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29/01/2018

O correio e o aviador

Um Laté-28 da Aéropostale como o usado para o France-Amérique (imagem www.memoire-aeropostale.com)


Wilson Baptista Junior

Foi quando era chefe de escala em Cabo Juby, no deserto do sul do Marrocos, perto das ilhas Canárias, que Saint-Exupéry começou a escrever seu primeiro romance, “Courrier Sud” (Correio do Sul), que conta de um voo do correio aéreo que deveria ir, de escala em escala, de Toulouse, no sul da França, até Buenos Aires ou Santiago do Chile, na América do Sul. O voo é usado como a espinha dorsal da história que, na realidade, é a história da vida do piloto Jacques Bernis.
O livro é contado por um narrador, que é justamente o chefe de escala de Cabo Juby, mas não é nele, apesar de falar na primeira pessoa, que Saint-Exupéry se projeta: É em Bernis, o piloto que parte de Toulouse, que o autor embute mais ou menos veladamente algumas de suas experiências pessoais. Que de tempos em tempos o narrador comenta, como se falasse com o piloto, com a compreensão de quem é seu amigo desde a infância.
O caminho de Bernis é contado, no primeiro capítulo, através das mensagens de rádio da estação de Toulouse, cabeça de linha. Desde a primeira,
“Radio; de Toulouse para as escalas: O correio França – América do Sul decolou de Toulouse às 5 h. 45"
o pessoal das escalas, ao longo dos cinco mil quilômetros da linha, ouvindo as mensagens, segue o voo invisível do piloto:
“Correio França – América do Sul decolou de Toulouse às 5 h. 45 ponto passou por Alicante às 11 h. 10"
Às seis horas da tarde,
“Correio aterrissará em Agadir às 21 horas, repartirá para Cabo Juby às 21 h. 30, aterrissará ali com bomba Michelin ponto Cabo Juby preparará a iluminação habitual ponto ordem ficar em contato com Agadir ponto assinado: Toulouse”
E bem mais tarde
“De Dacar para Port-Étienne, Cisneros, Juby: comunicar urgente notícias do correio”
Responde Juby,
“De Juby para Cisneros, Port Étienne, Dacar: nenhuma notícia depois de passar Alicante 11 h. 10”
E diz o narrador:
“Um motor roncava em algum lugar. De Toulouse ao Senegal tentávamos ouvi-lo.”
Posta aos leitores essa incerteza sobre o que aconteceu com o avião, então vai ser contada a história de Bernis.
Que começa com a descrição da minuciosa preparação do piloto e do avião, para garantir que o correio e os passageiros de cada etapa cheguem bem ao seu destino, “a despeito das tempestades, das brumas, dos tornados, das mil armadilhas das molas das válvulas, dos balancins, da matéria”... e a decolagem de Toulouse, numa madrugada de chuva.
O boletim meteorológico que ele recebe no hangar diz: “Céu claro em Perpignan, sem vento. Tempestade em Barcelona. Em Alicante...”
Tudo parece em ordem, e ele espera chegar a Alicante em cinco horas, e à noite na África. E voa pensando na volta da véspera desde Paris, onde empacotou seus livros, selecionou cartas, queimou algumas, cobriu os móveis, embarcou como se fosse para outro continente. Vida de piloto da linha. E a saudade da amante, Geneviève, em que vai pensar tanto durante o voo.
Num flash-back, a sua preparação para a rota do voo. Aqui qualquer dúvida que tenhamos quanto a Bernis ser um alter-ego do autor se dissipa ao ouvirmos o narrador contar de como ensinou ao piloto, para o seu primeiro voo, os segredos da rota por sobre a Espanha, exatamente como, mais tarde, Saint-Ex contaria no Terra dos Homens de seu amigo Guillaumet lhe ensinando o mesmo caminho. Na noite da véspera, no quarto do piloto:
“Quarto de piloto, albergue incerto, era preciso tantas vezes reconstrui-lo. A companhia nos avisava, na noite anterior: “O piloto X foi destacado para o Senegal, ou para América...”. E era preciso, na mesma noite, desatar seus laços, pregar seus caixotes, desnudar o quarto de si mesmo, das suas fotografias, dos seus livros, e deixá-lo para trás, com menos traços do que se tivesse sido habitado por um fantasma”.
Mas agora ele é um piloto experiente. E o narrador diz: “Hoje, Jacques Bernis, atravessarás a Espanha com uma tranquilidade de proprietário (...) Mas me lembro de teus primeiros passos, dos meus últimos conselhos na véspera de teu primeiro voo. Deverias, ao nascer do sol, tomar nos braços as meditações de um povo. Levá-las através de mil emboscadas como um tesouro escondido sob teu casaco. Correio precioso, te disseram, mais precioso do que a vida. E tão frágil. E que um erro dispersa em chamas e espalha no vento”.
Essa era a importância dada ao correio. Às mensagens das pessoas que eram confiadas à Aéropostale para serem entregues mais depressa do que pelos caminhos normais. Era nos tempos em que se escreviam as cartas aéreas em papel de seda e os envelopes eram finos, quase transparentes, para pesarem menos.
O narrador, colega de infância de Bernis, mostra quando os dois tomaram realmente conhecimento de que se tinham transformado em adultos contando a história de quando foram, juntos, fazer uma visita ao seu velho colégio, e encontram seus antigos professores, antes firmes disciplinadores, agora frágeis velhos de cabelos brancos, e os professores bebem as suas histórias com a alegria de quem encontra os novos heróis que ajudaram a formar. E Bernis lhes conta dos perigos, das aventuras, dos segredos de desbravar os caminhos distantes. Mas lhes conta também “das decepções e do gosto amargo do repouso depois da ação inútil”. E, talvez para consola-los de não serem os homens de ação que poderiam querer ser, “como talvez a única verdade seja a paz dos livros. Mas os professores já o sabiam. Sua experiência era cruel porque eram eles quem ensinava aos homens a história”.
O livro continua com Bernis em voo. Na descida para Alicante, a terra, que parecia um mapa plano vista do alto, vai progressivamente tomando volumes e se tornando real até a aterrissagem. Com mais de cinco horas de voo, cansado, o piloto preenche seu relatório de etapa, descansa alguns minutos e decola para a tempestade. “Ela se encarniça contra o avião como os golpes de picareta de um demolidor”. O piloto já passou por outras antes e sabe que vai atravessar, mas de repente os controles se travam e o avião começa a cair em parafuso. E é a descrição da terra, novamente, se tornando real e assassina enquanto espirala cada vez mais perto. Até que Bernis, no último momento, consegue soltar o cabo agarrado com um golpe do calcanhar e retomar o controle do avião. E sai afinal em céu claro sobre o golfo de Málaga.
Bernis está agora quase na metade do caminho até Cabo Juby. Perto de mil quilômetros voados, agora mais uns mil e trezentos até aterrar de novo. Uns cem até Gibraltar, um pulo sobre o mar até sobrevoar Tanger e o resto sobre o deserto.
Falta ainda uma hora para que ele veja o farol de Tanger. E, em voo calmo, Bernis imerge nas suas lembranças, que constituirão a segunda parte do livro, mas contadas pelo narrador.
- o -
 “Devo voltar atrás, contar desses dois meses passados, senão o que restaria? Quando os acontecimentos de que vou falar tiverem pouco a pouco alisado sua fraca esteira, seus círculos concêntricos, sobre os personagens que eles simplesmente apagaram, como a água se fecha novamente em  um lago, quando amortecerão as emoções pungentes, depois menos pungentes, depois doces que eu devo a eles, o mundo me parecerá seguro outra vez. Não posso, já, passear por onde deveria ser cruel a lembrança de Geneviève e Bernis, sem que me fira, de leve, o arrependimento?”
O porquê desse arrependimento do chefe de etapa só o saberemos depois do desenrolar de toda a história.
E nessas lembranças começamos a conhecer a vida do piloto da linha, os lugares que não são nunca permanentes mas sempre provisórios, as voltas que são sempre para partir de novo:
“Esse mundo, nós o reencontramos a cada vez, como os marinheiros bretões reencontram sua aldeia de cartão postal e a sua noiva fiel demais, apenas um pouquinho mais velha a cada volta. Sempre parecido, uma gravura de um livro de infância (...) Pouco a pouco, durante sua volta, uma paisagem já se construía em volta dele, como uma prisão. As areias do Sahara, os rochedos da Espanha, eram retirados pouco a pouco, como trajes de teatro, da paisagem verdadeira que ia transparecer”.
E Bernis pouco a pouco se entedia, e um dia escreve ao narrador: “... não falo de minha volta: eu acredito ser senhor das coisas quando as emoções me respondem. Mas nenhuma despertou. Eu estava como o peregrino que chegou com um minuto de atraso a Jerusalém. Seu desejo, sua fé, acabavam de morrer: ele não encontrava mais do que pedras. Esta cidade aqui: um muro. Quero partir de novo”.
Pouco a pouco vamos conhecer Geneviève. A menina que foi companheira deles na adolescência, dois anos mais velha do que ele, e pela lembrança de quem os dois se apaixonaram enquanto viravam homens, longe, nos confins do mundo:
“Enquanto os outros levavam ao altar uma mulher já feita, foi de uma garotinha que Bernis e eu, do fundo da África, ficamos noivos (...) Vivias para nós um conto encantado e entravas no mundo por uma porta mágica, como num baile à fantasia, um baile de crianças – disfarçada de esposa, de mãe, de fada...”
E foi ela que Bernis foi reencontrar, casada, mãe, mulher de sociedade. E olhava de fora o novo mundo dela, procurando onde estaria a garotinha que conheceu.
Até que um dia a criança adoece, e Geneviève vela-a desesperadamente por três dias e três noites, até perder todas as suas forças, desmaiar em frente ao médico  e ele lhe ordenar que ao menos vá dar uma volta, para respirar o ar livre.
Ela vai, e ao voltar, encontra o marido furioso que lhe pergunta, aos gritos, como podia fazer uma coisa destas com o filho doente. Era preciso que vocês lessem a descrição que Saint-Ex faz do marido para entender sua postura; um homem bem sucedido financeiramente que na verdade ostenta para os outros uma imagem de si cuidadosamente construída; que amava o exterior da mulher sem e preocupar com o que lhe ia por dentro. E, ao término da briga, o casamento se acabou na alma de Geneviève:
“Ele a soltou enfim com um sentimento estranho de impotência e de vazio. Ela se afastou sem pressa, como se realmente não tivesse mais porque temê-lo, como se alguma coisa a levasse de repente para fora do seu alcance. Ele não existia mais. Ela demora, refaz lentamente seu penteado, muito ereta, e sai.”
O menino doente termina por morrer. E, deseperada, no meio da noite, Geneviève vai procurar Bernis para lhe contar.
Depois do enterro, o marido parte numa viagem de negócios na qual ela deveria ir encontrá-lo mais tarde. Em vez disso, ela vai viver com Bernis.
E o narrador sente que não vai dar certo, e pensa, esperando a chegada de Bernis em Cabo Juby:
“Estes costumes, estas convenções, estas leis, tudo isso de que não sentes necessidade, tudo isso de que fugiste... É isso que dá a ela sua moldura. Para existirmos, é preciso haver à nossa volta, realidades que durem. Mas, absurda ou injusta, tudo isso não passa de uma linguagem. E Geneviève, levada por ti, será privada de Geneviève (...) vais esvaziar a sua vida como se esvazia um apartamento de mil objetos que não víamos mas que o compunham”.
E um dia ela se vai. E Bernis retorna a Toulouse. E parte.
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Málaga, a primeira estação depois de Agadir, espera a passagem do piloto, que não deve aterrissar. Continuará, voando bem baixo, até Tanger, entre as nuvens e o mar ainda agitado pelo que restou da tempestade.
Às oito da noite, Málaga telegrafa: “Correio passou sem aterrissar”. E Casablanca se prepara para recebê-lo, acende os holofotes, e o avião pousa. Mas as comunicações de rádio estão interrompidas, e todas as estações esperam ansiosas pelas notícias do avião.
Quando enfim se restabelecem, Casablanca avisa as outras estações:
“Correio decolará para Agadir às vinte e duas horas”.
E Agadir consulta Cabo Juby:
“Correio chegará a Agadir a meia noite e trinta ponto Poderemos fazê-lo continuar até aí?”
Mas Cabo Juby responde: “Neblina. Esperem o dia”.
E avisa às estações seguintes:
“Correio pernoitará em Agadir”.
Em Casablanca Bernis, cansado de mais de dez horas de voo e chuva, em cabine aberta, assina as folhas de registro e discute com o chefe da escala que o manda continuar. O chefe sabendo já que não lhe exigiria isso, o piloto sabendo que pediria para partir. “Mas cada um dos dois queria provar a si mesmo que a decisão era apenas sua”.
E quando o chefe lhe diz, “Bom. Concordamos. Fique” o piloto se acalma, e sabe que partirá em vinte minutos.
Bernis decola novamente dentro da noite. Mas depois de algum tempo as nuvens se fecham em volta dele. Desce abaixo das nuvens, mas lá em baixo também tudo está coberto.
E Bernis voa, às cegas, em cima do mar, entre os dois tapetes de nuvens, dentro da chuva, corrigindo o desvio estimado do vento pela bússola e sabendo que entre ele e a planície estão as montanhas do Atlas, ocultas nas nuvens.
Mas, de repente, o céu clareia, a lua ilumina a terra e ele vê ao longe as luzes do campo de Agadir.
Em Cabo Juby, o pessoal da escala espera pelo avião. Que partiu às cinco da manhã de Agadir. O dia vai passando, o avião não chega. E devagarinho chega a hora em que o combustível do avião deve ter acabado. E agora vem o medo de que o companheiro tenha caído no território dos mouros revoltosos.
Agadir não responde ao telégrafo. O operador escuta os trilos do código Morse entre as estações. Até que capta um fragmento de uma mensagem de Agadir para Casablanca: “...terrado  às seis e trinta. Decolou de novo às...”
Então, se ele teve que voltar às seis e trinta, não se sabe se por mau tempo ou pane, não pode ter  decolado antes da sete. Está ainda em tempo.
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E o narrador, enquanto espera o amigo, para quem quando ele chegar vai abrir uma lata de conserva e uma garrafa de vinho enquanto ele descansa os vinte minutos regulamentares, volta a falar de sua infância até que o avião chega. E insiste com Bernis, contra a vontade do piloto, que lhe fale de Geneviève.
Bernis então conta que, entre Paris e Toulouse, saltou do trem na estação perto da casa de menina de Geneviève. E, chegando lá sorrateiro, entrou pela porta sempre aberta e se assentou numa sala escura. E ouviu, na sala vizinha, vozes cheias de dor que falavam de uma doente em estado grave.
Subiu, no escuro, pelo caminho conhecido até o quarto de solteira de Geneviève. Encontrou-a no leito, ela o reconheceu fugazmente, e depois não mais.
Bernis percebeu então que o tempo dos dois estava terminado. E foi embora para não voltar nunca mais.
O trecho em que ele conta ao narrador seu sentimento de que ele tinha tentado levar a amada para um mundo que era só dele, e com isso ela perdeu o dela, é de uma grande delicadeza e emoção profunda. Quando conta essa ocasião em que tentou voltar para ela, diz: “Quando, mais tarde, tentei ainda reencontrá-la, eu poderia ter me aproximado dela, poderia tê-la tocado. Não havia mais espaço entre nós. Mas havia mais. Não sei te dizer o quê. Um milhar de anos. A gente está tão longe de uma outra vida...”
E é hora de decolar outra vez.
Bernis voa sobre o Saara imenso, perto da costa, vendo a areia e o mar azul. Dois mil quilômetros ainda até Dacar. Da altura em que está, a paisagem parece não mudar. “Port Étienne, primeira escala, não está inscrita no espaço mas no tempo, e Bernis olha seu relógio. Seis horas ainda de imobilidade e de silêncio, depois a gente sai do avião como de uma crisálida”.
E se lembra das panes que já sofreu, como os outros, da mudança desse mundo para o mundo pesado dos pés nas dunas de areia, e dos camaradas que o salvaram.
O voo continua.
“De Port Étienne para Cabo Juby: correio chegou bem às 16 h 30“
“De Port-Étienne para São Luís: Correio decolou de novo às 16 h 45“
“De São Luís para Dacar: Correio partiu de Saint-Étienne às 16 h 45 ponto Faremos continuar à noite“
Bernis decola de Port-Étienne com tempo calmo, mas encontra uma tempestade de areia que bloqueia o radiador do motor. Em pane, consegue pousar perto de um fortim francês no deserto. O sargento que comanda a guarnição de vinte senegaleses recebe-o como a um irmão. As últimas pessoas de fora que viu foram o capitão e o tenente que passaram por ali já faz cinco meses, o correio só vinha de seis em seis meses.
O encontro do piloto com o velho sargento é uma bela página. Depois do jantar, do terraço do forte, olha para as estrelas que era só o que ele podia ver do forte isolado, e conta a Bernis da conversa com o tenente:
“Ele me explicou as estrelas...”
“Sim”, disse Bernis, “ele as confiou à sua guarda”.
Na manhã seguinte, ajudado pelo sargento, o piloto conserta a pane.
“- Veja, sargento, não era nada, eu vou partir.
O sargento contempla um jovem deus, vindo de lugar nenhum para voar de novo. Que veio para lembrá-lo de uma canção, de Tunis, dele mesmo. De que paraíso além das areias descem sem ruído estes belos mensageiros?
- Adeus, Sargento.
- Adeus...
O sargento move os lábios em silêncio, não se reconhecendo. O sargento não teria sabido dizer que guardava no coração uma provisão de amor para os próximos seis meses”.
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“De São Luís do Senegal para Port-Étienne: Correio não chegou a São Luís ponto. Deem notícias com urgência”
“De Port-Étienne para São Luís: Não soubemos de nada depois da partida ontem às 16 h 45 ponto. Começaremos as buscas imediatamente”
“De São Luís do Senegal para Port-Étienne: Avião 632 decola de São Luís às 7 h 25 ponto. Suspendam sua decolagem até que ele chegue a Port-Étienne”.
- o -
“De Port-Étienne para São Luís : Avião 632 chegou bem às 13 h 40 ponto Piloto disse que não viu nada apesar da boa visibilidade ponto Piloto estima que teria visto se o correio estivesse na rota normal ponto Necessário um terceiro piloto para buscas escalonadas em profundidade”
“De São Luís para Port-Étienne: De acordo. Vamos dar as ordens"
“De São Luís para Juby: Sem notícias do França-América. Venham com urgência a Port-Étienne”.
 “De Juby para Port-Étienne: Avião 236 decolou de Juby às 14 h 20 para Port-Étienne”.
É o narrador quem pilota esse avião. Em Port-Étienne organizam as rotas de busca, e decidem parar no fortim ao chegar a noite.
“- Então, sargento, você o viu?
 - Ele decolou de manhã cedo...
- Sargento, pela manhã encontrarei meu camarada. Onde acha que ele esteja?
O sargento, seguro de si, me mostra todo o horizonte.
Uma criança perdida preenche o deserto”.
De manhã, viajantes mouros chegam esgotados e contam que um rezzou de trezentos fuzis surgiu do Leste e massacrou sua caravana. Os pilotos resolvem orientar as buscas na direção do rezzou.
- o -
Meu camarada...
Era aqui então o tesouro; e o buscaste!
Sobre essa duna, os braços em cruz e virado para esse golfo azul escuro com cidades de estrelas, essa noite pesavas muito pouco...
Em tua descida para o sul quantas amarras desfeitas, Bernis já aéreo por não ter mais do que um amigo: apenas uma fina teia de aranha ainda te prendia.
Essa noite pesavas menos ainda. Uma vertigem se apossou de ti. Na estrela mais vertical brilhou o tesouro, ó fugitivo!
Só a teia de aranha da minha amizade ainda te prendia; pastor infiel, devo ter adormecido.”
- o -
“De São Luís do Senegal para Toulouse: França-América encontrado a leste de Timéris ponto O inimigo partiu quando nos aproximamos ponto Piloto morto avião destroçado correio intacto ponto Continua para Dacar”
- o –
“De Dacar para Toulouse: Correio chegou bem a Dacar ponto”

- o -

8 comentários:

  1. 1)Parabéns Mano, belo texto, bom domínio da narrativa, a leitura prende e isso é ótimo.

    2)É como se eu estivesse deitado na rede da varanda em um dia chuvoso de inverno, mas estamos no verão do Rio, quase 40 graus...

    3) Saboreando a leitura.

    4)Viajando e então lembrei da antiga telenovela "O Sheik de Agadir", de 1966, lá no Gama, DF, eu não tinha TV, mas os vizinhos que tinham... contavam algumas cenas...

    5) "... os lugares que não são nunca permanentes, mas sempre provisórios".

    6) Mano filosofou sobre a impermanência da vida, o avião cai ou não cai, chega ou não chega ao destino.

    7) Quem bom que chegou !

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    1. Obrigado, Antonio.
      É como você diz, os lugares são sempre provisórios, e estamos sempre de passagem.
      O aviador não chegou, mas o correio sim. Valeriam a pena as mortes para entregar as cartas mais cedo do que pelos métodos antigos? Eles achavam que sim. Eram as mensagens que o povo lhes confiava. Um pouco da vida de cada um que escrevia. E às vezes, quem sabe, este tempo poderia fazer toda a diferença. E por isso se arriscavam.
      Um abraço do Mano

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  2. Moacir Pimentel29/01/2018, 10:58

    Wilson,
    Não li o livro e pretendo corrigir a falha na estante dentro da possível brevidade. Mas pelo que apreendi da sua inteligente narrativa é daquelas leituras que a gente devora, em suspense, entre as mensagens do céu e da terra, em meio aos boletins e flasbacks, às tempestades reais e àquela dos sentimentos e pensamentos e emoções do piloto, com Geneviève na cabeça, durante esse voo emocionante a partir da França, passando pelas belezas e perigos da Espanha, do Marrocos e do Saara. Apesar de terminar tão mal sua narrativa não nos surpreende pois nela o desatar dos laços começou nos primeiros parágrafos. Tão pouco nos parece uma tragédia, porque o piloto se despediu no seu elemento,como o pioneiro que era e fazendo o que mais apreciava.
    Saint-Ex sempre me faz pensar no Papa Hem, talvez porque ambos transferiram suas paixões para a escrita e porque as semelhanças entre as vidas e as obras deles sejam tão óbvias. De tudo, e entrando de gaiato na interpretação, vou grifar o fechamento escolhido por você, esse epitáfio tão pungente escrito pelo velho camarada:
    “ Só a teia de aranha da minha amizade ainda te prendia; pastor infiel, devo ter adormecido.”
    É que, diferentemente, o Guillaumet na Terra dos Homens, tinha motivos para seguir caminhando já que uma poderosa teia e uma missão o prendiam à Terra. Jacques Bernis, em vez, era livre para fugir para as estrelas até porque o Correio estava intacto.
    E não tem como não pensar naquele último mergulho do autor no Mediterrâneo.
    Um belo post, de respeito, que nos deixa querendo saber mais.
    Abração

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    1. Você definiu bem o livro; é ao mesmo tempo uma pequena história de ação e um mergulho nos corações dos personagens. E um desatar progressivo dos laços de Bernis com a vida. Primeiro livro, mas que já traz em si as sementes de muito que vamos ver mais tarde nos outros do autor.
      E o epitáfio resume tudo; em verdade o fio que prendia Bernis ainda é mais fino do que "teia de aranha" dá a idéia: no original é "fil de la Vierge", que é como chamam em francês um fio único, longo e finíssimo, em que a aranha se prende e solta ao vento para viajar em sua dispersão, e que os antigos camponeses acreditavam que eram fiados pela roca da Virgem Maria. Mas confesso que não consegui em português uma tradução bonita para isso, e ficou teia mesmo...
      Leia, sim, o livro, se puder; o resumo é pouco para sua qualidade.

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  3. Flávio José Bortolotto29/01/2018, 21:22

    Bela resenha do Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR do primeiro Romance de SAINT-EXUPÉRY " COURRIER SUD", no qual é relatada a viagem da aeronave France-Amérique da Aeropostale, que partia de Touluse - FR e tinha destino, depois de dezenas de escalas, para Santiago - CH, voo Capitaneado por seu amigo mais moderno JACKES BERNIS.
    Seguindo a rota, partes com tempo bom, partes com tempestades, se vai descrevendo os rádios, boletins, etc, e se vai sabendo detalhes da vida íntima do Cap. JACKES BERNIS e sua amada GENEVIÉVE, (mulher casada, separada).
    Depois de atravessar a Península Ibérica, o Saara do grande Império Colonial Francês, o voo termina em desastre aéreo em meio a tempestade no Senegal próximo a São Luis - SE. As forças da Natureza foram mais fortes que o Avião e a Tecnologia da época.
    O France-Amérique foi encontrado destroçado, o Cap. JACKES BERNIS morto, mas o Correio foi achado intacto e seguiu destino.
    Missão Cumprida.
    Abração.

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    1. Flávio, é bem isso: missão cumprida. Mas a que custo... Não consegui, claro, resumir (do jeito que Saint-Exupéry escreve, seria preciso copiar todo o livro, onde cada palavra é importante) todo o envolvimento dos personagens uns com os outros e com a Linha. Mas fico contente que você tenha gostado.

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  4. Francisco Bendl30/01/2018, 08:50

    Independente da qualidade da narrativa do autor, tão bem reproduzido pelo Wilson em face do seu refinado e excelente gosto cultural, trazendo à baila Saint-Exupéry, extraio a aventura, o pioneirismo, o desbravador.

    Viajar em aviões antigos, roteiros não muito bem esclarecidos, a cada trajetória um problema, requeria do piloto mais do que coragem, mas um objetivo justamente calcado na emoção, na aventura, em descobrir novas rotas.

    E o início do Correio Aéreo, vindo até a América do Sul, surpreendentemente, em pequenos aviões e baixa autonomia de voo.

    A meu ver, homem algum não pode prescindir de durante a sua vida ter uma aventura, por menor que seja ou por mais simples que se identifique.

    Faz parte da vida enfrentar certas situações de risco, ainda mais em se tratando de aviões, caminhões, até mesmo automóveis e de competição.

    A existência exige esse tipo de comprometimento do ser humano para vencer a si próprio, seus temores, suas dúvidas, suas fragilidades.

    E, o livro e autor trazidos pelo Wilson em mais um artigo de qualidade extraordinária, revelam exatamente este espírito aventureiro, apesar de a aventura ter terminada em tragédia, mas o objetivo seguiu em frente, a correspondência.

    Certamente a mulher amada foi também um fator preponderante para esta coragem como piloto, e enfrentar tempestades, ventos, raios e trovões em pleno voo.
    O ânimo que se tem para se mostrar homem e corajoso para quem se ama é fenomenal, uma força prodigiosa, que move montanhas, como se diz.

    Mal comparando, mas eu me lembro de quando comecei a viajar, e o meu RS não tinha asfalto em quase 2/3 da sua extensão.
    Estradas em chão batido, muitas perigosas, e quando chovia o lodaçal muitas vezes impedia o carro seguir em frente.

    Recordo-me que certa feita passei um fim de semana junto com mais quinze ou vinte veículos atolado entre Santana do Livramento e Dom Pedrito, no meio do nada, sem um bolicho por perto (nome que o gaúcho dá a uma espécie de armazém de campanha, longe das cidades).
    O estado da estrada era tão precário, que a extinta Folha da Tarde, de Porto Alegre, que pertencia às organizações Caldas Jr, falida, tirou uma foto da fila de carros presos no barro, a bordo de um avião!

    Ora, a motivação minha para esse desconforto, hotéis precários, muitas vezes sem almoço ou jantar porque se chegava muito tarde à cidade, tinha como impulso e poderoso a esposa pois, recém casado, eu precisava levar para casa conforto, a segurança de um bom emprego, salário condizente, e demonstrar muita coragem e determinação para viajar em um fusca e no barro!

    Um grande abraço, Wilson.
    Saúde e paz, meu caro.

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    1. Chicão, estes homens que abriram para nós esses caminhos do ar foram alguma coisa de impressionante. Hoje estamos acostumados com aviões potentes, rápidos, seguros, que voam acima das tempestades, com uma rede mundial de controle de voo, com radares, GPS, comunicações instantâneas, com uma infraestrutura enorme em que mal pensamos, mas naquela época a coisa era muito diferente. Uma vez no ar os pilotos estavam isolados do mundo, com apenas suas bússolas, seus mapas, suas anotações, as estrelas quando conseguiam vê-las, sua experiência e seu coração. Tinham que advinhar, quando as nuvens tiravam a visibilidade do solo, para onde e por que distância as mudanças dos ventos os desviavam do seu curso, e rezar para que conseguissem ao menos avistar um campo qualquer se fossem obrigados a pousar.
      Muitos ficaram pelos caminhos que ajudaram a abrir e que hoje podemos usar como se fossem simples avenidas. Se, como você bem disse, "A existência exige esse tipo de comprometimento do ser humano para vencer a si próprio", a raça humana sobrevive por causa de homens e mulheres que se comprometem com um objetivo maior do que eles próprios. Seja uma nova rota ou a felicidade da família.
      Um abraço do Mano

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