria pela tela,
ou tirando um cochilo. Às vezes, até fica para dormir. Malandro, mimoso,
vivedor, praticando afinidade.
O cochilo (foto de Heraldo Palmeira) |
Posso ver o sereno da noite revelado pela luz do poste da iluminação
pública ou cortado pelos pequenos insetos em seus voos calmos em busca de
calor. Um jeito de escrever poesia na falta de escuridão.
O sereno (foto de Heraldo Palmeira) |
Posso deitar com tudo apagado e me entregar à brisa como quem recebe um
abraço das delicadas sombras noturnas. Ou ser apenas mais uma criatura da noite
tentando esquecer o próprio destino, querendo deixar para quando amanhecer e
tudo recomeçar.
Neste pedaço reservado da cidade gigante reconheço a minha cidadezinha
do interior. Que tinha postes que serviam somente para sustentar fios, abrigar
passarinhos e inutilizar pipas de garotos sem perícia. Aqui não existem garotos
sem perícia, porque os de hoje já quase não sabem o que é pipa, quanto mais
soltar pipas. Perícia? É melhor não insistir, já foi recolhida à língua morta.
O segundo tempo do jogo foi decisivo. Aprendi a passear na garoa.
Encontrei minhas saídas. Desvendei o desconhecido. Conquistei meu território de
comum acordo. Passei a fazer parte do estabelecido. Reconheço meu lugar. Agora
a cidade enorme está tatuada em mim.
Não é mais insondável nem assustadora. Moderníssima, antenada, aceitou o
pedido de amizade que enviei no formato analógico. Percebi que nunca fui
audacioso demais, apenas estava assustado a mais naquele primeiro tempo antigo.
Doravante, ela vai comigo aonde eu for porque me deu sua honrosa
cidadania. Porque se mostra linda e terna para quem, como eu, se dispõe a
encontrar a poesia concreta, abstrata e moderna de suas esquinas. E ainda
flertar com sua alma feminina, que passa na elegância nada discreta de suas
meninas. Por isso, alguma coisa sempre acontece.
Começo a antever o futuro, aprendendo a sentir a saudade que ainda não
veio porque está a caminho. Talvez eu não consiga compor uma valsa para a
cidade. Mas me traduzo nos versos de Maria “Calçada cheia de gente a passar e a
me ver passar”. E digo algo no silêncio agradecido do meu coração: São Paulo,
gosto de você!
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirNão deu para comentar antes e lamento porque essa sua Janela, que tenho certeza ainda nos renderá muitas conversas, bem que merecia mais "urgência". Conheço essa sua "cidade do interior" que não mora em meio ao asfalto coisa nenhuma mas dentro do seu peito poeta sempre generoso e capaz de flertar com a vida seja lá onde for. Entre ladeira, postes e fios, vizinha, arvoredo, céu noturno, sinos e passarada e , é claro, gatos que nunca passam vergonha diante das visitas (rsrs) eu até relevei o cartão esquecido na calçada, saboreei a feijoada e joguei conversa fora com os velhos garçons e taxistas e quase menti: "São Paulo, gosto de você!"
Não há melhor sensação do que essa que você descreve com sua bic e fotos: a de pertencimento. Nem felicidade mais doida de boa do que a de chegar e nos instalar de "mala e cuia", em casa finalmente.
Seja feliz de volta à garoa.
Caríssimo,
ExcluirA megalópole é tamanha que as pessoas nem percebem que existe algo assim dentro dela. Eu também tenho desde sempre esse lado urbanóide que me faz gostar de Sampa. Ainda mais agora que pude descobrir esse pedacinho peculiar. Aí, é fatal: isso que você generosamente chama de poesia do peito aparece.
Pena que não haja uma volta finalmente, mas apenas mais umpedaço da vida que vou passando por aqui. Em breve, tempo de me dedicar à t'rrinha, que certamente me dará histórias prontinhas. Abraço.
Um texto de primeiríssima, contando seu namoro lento, cuidado, afetivo para conquistar (e ser conquistado) a cidade que você já chama de sua. E a descrição da sua rua me lembrou com muita saudade a nossa quando nos mudamos para cá, recém casados, quarenta e seis anos atrás, que era calma, bonita e sem prédios e das nossas janelas tinhamos uma vista maravilhosa do céu e do paredão protetor da Serra do Curral. Antes que virasse a principal via de tráfego de passagem do bairro, que o ruído do trânsito se tornasse insuportável e que os prédios multiplicados tampassem a vista que já não importava tanto porque a mineração tinha destruído o perfil orgulhoso da serra. Sobrou apenas o ponto de táxi em frente a nossa casa, onde, como no seu, persistem velhos motoristas de boa conversa que nos conhecem e aos vizinhos há quase quarenta anos.
ResponderExcluirQue você seja sempre feliz na sua antiga terra renovada deste segundo tempo com que a vida o presenteou.
Um abraço do
Mano
Mano,
ExcluirAcho incomparável o que essas ruas oferecem sem fazer força, apenas por ser como são. Tanto que você imediatamente se anima a falar da sua, que infelizmente só vive agora nas (boas) lembranças.
Sim, vou sendo feliz a cada dia, pois só posso viver um por vez.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirMais um texto encantador. Que eu li parando para saborear cada pedacinho. Primeiro fiquei melancólica, e depois invadida de uma alegria calma de coisa boa.
Adorei o pratinho extra para os comvidados.
Parabéns.
Até muito mais.
Ana,
ExcluirObrigado. Quando tento contar minhas histórias, procuro logo puxar a cadeira para o leitor sentar, vir para perto. Assim vira quesa prosa.
Sim, os gatos daqui são cheios de coisa, refinados. Até mais, muito.
Oi Heraldo,Fiquei encantada com a descrição do cenário visto da sua janela. Não parece em nada com a não visào que tinha pelas janelas tapadas dos hotéis onde me hospedava! Que SP bucólica é romântica que vc.descreve... E ainda tem gatos..coisa que nem sabia que ainda havia nessa cidade. Achei que todos haviam virado churrasquinho... Seja feliz , continue achando o que normalmente ninguém vê...parabéns pelo texto e sucesso! Abração amigo.
ResponderExcluirIsabel,
ExcluirAcho que a gente precisa querer ver as coisas para poder realmente enxergá-las, embora essa rua seja mesmo assim, cheia de coisas que saltam aos olhos.
Também me hospedei muito em hotéis como esses seus, com janelas inúteis. Penso que nosso estado de espírito ajuda a direcionar nossa visão. Abraço.
Bela crônica, Palmeira.
ResponderExcluirFeita com esmero e qualidade, e realçada por fotos muito bonitas.
Parabéns.
Um abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirObrigado. Abraço.
Amigo, como sempre, uma delícia de se ler! Trás a esperança que, em uma sociedade mais "digital", o que realmente vale é a escala humana, as coisas que nos aproximam e que são reais. Parabéns, forte abraço.
ResponderExcluirMeu caro,
Excluireu serei sempre um adepto das tecnologias e das boas novidades, mas prioritariamente apaixonado pelas humanidades que somos capazes de cometer, pois elas são sempre primordiais.
1) Um bom cronista falando de Sampa.
ResponderExcluir2) Sampa querida e amada, do verde e branco Palmeiras e da Escola de Samba Mancha Verde, o aniversário da escola é no próximo sábado, 21/10. Parabéns desde já.
3)Parabéns ao Heraldo !
Antonio,
ExcluirObrigado. Quanto ao futebol, há pelo menos quatro caminhos de importância similar. No samba, muitos mais. Abraço.
O amigo HP além de ótimo cronista é um fotógrafo sensacional!! eu já sabia!! ótimo texto, excelentes fotos!! Grande abraço!
ResponderExcluirWagner Monteiro
WM,
ExcluirA crônica nada mais é a tradução daquilo que o olho viu e a memória guardou. As fotos são garantidas pelas paisagens do lugar, é mais ou menos apontar e pronto! Abraço.
Pois é, Heraldo. Gostei de ver a minha cidade pela sua janela!
ResponderExcluirAna,
ExcluirSua cidade enrou pela minha janela dessa forma.