Fotografia de Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
Ficou ali,
paralisado, lendo o que um amigo que nunca viu lhe escrevera – têm por hábito
trocar impressões escritas a respeito das coisas da vida. Aquilo abriu a porta
de uma lembrança:
Porque, sim, nós sabemos que há amores eternos que só duram uma
noite ou uma chuva, e que há os que são para valer, para serem construídos,
para nos amanhecer todos os dias da vida. Quando chega o inverno e nós
embranquecemos – e passamos a pensar na reta de chegada –, se soubéssemos rezar
pediríamos para ser o primeiro a se despedir. Não por valentia ou generosidade,
mas simplesmente porque é pior para o que fica.
Pensou
naquela noite de outubro de quarenta anos atrás. Chovia, saíram sorrateiros,
deixaram os amigos para trás. Bebiam tanto!... Quase certo que nem deram pela
falta dos dois.
Ela estava
linda na simplicidade de sempre. Enorme, quase do tamanho dele. De parar o
trânsito! Cabelos soltos. Vestido comprido de alcinhas, em malha azul clarinho,
riponga, última moda da época. Sandálias rasteirinhas, moda daquela e de todas
as épocas.
O ronco do
Kadron era o som dos fuscas. Saíram do carro aos beijos, driblando os pingos da
chuva. Ele abriu a porta devagar e pegou uma toalha. Secaram o excesso de água
dos cabelos. Ela sentiu frio e o abraçou. Ele se sentiu anjo, porque anjo deve
ser aquilo que sentiu naquele abraço.
A luz à
meia-luz, penumbra dos seus medos joviais. O nervosismo daquela primeira vez
tão esperada – era tudo tão forte, não podiam arriscar perder a sensação de céu
nem mesmo quando os diabinhos, já inquietos, entrassem em cena como anjinhos
que pecam.
Até hoje,
guarda o registro daqueles olhos amendoados refletindo a luz tênue do ambiente,
olhando para dentro dele. O aroma suave do perfume, as narinas gravadas para
sempre pelo cheiro dela.
A respiração
alterada, as bocas se aproximando, o vestido caindo como uma mágica, a cortina
de um espetáculo, a escultura revelada... Todos os rituais cumpridos
suavemente, sem pressa alguma, como prenunciando que aquela seria a primeira e
a última noite. Chovia a cântaros, a melodia da chuva tocando uma ode à vida,
ao fogo da paixão.
Amanheceram
abraçados, sem uma gota de sono dormido. Não houve tempo para nada além de
andar nas nuvens. A chuva tinha-se ido, deixou o ar fresco na manhã de outono.
Foi difícil ir embora, mas foram um do outro vida a fora.
Saíram
devagar, sem se despedir, apenas indo por ir. Ou porque se deixaram ir sem que
fosse preciso ter ido, sem medir consequências, sem entender que estavam indo
para sempre. Sem imaginar que poderia doer tanto. Um preço das pressas da
juventude.
Até um dia
Até talvez
Até quem sabe
Até você sem fantasia
Sem mais saudade
Sentiram
saudade tantas vezes, mas nunca puderam refazer seus mapas e limites. Sentiram
o pontapé que chega antes da bola e põe abaixo o jogador e a jogada que poderia
ter sido. Tudo parou, como o canto do cisne. Como uma bicicleta abandonada que
ninguém cuidou de pedalar.
Ficou um
mistério entre eles, algo parecido a um mesmo coração batendo em harmonia,
embora já não houvesse aquela harmonia, embora houvesse uma coleção de rugas
das expressões que perderam um do outro, dos risos que não deram juntos, das
lágrimas que não enxugaram com carinho, dos filhos que não foram deles. Feridas
vividas sem remédio, cicatrizes mal disfarçadas.
Ficou no ar
o eterno recado que aparece numa lembrança, numa nuvem inesperada, numa chuva
no sertão. No movimento do mar, no silêncio da noite. Numa rajada de vento, no
balé da varanda da rede. Na vontade de ver, num abraço às escondidas, num beijo
roubado. Nas músicas que eram deles e continuam tocando...
Te recolhe ao repouso
E deixa que eu pouse
Minhas mãos sobre ti
Dali e daqui
Vou juntar dores e danos
Cores e panos
Agulhas e linhas
E até uma florzinha
Pra bordar nossos panos
Adornar tantos anos
Passados a esmo ou a fio
Repulsas e cios
Começos e fins
Nossa geografia
Perde mapas e limites
Quando me permites
Beijar-te o ventre
Ir ao fim
Quando reabres tua vida
Para mim
E se pegou
pensando onde esteve a curva que não viu e separou os destinos tão cedo. Foi
tanto para uma noite apenas, tanta chuva! Foi tanto e durou tão pouco e virou
eterno, como escreveu o amigo que nunca viu, que apenas lhe escreve coisas
bonitas.
Hoje, abre
aquela velha porta e entra no seu tempo, mas está sozinho, conformado que quase
haverá de ser assim. Já não correm os ares do cio, o aguaceiro virou tempo de
estio. Tudo secou sem a água daquela chuvarada da noite eterna. Mas sopra a
esperança da dança da chuva e de temporais inesperados.
Batidas na porta da frente
É o tempo
Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo
Recordo o amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos
E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
Eu posso
E ele não vai poder
Me esquecer
Caminhou
de mãos dadas com aquelas memórias pela margem do rio Reuss, sem qualquer
compromisso. Parou para apreciar a Torre da Água e depois seguiu pela Ponte da
Capela. Um grupo de músicos estava iniciando uma apresentação. Tocaram Beatles.
Andou
um pouco mais e parou num café. Observou as pessoas passando em todas as
direções, ao fundo a montanha coberta de neve. O frio trazia uma sensação
estranha, era como se não estivesse sozinho. E nunca estava mesmo.
Achava
que algo podia ser feito, mas não sabia exatamente o quê. E nem por onde
começar. Aprendeu a conviver com aquele amor incompleto sem deixar doer demais,
sem deixar paralisar, a dor que nasce do amor eterno de uma noite só, da chuva
a cântaros que segue inundando a vida inteira sem fertilizar.
Aquele
amor podia ter sido para valer, aurora de todos os dias. O inverno está
chegando e eles embranqueceram, entrando no tempo de pensar na reta de chegada.
Qualquer canção perdida
Vem me arrancar da vida
Pra recontar
O que aconteceu
Lembrança, estrela extinta
Que ainda brinca no céu
Ele sabe
rezar e não pede nada, sequer entrou na igreja ali adiante. Não tem coragem de
pedir para ser o primeiro a se despedir, porque é do tipo que nunca
desacredita. E não é por valentia, quer apenas estar parado no tempo se ainda
houver tempo. E se ficar sozinho vai morrer junto, pois já não estará vivendo.
Afinal, ela nunca o deixou sozinho.
Trechos de:
Até quem sabe (João Donato)
Começos e fins (Cyro Telles-Heraldo Palmeira)
Resposta ao tempo (Cristóvão Bastos-Aldir Blanc)
Estrela extinta (Pratinha Saraiva-Jean
Garfunkel)
Eu, na minha arrogância, achava que sabia escrever.
ResponderExcluirO que eu sei, mais ou menos, é gramática.
ESCREVER é isso.
Sem ser menos amigo, menos colega, sou cada vez mais fã.
Grande abraço, Heraldo.
Meu caro,
ExcluirO que dizer a você, mestre da escrita e da tevê? Que este seu amigo, colega e fã agradece pra lá de honrado. Abração.
1) Uma das coisas que eu gosto nos textos do Palmeira (meu time verde e branco) é que ele sabe dosar bem prosa e poesia e depois ainda indica a fonte da MPB para pesquisarmos.
ResponderExcluir2) Mais do que bela crônica, é um trabalho didático de muito bom gosto... falando sobre as nossas interioridades...
Antonio,
ExcluirSim, a música diz tudo sempre, complementa tudo que nos cerca, é a arte que nos leva direto para seus tempos. Por isso sempre lanço mão e, claro, quero que as pessoas desfrutem também. Abraço
PQP..!!!
ResponderExcluir(Poesia...Quanta Prosa!!!)
Obrigado, meu velho!
Excluirlindo!Amei Heraldo.
ResponderExcluirAbraço
Sandra
Obrigado, Sandra.
ExcluirMestre Heraldo,
ResponderExcluirDizer o quê? Que o senhor escreve muito bem, que é um cronista de Bic cheia, que transforma perfeitos nadas em belos posts é chover no molhado. Mas hoje peço licença para colocar uma pitada da real na sua poesia.
Bem, sabemos como é o amor. Começa com fogos de artifício - @ # $% & @ !! - muitos aaahs e ooohs e uis, luxúria e paixão. Depois, se tivermos sorte, esse sentimento permanece para sempre apaziguado, a sinfonia vira um adágio.
É claro que, como dizia o poetinha, "são demais os perigos dessa vida para quem tem paixão". Pois, pois! Pois tem as que chegam cedo e/ou tarde demais, as certas na hora errada e as erradas na hora certa. Tem as deliciosamente femininas e as furiosamente feministas, tem a adrenalina do risco da caça primitiva, tem as passantes - Perigo! - aquelas de quem o Baudelaire dizia: Não sabes de mim, não sei que fim levaste,/ Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!"
Pobres de nós bípedes desorientados do terceiro milênio!
Dessa conversa aí dor de cotovelo do Tempo com alguém que " bebe um pouquinho pra ter argumento", por exemplo, o resumo da ópera é que , enquanto só o Tempo sabe passar, ambos não sabem ficar. Ou seja, há que saber tanto passar quanto ficar. Complicado!
Diz o grande Rosa que "o que tem que ser tem muita força" mas, convenhamos, não nos ajuda em nada nas nossas léguas tiranas, às voltas com a lida, a rotina, as crianças, a agenda apertada, as perdas, as manutenções, as rugas e cabelos brancos, tentando segurar a conversa e a tesão, tentando dar sentido à vida, ter saudade do que poderia ter sido, nem turbinar lembranças que não envelhecem como o resto do mundo e insistem em continuar "parando o trânsito" numa concorrência desleal (rsrs) Melhor focar nela, na santa milagreira, na mulher que no momento, ao nosso lado, sabe e quer ficar:
(...)
"Preciso desprender-me de toda lembrança. De algum lugar
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-la, porque tal é o meu destino
(....)
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida".
Abração e boa viagem!
Caríssimo,
ExcluirA partir dos quatro comentários que recebi diretamente de pessoas (emocionadas) que se viram no texto, me pus a pensar no quanto o amor é tão complexo que a "pitada de real" pode ser algo tão irreal quanto o próprio amor. Jamais desafio essa criatura que nos domina, nos modifica, nos apresenta felicidade e dor. Quem sou eu para tentar colocar régua e compasso nessa grandeza? Não ouso.
Prefiro pensar numa das pessoas que me escreveu dizendo que viveu uma noite eterna e, dela, veio seu maior tesouro, um filho hoje homem feito que lhe tornou mulher e mãe e lhe completa a vida com enorme sentido.
Sou da vida, conheço gente demais por aí, ouvi muitas histórias. Por isso mesmo, me curvo aos amores de uma noite ou de vida inteira. Aprendi que nenhum deles é melhor ou maior ou mais adequado do que o outro.
Aprendi que há pessoas que querem ficar, outras que querem seguir, outras que ficam, seguem e voltam. Aprendi que vale, na real, as pessoas amarem e levarem esses amores pela vida inteira ou esquecê-los, cada uma a seu jeito.
Mesmo que seja apenas a lembrança de uma noite eterna, terá valido e sempre valerá. Tanto quanto um amor de vida inteira. Afinal, já disse o poeta, "qualquer maneira de amor vale a pena". Abração.
Sempre foi uma boa fórmula para se escrever e prender a atenção do leitor a mistura de poesia e prosa.
ResponderExcluirHeraldo sabe como usá-la com perfeição, então encanta seus admiradores com artigos de qualidade, detalhes e pormenores muito interessantes, como a cena que descreve estivesse acontecendo naquele momento.
Aplaudo mais esse texto da lavra do Heraldo, que prende a atenção, e que interliga a poesia com os relatos minuciosos que faz dos locais e dos momentos mais enternecedores e importantes conforme o teor do assunto.
Conversas do Mano iniciou o ano de 2018 com extrema qualidade na apresentação dos artigos, e deve ser reconhecido esse esforço do blogueiro em apresentar um espaço cultural por excelência, onde aprendemos e nos divertimos com os temas abordados, além das informações que obtemos de viagens e locais visitados com muita propriedade por parte de seus autores.
Um forte abraço, Heraldo.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirObrigado por seu comentário. Essa forma de descrever detalhes vem do meu trabalho com televisão, que me levou a tyer a imagem como elemento fundamental. E utilizar essa experiência na crônica facilita a composição dos cenários e ajuda a situar o leitor na narrativa. Abraço.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirQue maravilha!
Depois das palavras do amigo que você não conhece e das palavras de você que nem conheço, só posso ficar calada sem escrever nem lista de compra.
Até muito mais.
Ana,
ExcluirA julgar pelos seus textos publicados, fico imaginando as iguarias da sua lista de compras. Portanto, às tintas. Até mais.
Lindo... dessa lindeza que só a eternidade permite.
ResponderExcluirSeu texto tem a propriedade de tocar a minha alma doída de lembranças. Não pude ir primeiro. "É sempre pior para o que fica... feridas vividas sem remédio."
Nunca deixe de escrever, querido. Abraços.
Regina,
ExcluirObrigado pela leitura, você sempre generosa. Que a Providência me permita inspiração e disposição, e seguirei gastando tinta. Abraço.