foto de Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
A esquina
estava turva pela neblina, e a chuva fina piorava muito a sensação térmica e o
desconforto de estar na rua. Empurrou a porta de vidro, emoldurada por um
trabalho refinado de artesãos dos metais, para se livrar da ventania. Porta
antiga, pesada. Ele estava quase congelando e foi bom entrar no ambiente
aquecido da cafeteria centenária.
O chapéu e o
sobretudo vinham ensopados, pesados. Estendeu como pôde na cadeira vazia do
outro lado da mesa. Ele estava gelado. O velho garçom se aproximou e pediu desculpas,
encerrando seu turno, mas “a menina” viria atender.
Ela veio,
iluminando tudo ao redor. Tão deslumbrante, que dava vergonha de pedir. Mas
pediu. E voltou outros dias e mais outros e outros. E ele pediu, ela atendeu.
E saíram
pela rua, ora uma lua brincando no corpo ora a água escorrendo no rosto. O
cabelo liso misturando a intenção de cachos, caindo pelas costas, sem trilha,
como um linho em desalinho. Entraram em becos sem saída. Só restava o beijo.
Longo, forte, apaixonado. Como uma penitência de quem não tem medo de pecar.
Como uma saída que não se quer encontrar.
E riram
quase como nunca se riu. E ela andava nua como uma lua inteira num céu sem
nuvens. Como uma velha canção rock’n’roll
que não termina quando acaba, que segue tocando enquanto o coração se acalma,
nós sabemos, nós sabemos. Como a fumaça que sobe na contraluz consumindo o
cigarro bem devagar.
Amanheceram
tantas vezes que ele perdeu a noção de beleza, tantas vezes foram as vezes que
a viu tão bela. Era difícil acreditar que o mundo era o mesmo, um só. Ainda
mais quando a menina dançava em sombras, dando contornos de paraíso à sua
visão. E aos seus ouvidos com a música suave, tocando baixinho. E as cortinas
dançando pela fresta do vento.
Eu nunca
quis ninguém
E não vou
começar agora
Eu nunca
planejei, eu não entendo
Então me
diga o que posso fazer
Não se
afaste
Sim, há algo
sobre você
E eu não
posso acreditar
O jeito que
você me conhece
Você sente
todos os gostos
Você sabe
quando estou triste
Mas aqui no
meu coração
Há emoções
misturadas
Mas há algo
sobre você
Você sabe
que há algo sobre você
Você veio
brilhando, babe
Agora há
algo sobre você
Eu não sei
Não sei o
que estou sentindo
Desceu do
avião sem pressa, o aeroporto estava calmo àquela hora. Caminhou pela calçada
quase correndo para o táxi. Da janela do hotel viu algumas pessoas andando
sobre a neve. Juntou as mãos e soprou, lembrando da dança das cortinas. Embaçou
o vidro pelo contraste do próprio calor com a geleira de Viena. Era quase
Natal, a cidade estava linda!
Logo à
frente
Eu vi uma
luz trêmula
Minha cabeça
ficou pesada
E minha
visão embaçou
Eu tive que
parar para passar a noite
Lá estava
ela, na entrada da porta
Eu ouvi o
sino da Missão
E eu estava
pensando comigo mesmo
Aqui pode
ser o céu
Ou pode ser
o inferno
Então, ela
acendeu uma vela
E me mostrou
o caminho
Havia vozes
pelo corredor
Eu pensei
tê-las ouvido dizerem
Bem-vindo ao
Hotel Califórnia
Que lugar
encantador
Que rosto
encantador
Vários
quartos no Hotel Califórnia
Qualquer
época do ano
Você pode
encontrá-lo aqui
A última
coisa que me lembro
Eu estava
correndo para a porta
Eu tinha que
encontrar a passagem de volta
Para o lugar
onde eu estava antes
Pensou no
lugar onde estava antes e não soube se adormeceu ou simplesmente sentiu saudade
a noite inteira. A cidade era deslumbrante de dia também. Andou devagar pelas
ruas, o olhar perdido nas vitrines. Era como se buscasse em vão mirar o que já
não existia.
De repente,
começou a ouvir a própria voz dentro da cabeça, como se houvesse alguém
declamando:
“Ontem você
estava tão bonita; eu esqueci de pedir que fizesse uma foto instantânea. A
festa rolando lá fora, na sala e na varanda, e nós dois sozinhos lá dentro
falando coisas sérias.
Os outros
sorrindo o sorriso das festas, a gente buscando motivo pra festa. Havia um
pontinho apenas, a nos deixar preocupados. Era preciso saber logo a que veio.
“Eu sou
otimista”, você me disse tão linda, tão otimista, com aquele sorriso que
ilumina tudo – a vida que você dá a tudo com aquele sorriso! “O pontinho não
sabe com quem está mexendo!”, eu pensei.
Ah!, eu
queria dizer tanta coisa... Mas, no fundo, você sabe de todas as coisas que eu
gostaria de falar. Há o amor do qual já dissemos, lembra? Eu não ligo que o
mundo não compreenda, basta que a gente faça. Como o beijo que já sabemos como
será. É inevitável rir do mundo. Ele é risível!
Eu não sei
do amanhã, só vejo o até breve porque já é tão breve... É o que dá para dizer
todo dia, enquanto há tempo. Eu estarei naquele porto que a gente combinou,
contando as horas, aguardando você chegar carregando a vida. Como sempre foi
seu destino, é da sua natureza.
Ficarei
olhando o rio, com o vinho que nos prometemos, esperando para lhe ver pela
calçada, o vento zanzando no seu vestido. Mas não tem problema se não aparecer.
Você nunca
vai estar sozinha, eu não vou deixar que esqueça isso, mesmo sem saber onde
está agora. Aquele seu retrato que não foi feito ficou na minha memória, não
vou esquecer. Eu lembro que seus olhos me disseram muita coisa naquela hora.
Tocaram a balada da vida.
Eu me
entreguei às rezas que conheço e até às que desconheço, falei com santos que
nem sei se existem! E terminei rezando uma velha canção: “Você é forte/letras e
músicas/todas as músicas que ainda hei de ouvir”. Estou calmo agora, quase
sinto você. Deve ser o vento assobiando pelos becos. Os mesmos becos onde tudo
começou depois que saímos da cafeteria.”
Sequer um
rosto na multidão! Nada! Apenas a saudade querendo enxergar o impossível. Ele
caminhou mais um pouco, como teria de fazer o resto da vida. Sozinho sem nunca
estar sozinho. Ela estaria nos sons estranhos, nos sopros do vento, nos
sobressaltos noturnos, na preguiça das manhãs de inverno. Como aquela que
cobria tudo de branco, apressando a vontade de voltar para a calçada do porto.
Ainda restava por lá o sol e o movimento das marés.
Trechos de:
Something
about you
(Brian Howe-Terry Thomas)
Hotel
California
(Don Felder-Don Henley-Glenn Frey)
Você é linda (Caetano
Veloso)
Romantismo com triha sonora. Texto flex.
ResponderExcluirPercio,
ExcluirEsta é a música que se ouve nas ruas, se o olhar estiver atento aos fragmentos de histórias que estão soltos no ar.
O FRIO LHE FEZ BEM !!!
ResponderExcluirAbraços,
Sérgio
Sergio,
ExcluirEu sempre adorei o frio, só ele produz cenas como as que relatei. Abraço.
O grande poder da escrita, que o audiovisual não permite, nos dar o prazer de imaginar estar lá, vendo o que é narrado. A riqueza de detalhes, enfim, viagem completa. Continue escrevendo essas crônicas maravilhosas.
ResponderExcluirRafael,
ExcluirOxalá tenham muitos motivos para escrita, assim você poderá, sabiamente, juntá-las em projetos gráficos que viram livros. Obrigado.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirBela estória um pouco triste como você sabe muito bem fazer.
Como disse gostar do frio aproveite essa bruma e alinhave fios brancos tirados desse seu tempo na neve. Coloque sua Bic ao lado de um Alvarinho se voltar a Portugal. Com certeza seremos nós os privilegiados.
Até mais.
Ana,
ExcluirAs histórias são tristes como as pessoas tristes que me deram os pedacinhos que juntei (de muitas histórias), inclusive um problema de saúde - por isso a moça já não está mais por aqui e ele convive delicadamente com sua ausência.
Os fios brancos que a neve me tem dado estão tecendo o próximo livro, que já não preciso que seja inédito. Nossos privilégios.
Fique tranquila, a Bic anda trocando ideias com Alvarinhos. Não esqueça que estou no Norte de Portugal, no Minho, terra desse fulano verde, branco, único no mundo. Que foi belíssimo consorte de uma boa massa, num almoço de dia destes. Até mais.
História tocante, belamente contada, e uma ilustração que diz tudo com as folhas caídas e o longo caminho que conduz para a neblina. Que a ligação entre a Bic e o coração continue sempre assim.
ResponderExcluirMano,
ExcluirUma história que junta muitas outras que me foram sopradas quase em segredo. Ilustração do ponto final de uma tarde que passei caminhando em completa solidão numa floresta gelada. A Bic não podia ficar calada. Abraço.
Intenso, apaixonado, envolvente. Seu texto é quente, suas palavras tristes são macias. A saudade revive em memórias fortes e delicadas.
ResponderExcluirBom ler você.
Obrigado. Ouvir boas baladas dos roqueiros (as melhores do mercado), prestar atenção nas cenas cotidianas que pipocam ao redor... Daí nascem palavras tristes macias. E a sorte de criar personagens tão cheios de memórias fortes e delicadas.
ExcluirMestre Heraldo,
ResponderExcluirLembra do bonequinho de O Globo de pé batendo palmas? Você bem o merece por essa bela crônica. Mas essa é uma história triste. Porque, sim, nós sabemos que há amores eternos que só duram uma noite ou uma chuva e que há os que são para valer, para serem construídos, para nos amanhecer todo os dias da vida. Quando chega o inverno e nós embranquecemos e passamos a pensar na reta de chegada se soubéssemos rezar pediríamos para ser o primeiro a se despedir. Não por valentia ou generosidade mas simplesmente porque é pior para o que fica.
Abração
Caríssimo,
ExcluirAqueles bonequinhos eram mesmo uma referência e tanto!
Como já disse, esta crônica é resultado de fragmentos de diversas histórias que me foram sendo trazidos ou mostrados. e viraram uma história só. Os retratos dos amores como eles são, passageiros, infinitos, eternos, até que um fica para manter vivo o que não deveria morrer. Como fez o nosso personagem à margem do porto. Abração.
Amigo, a cada leitura te admiro mais!!!! Como é bom viajar nas tuas viagens! Sorrir nas tuas alegrias ... entristecer nas tuas tristezas ... que são também minhas e de todo mundo...
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