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Émile Vernon - Jeune fille aux roses (imagem Wikimedia Commons) |
Francisco Bendl
Não é
novidade que viajei muito durante a minha vida.
Desde que
nasci me botaram dentro de automóveis, ônibus, aviões, carroças, e lá ia eu
sacolejando de um lado para outro.
Até os dezessete
anos, eu já havia perambulado por milhões de quilômetros, sem exagero, pois
nesta idade eu retornara de Brasília após seis anos e meio residindo no
Planalto Central desde 1959, e lembro que sou gaúcho.
Quando fui
servir à Pátria, em 68, eu era um indivíduo muito experiente em termos de ter
absorvido modos e costumes de várias regiões do Brasil.
Ao dar
baixa, quatro anos depois, Cabo, da Polícia do Exército, voltei a viajar, pois
casado e tendo de sustentar a família, a profissão de vendedor-viajante era
aquela que melhor remunerava , haja vista que o profissional precisava ter
carro próprio e, naquela época, início dos anos setenta, não era assim tão
simples.
Sem ter a
técnica tão apurada do Pimentel para as observações quanto ao estilo arquitetônico
das casas, prédios e instituições, eu me fixava às vezes nos personagens mais
conhecidos das cidades, aqueles considerados folclóricos, invariavelmente com
alguma perturbação mental, mas pessoas pacatas, calmas, divertidas.
No auge do
Senna, década de oitenta, uma cidade do meu Rio Grande do Sul tinha um
jornaleiro que se vestia como o inigualável piloto brasileiro:
Macacão
vermelho, capacete de moto que pintara de amarelo, o macacão com os dizeres McLaren
e F1, vendia jornal na esquina mais movimentada da cidade.
A questão
era que o jornal era entregue na quadra seguinte.
Explico:
A pessoa
comprava o jornal com o carro parado na sinaleira ou farol, e o Senna corria na
frente para entregar o jornal na outra sinaleira ou farol, e dizendo esbaforido
para o motorista que ele vencera a corrida!
E, ele mesmo
saía cantando o Hino da Vitória, quando não alguns carros que tinham a fita, as
entoassem para gáudio do Senninha.
Dois, três
anos depois voltei àquela cidade e perguntei pelo Senninha.
Ele havia sido
morto atropelado por um carro, certamente um Alain Prost, que não suportava
mais ouvir que Senna foi o melhor piloto de todos os tempos!
Um outro
personagem muito interessante que encontrei nas Missões, no Rio Grande do Sul,
foi um pipoqueiro.
Quando
viajei para esta cidade pela primeira vez, em 1972, assim que dei baixa da PE,
o pipoqueiro já existia, com o seu carrinho em alumínio, bem feito, higiênico,
e o indefectível cheiro da pipoca, um dos melhores remédios para o desânimo, já
perceberam?!
Na condição
de fã da pipoca, eu comprava dois saquinhos de papel, e ia devorando as
deliciosas pipocas enquanto andava com o carro.
Todas as
vezes que eu chegava na cidade, lá ia eu para aquela esquina comprar a pipoca,
de tão gostosa que era.
Fizemos
amizade, em face da minha fidelidade como cliente e fora do local, então eu
ganhava uma concha a mais de pipoca, e, claro, quando dava eu pagava um pouco
mais pelo “produto”.
Houve a
circunstância de eu mudar de região, e fiquei sem ir à cidade do meu amigo
pipoqueiro por uns cinco ou seis anos, mais ou menos.
Fui ao
encontro da sua carrocinha e não a encontrei no local de costume.
Perguntei
para alguns pedestres o paradeiro do Heitor, nome do pipoqueiro, e me disseram
que morrera queimado um mês antes!
Perguntei
como, e me responderam que ele era sozinho, que morava em um barraco.
Com o frio,
colocara álcool numa tampa de panela para se esquentar e adormecera.
Possivelmente
o combustível derramara e ateou fogo ao chão, de madeira, e Heitor deve ter ido
aos céus sem saber, mas que deve estar fazendo pipoca isso é inevitável!
Comecei a
pensar que os personagens conhecidos das cidades tinham todos eles o mesmo fim
trágico, que me entristecia, mas eu exagerara nessa conclusão.
No Sul do
estado, Rio Grande, onde fica o nosso superporto, a cidade me encantava porque
o meu roteiro era completado de barco!
Eu tinha de
deixar o carro no cais, pegar uma balsa para São José do Norte, atravessar o
canal, que levava meia hora, e atender ao cliente do outro lado do mar.
São José é a única cidade no Brasil que tem uma HIDROVIÁRIA, pois não tem como se chegar ao
outro lado do Rio Grande que não seja por balsa.
Às vezes o
mar estava com ondas fortes, então o serviço era interrompido por segurança,
mas, em outras ocasiões, mesmo com ondas maiores que as normais, a balsa fazia
o transporte dos passageiros, pois a carga ia em outra embarcação, que aportava
e saía fora da Hidroviária.
Numa dessas
idas, aconteceu o contrário.
Saí de Rio
Grande depois do almoço, fui a São José, e o tempo virou de uma hora para
outra!
Não saia
balsa nenhuma, e o horário da última embarcação era às 17h, de modo que o
timoneiro visse o canal, evidentemente.
Aguardei na
hidroviária que qualquer balsa fizesse o percurso de volta, pois passar a noite
em São José não seria problema, a questão era o meu carro no cais em Rio Grande com a minha mala
de roupas!
Foi quando
conheci o personagem mais engraçado que eu tivera oportunidade na vida:
O cara do
alto falante, aquele que anunciava as mortes das pessoas ANTES de elas
ACONTECEREM!!!
O sujeito
era mesmo um tanto desmiolado.
Alguém com
más intenções dera um alto falante para essa pessoa brincar, cantar, berrar,
enfim, se divertir, mesmo atazanando os ouvidos dos demais cidadãos.
Mas, não sei
porque cargas d’água, o mancebo entendeu que mais divertido seria se ele saísse
dizendo os nomes das pessoas que conhecia, e quando e como que elas
morreriam!!!
Então ele
falava assim:
- João Carlos, alto e bom som, João
Carlos, tu vais morrer engasgado!
Cinco
minutos e ele berrando o nome do João Carlos.
- Doralino, tu vais morrer de frio pescando!
Mas, o
divertido era quando ele botava os podres do pessoal para fora, pois astuto,
observador, ele sabia os segredos noturnos da localidade.
- Adroaldo, tu vais morrer na cama da Esmeralda!
- Etelvira, tu vais morrer com o Joaquim, pois a mulher dele vai
matar vocês dois!
As risadas e
gargalhadas na hidroviária ecoavam, pois certamente algumas dessas pessoas eram
conhecidas do público.
Ninguém
sabia o nome dele, apenas que era o cara do alto falante.
Jamais
voltei a São José do Norte, depois de atender a cidade por três anos e a cada
três meses, mas o personagem um dia eu disse para mim mesmo que eu iria
escrever a respeito.
Ah, voltei
no mesmo dia para Rio Grande, na última lancha, pois uma pessoa adoeceu e
precisou baixar hospital urgentemente!
Indiscutivelmente
não há cidade grande, média ou pequena, que não tenha um indivíduo meio
adoidado.
Não agridem,
não ofendem, transitam por entre as pessoas sem problema.
Uma cidade
do interior do Rio Grande do Sul na década de setenta, tivera da prefeitura a
ideia de ter um hospício.
As cidades
circunvizinhas aproveitariam este estabelecimento para colocar os seus cidadãos
mais prá lá do que prá cá nas suas dependências, e essas localidades se
livrariam dos personagens se, divertidos e pacatos, por outro lado,
inconvenientes.
O Zé era o
mais famoso deles, e residia na fronteira com a Argentina, Uruguaiana.
Esperto,
mandão, ficava sério se o desobedecessem.
Mas, em
seguida, ria e dizia que estava brincando.
Um ano
depois e de reunirem cerca de quinze pessoas nessas condições, o hospício foi
inaugurado na região da Campanha.
O Zé estava
entre eles.
Eu
trabalhava em laboratório de medicamentos, e um dos meus produtos era
exatamente para esse tipo de paciente, logo, o hospício seria meu cliente
natural.
O médico que
me atendia era muito solícito, e contava os casos dos pacientes mais criativos
e divertidos, mas impressionava o Zé, de personalidade forte, comandante,
inventivo.
Disse-me o
psiquiatra, que nos primeiros dias o Zé quis marcar o seu território, ou seja,
quem manda aqui sou eu!
E inventou a
brincadeira da laranja madura.
Saiu a
berrar o nome dos colegas pelo estabelecimento, colocou-os em fila, e disse que
brincariam de laranja madura.
Havia na
propriedade um cinamomo gigante, uma árvore frondosa, que emitia aquelas
bolinhas verdes em cachos que se usava nas fundas, bodoques e estilingues.
Pois mandou
que cada um deles subisse na árvore, escolhesse um galho para si, e de acordo
com o número que o Zé, embaixo da árvore pronunciasse, o sujeito no galho
responderia laranja madura e se atirava lá do alto!
- João, laranja um, berrava.
O João então
respondia:
- João
laranja madura, e se jogava árvore abaixo!
Evidente que
o João, assim como dois ou três dos seus colegas se machucavam. Ou torciam o
pé, ou o braço, a queda era forte!
- Laranja 5, o Zé chamava.
- Laranja cinco madura, e plaft!
No entanto,
se o Zé era expansivo, havia o Raúl, inibido, olhar amedrontado, sempre
observando e se cuidando.
Quando
chegou a vez dele, o João que adorava a brincadeira, claro, berra:
- Raúl, laranja 7!
- A laranja 7 ainda está verde, chama a oito!!!
O médico se
contorcia de tanto rir desse episódio, que deixou o Zé sem jeito, a ponto de
acabar com a brincadeira.
Sem contar
que são verdadeiras as cenas hoje compondo o anedotário nacional, sobre o
telefone:
- Alô, é do hospital?
- Não. Aqui nem tem telefone!
Ou:
Ambos
doentes viajavam de trem, e um disse para o outro:
- Olha, as árvores andam mais depressa!
- Na próxima vez vamos de árvore!!!
Mas, a
personagem mais interessante, mais extraordinária que eu tive a chance conhecer,
que mais me perturbou, que mais me impressionou, foi de uma florista.
A cidade se
localiza na serra gaúcha, famosa, acolhedora.
Faz um frio
de ranguear cusco no inverno, como se diz no Rio Grande do Sul, pois neva
muito, e as temperaturas descem facilmente para abaixo de zero!
Foi a
primeira cidade que visitei como profissional, pois antes eu estivera várias
vezes a passeio, logo, os meus objetivos eram outros, e não observar as pessoas
como foi desta vez.
No
cruzamento de duas avenidas das principais dessa cidade, havia uma senhora com
a sua filha, que vendiam rosas.
O cruzamento
era distante do cemitério, portanto quem comprava as flores era quem
evidentemente desejaria enfeitar a casa ou dá-las de presente para alguém.
De carro não
percebi a maneira como vendiam o produto, mas um dia eu tive de deixar o
veículo em um estacionamento e fui a pé visitar o meu cliente, passando pelas
duas mulheres que vendiam as flores.
Ao me
aproximar, a pergunta que me dirigiram era inevitável:
- Moço, rosas para levar para a sua esposa?!
Quem me
questionara foi uma jovem do rosto mais lindo que eu conhecera!!!
Cabelos
pretos ou pelo menos a ponta deixada pelo lenço que usava em razão do vento,
olhos de um azul penetrante, forte, inigualáveis, e um sorriso que desmancharia
qualquer não à aquisição de uma ou duas flores.
A voz era
maviosa, calma, bela, cantada, como se a venda das rosas fosse uma função
celestial!
Estanquei,
sem dizer nada.
Acho que
devo ter gaguejado quando perguntei o preço, e levei duas para o comprador (o
que ele pensou de mim nessa ocasião não me interessa, mas as rosas eu as
adquiri e dei de presente)!!!
A beleza
daquela moça me impressionara, e eu não esperava pelo momento de vê-la de novo
quando eu fosse pegar o carro no estacionamento.
Quando ela
me viu e sem as flores, foi inevitável:
- Que rápido que deste de presente as rosas. Deves ter muitas
admiradoras!
Meio que
“tastaviei”, pois se existe um cara que nunca se sentiu bonito sou eu, pelo
contrário, feio, grande, fora de moda, pobre, ortodoxo, desajeitado ...
- Não, não tenho admiradoras, mas tão somente perseguidoras quando
não entrego os meus pedidos em dia, respondi.
Ela riu –
aliás, sorriu com os dentes mais espetaculares que eu vira!
Mesmo as
pessoas que eram usadas para divulgar creme dental não tinham uma dentadura
igual!!!
Meio sem
jeito, eu lhe perguntei por que uma moça tão bonita vendia rosas, e não
trabalhava em uma loja ou banco ou, enfim, que não fosse dentro de um
estabelecimento e não na rua?!
Disse-me o
seguinte:
- Moço, as flores é que são lindas, e são por intermédio delas que os seus olhos assim me veem!!!
Peguei o
carro e quando retornei ela e a mãe tinham ido embora.
No dia
seguinte, lá estavam vendendo as rosas.
Eu não podia
comprá-las de novo, afinal de contas ela poderia pensar algo indevido, além de
haver muita gente comprando as flores, e marmanjos, certamente pela beleza da
moça.
Mas, à
tarde, criei coragem e voltei à esquina das rosas.
Se eu
comprasse as flores eu as daria para a camareira do hotel ou a primeira mulher
que eu visse.
Ambas se
ajeitavam para parar por aquele dia, quando perguntei do carro se havia alguma
rosa, ainda.
A bela
prontamente me respondeu que somente havia as rosas já murchas, que não seriam
mais tão bem recebidas quanto as frescas.
Mas, que a
vida era exatamente como as rosas, que, colhidas no pé eram exuberantes, e
desabrochavam com o dia, para irem diminuindo com o tempo, perderem o viço e
serem jogadas fora!
Acenou-me, e
me disse que eu voltasse cedo, se quisesse as rosas bonitas.
Não voltei
mais.
Eu era recém
casado, e não queria que o meu coração tivesse tamanho desafio.
Jovem,
imaturo, quem sabe eu não fraquejasse diante de tão bela mulher!
No entanto,
ela me ensinou muito naqueles dois dias que eu a conheci:
Temos de
regar as rosas que nos cercam, que vivem conosco, ou seja, temos de cuidar das
pessoas, dar-lhes carinho, atenção, e quando é nossa esposa ou namorada ou
companheira, evitar que rapidamente o encanto se desvaneça, que a beleza que
tiveram quando as conhecemos não se vá tão rápido, então o amor será o
componente desse rejuvenescimento permanente, sólido, e que nos acompanhará até
o fim da vida!
Do alto dos
meus sessenta e oito anos e quarenta e sete de casado - ah, mas eu cuido da
minha rosa, da minha amada, da minha esposa!
E ela ainda
se encontra viçosa, bela, maravilhosa, me cuidando também, e me pedindo que eu
jamais esqueça de dar-lhe água e um magnífico vaso, que entendo ser a troca de
ideias, de pensamentos, falar dos
filhos, dos netos, dos amigos, e relembrar o quanto já perfumamos o ambiente e
o adornamos nesse tempo de quase meio século juntos!
Comprem um
buquê de rosas, meus caros amigos, e deem de presente às suas esposas ou para
quem desejarem, assim, de repente, sem uma data ocasional.
E por mais
que a frase decadente e brega – rosas para uma rosa – seja imbecil e até mesmo
idiota, quem pode atestar que os bons momentos não são mesmo imbecis e idiotas,
e são aqueles que mais nos lembramos durante a vida?!