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02/02/2018

Um trem de perdição

fotografia WBJ


Ana Nunes

O Heraldo que me perdoe porque depois do seu belo último post falei que não ia escrever mais nem lista de compras. Que faço com desenhos muitas vezes. Mas por causa da eterna franquia francesa do Moacir, e que assim seja de tão boa, e por causa de filmes franceses que ando vendo, deu-me ganas de também me aventurar, ou perder-me, em Paris.
Uma viagem boa demais. Um projeto de passar o aniversário em Paris. Projeto de detalhes e carinhos. Começo de Abril, também em Paris. Um começo de primavera florida ainda fazia frio.
Para tanto no dia certo, aeroporto certo, hora certa, despachamos a bagagem e... o passaporte estava vencido. Nem olhei, só queria viajar. Que coisa ridícula! Voltamos para casa cabisbaixos, sem viagem, geladeira vazia e um monte de desapontamento.
Nora e filho preparados para um aniversário em picnic francês no gramado do parque.

Mas valeu demais porque passei com meus pais pela última vez. E sempre ganhei um almoço bem mineiro, já tradição, de mãe querida. Única. Imbatível. Para sempre lembrados. Como poderia eu pensar que seria meu último aniversário de filha? Agora só de mãe.

O passaporte ficou pronto rápido e assim rápido fomos. O picnic já era, foi feito sem nós. Mas tivemos outros passeios lindos, nos Champs-Elisées, Montmartre, Quartier Latin, brechó de livros, teatro, violino no metrô e a modernidade intensa do La Défense, onde o filho trabalhava. Um respiro do novo!

Tudo ia tão bem!
E fomos conhecer Versalhes. Não gosto de grandiosidades. Ainda mais douradas.
De cara já foi estranho: sai o Mano com um tênis diferente em cada pé. Sabichão distraído, pensando em belezuras e fotos. E vítima de muita gozação.
Metrô. Depois o R.E.R. Adoro trens.
Fim de linha. E dá-lhe realeza, brilhos e dourados. E um desfilar imenso de Netunos, e ninfas, tritão garfo e faca e fontes e mais fontes. Reis e rainhas, e meu pensamento já esgotado via forca e guilhotina. A fila para entrar no Palácio era enorme. Aleluia, não encaramos. E haja sorriso e pose para tanta foto. Detesto fotos, me acho feinha.
No final do dia tarde caindo e eu caindo junto. Quase morta, overdose de Versalhes.

Andamos tudo de volta feliz a caminho do trem. Ô trem bão! E, na estação, com saída já anunciada, entrei correndo e... as portas fecharam logo atrás e marido e filho do lado de fora, apavorados. Desesperados diziam para descer na próxima estação onde nos encontraríamos.
E eu sem dinheiro, sem bilhetes outros para errar descidas, o famoso passaporte esquecido na mesa em casa. Nem sabia o endereço certo porque estava sempre acompanhada. Só sabia que a rua tinha nome de queijo. Era, agora sei, Rue de Cortambert. De conforto um poncho de lã fininha. E a noite caindo.

Mas exausta de tanta riqueza e estátuas e jardins eu só queria inexistir entre os muitos desconhecidos do trem. Sem precisar falar ou andar, em pé e embalada no barulho e no balanço. E resolvi não descer para aproveitar o abandono e reinstalar o meu eu em mim.

Estudei o mapa e vi a estação já conhecida para passar para o metrô. Sem dinheiro não podia errar. Feliz, imersa na minha perdição, eu via passar as estações de nomes conhecidos, Saint Michel, Cluny, Champ de Mars , já nem me lembro mais. Só que o trem não parava onde estava acostumada a pegar o metrô. Tinha que descer em Bir-Hakeim e passei direto. Me vi perdida.
Pedi informação a um árabe grandão e mal resolvido e não entendi nada.
Já não reconhecia mais a paisagem, o trem quase vazio. Sentei-me ao lado de um francês jovem, gentil e muito gato. E no meu francês estropiado fomos conversando. E êle me explicou que eu TINHA que descer na próxima e última estação em Paris. Ao contrário iria para a periferia, rumo ao desconhecido. E a noite caía.
Com suas explicações, desci, peguei o metrô e fui até a estação certa. Feliz, solta, aventurada! E vi meu filho em um balcão de informações tomando as devidas providências para me achar. Nos abraçamos apertado dentro dos seus soluços incontidos. O pai tinha ido para casa ver se eu tinha aparecido por lá.
E lá os encontramos, sogro e nora e um silêncio sem medida. O filho passou a mão na mulher e saíram para “esfriar”. Voltaram bem tarde na noite. Aí sim, corri riscos.
E, ainda assim, feliz da vida me vangloriando da gatice do informante.

A saturação real dourada não me deixou ter medo. Só alívio todo o tempo. Egoísta, me aventurava enquanto os queridos agoniavam! Para isso acho que não tem perdão. Passa tempo, passa tempo e continuo sendo assunto.


E Paris... bem, Paris fica melhor, muito melhor, em “pretinhas de outra lavra”!

15 comentários:

  1. Lea Mello Silva02/02/2018, 09:47

    É pra rir ou pra chorar !? Não conhecia está ida a Paris e me diverti muito
    Sou sua fã número um e receber seu texto é um presente sempre
    😘

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    1. Olá Léa,
      É para rir muito dessa tonta e estressada de mim!
      Como já disse, saber meu texto como presente é muito, muito bom.
      Acho que vou tomar café com você.
      Beijo.

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  2. Moacir Pimentel02/02/2018, 10:41

    Caríssima Donana,
    Para começo de comentário eu ri muito lendo esse seu post "turístico" e dando por vista a cara do “Mano” quando descobriu que o passaporte da senhora estava vencido (rsrs) Mas são os imprevistos, as dificuldades, os desafios superados a matéria tanto das melhores viagens quanto das melhores histórias.
    Em seguida, so sorry, consigo perfeitamente entender o tênis diferente em cada pé do senhor Editor, porque Versalhes – pelo menos para nós os bípedes machos desorientados do terceiro milênio - não quer dizer só mil fotos geniais de mil ângulos diversos, nem “brilhos e dourados", mas a História e as estórias das páginas devoradas nas nossas infância e juventude, de repente, ganhando vida diante de nossos olhos. O encanto de Versalhes não é tanto a multidão de “ninfas e Netunos e tridentes” que moram naquelas fontes, mas o fato de que os engenheiros e arquitetos de então, tiveram que desviar o curso de um rio para abastecê-las(rsrs)
    Com relação à senhora ter se perdido no trem - graçasadeus que com um "gato" prestativo - sou totalmente solidário aos seus pobres companheiros de aventura. Porque já nos aconteceu a mesmíssima coisa só que não com a minha “velhinha em formação”, mas com a nossa caçulinha então com nove anos, em março de 2001.
    Quando a porta do vagão se fechou entre a tribo completa e ela, eu gritei de imediato: “Desça na próxima estação”. Fizemos contato visual, tive a certeza de que ela entendera e até assentira que sim. Confesso que ficamos muito tensos porque nossa filha também não sabia o nome e o endereço do hotelzinho com “nome de queijo” onde estávamos hospedados. Mas nos seguramos e conseguimos enganar a nós mesmos e ao resto dos curumins que estava tudo bem. Só que, depois do que me pareceu ser um século, quando finalmente descemos agoniados na tal da “próxima estação”, cadê ela? Onde estava a nossa linda e pequenina “anã paraguaia”? A mãe desmoronou. Eu senti um frio gelado me descendo pela espinha abaixo. E a velha culpa me tomando de assalto. Os irmãos corriam para cima e para baixo na plataforma chamando por ela. Pense em um sofrimento coletivo. E então , de trás de uma daquelas placas luminosas,um daqueles outdoors de chão anunciando um perfume qualquer, apareceu uma cabecinha mega sorridente e ouvimos:
    “Tava escondida de brincadeirinha”.
    Senti vontade de esganar a pirralha meliante que jamais teve medo do mundo mas só corri para o abraço. Porque imperdoável é viajar com crianças e aborrecentes - e me parece que a senhora! (rsrs) - sem providenciar para que todos tenham sempre, em um bolso dos jeans, algum dinheiro e a sua direção.
    Quanto à eterna franquia francesa, acho que acaba de se transformar em outra eterna franquia inglesa e nela, veja só que coincidência, nós conversaremos em várias outras estações de metrô (rsrs)
    Obrigadíssimo por essa delícia de post e ...
    “Até muuuuuuito mais”

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    1. Olá Moacir
      Que comentário mais divertido. Só saber da sua aventura semelhante com a filhota já valeu o post. Que sofrimento o de vocês! Bom que acabou tudo bem.
      Também o Mano gostou e ficou rindo. No fundo, no fundo devia estar se lembrando dos tênis e também se identificou com a vontade do tal estrangulamento.
      Pois é, crianças, aborrecentes e eu. Você tem razão porque fiz isso também em São Paulo durante uma Bienal. Fomos, a turma de Belas Artes em um ônibus fretado. E, numa visita ao Masp, perdi a realidade e a hora e fui largada lá. Dessa vez tinha comigo bolsa com documentos, cartões e dinheiro. Mas outra vez não tinha o endereço. Só sabia que era em Pinheiros. Como pegar um taxi?
      Voltei a pé pedindo informação aqui e ali. Mas foram muito gentis esses paulistanos e até aconselhavam "não passe por baixo, é muito perigoso, dê a volta por cima". Cheguei noite feita, cansada, com frio e com fome. E uma fera com os colegas!
      Quanto aos jardins de reis e rainhas você viu o filme Nos Jardins do Rei, onde a fantástica Kate Winslet interpreta uma paisagista a serviço do arquiteto do Rei Sol para fazer um dos jardins de Versalhes? É muito interessante.
      Obrigadíssima pela delícia de comentário.
      E vai ser ótimo ter também franquia inglesa em várias estações de metrô. Aí não pratiquei aventuras. Nunca estive apesar da vontade de conhecer. Sabe, aquela coisa de cabelos coloridos, mãe e filhote!
      Até sempre mais.

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  3. Delicia de post! E vamos e venhamos: que aventura!

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    1. Olá Laura,
      Viu só como sou trapalhona? A aventura foi realmente inesquecível, pergunte ao Mano!
      Adorei você aqui.
      Beijo.

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  4. Minha prezada Ana, e colega dissidente,

    Pois não terei nenhuma peripécia por Paris, tanto por eu me perder quanto me desencontrar com um filho.

    Mas, poderei perder o rumo hoje, quando eu for à capital do meu RS baixar hospital e de emergência!

    Tenho passado mal os dias, a ponto de o coração reclamar e acintosamente.
    Logo, Ana, reitero a tua extrema qualidade como escritora, e tanto para o drama quanto para o lado humorístico e com um certo suspense!

    A tua aventura em Paris deve ter sido a viagem inesquecível, claro, e também devem ter tido o mesmo sentimento o Mano e teu filho!
    Ainda bem que o final foi feliz, e todos se reencontraram, se abraçaram, e voltaram a aproveitar a beleza da capital francesa.

    Pois tomara que me deem um janela que eu olhe Porto Alegre bem de cima, e na velocidade dos carros passando seja rápida a minha permanência no Hospital.

    Espero retornar na segunda ou terça, se eu retornar, evidentemente, razão pela qual agora à tarde olhei bem as ruas da minha cidade, falei com amigos meus, pois não sei se os verei de novo.
    Tomara que sim.

    Aninha, meu aplauso por esta aventura em Paris, tão bem narrada por ti.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz, extensivo aos teus amados.

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  5. Querido amigo Francico Bendl, dissidente com certeza,
    Fiquei triste com as notícias. Já estava preocupada quando você, que é um dos primeiros a comentar os posts, não o fez para o Antonio.
    Ainda bem que será atendido rápido, hoje ainda, certo? E terça-feira queremos você de volta, pimpão e bem melhor a nos comentar.
    Um abraço para você.
    Até mais.

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  6. Flávio José Bortolotto03/02/2018, 11:58

    Prezada Autora, Sra. ANA NUNES,

    Seu Artigo, tão bem escrito como sempre, nos lembra que viagens em Família, nestes tempos de multidões, facilmente ocorre de alguém do Grupo ficar separado, se perder, e gerar-se preocupações em ambas as partes, até o Feliz re-encontro.

    Também nos mostram que em condições normais de temperatura e pressão, a maioria da Humanidade é Hospitaleira e tem prazer em ajudar a resolver um problema. Nosso grande viajante Sr. MOACIR PIMENTEL que em certas épocas viajou o Mundo de Mochila, em suas excelentes Recordações de Viagens, ( Índia, Ásia em geral, Península Ibérica em especial PORTUGAL, Itália em especial a Toscana, e Europa em especial Paris- FR, etc, comprovam. Com as viagens a Gente aprende a confiar mais na Humanidade.

    Desejamos melhoras e breve retorno do Hospital em Porto Alegre-RS, à nosso Colega também tão bom Escritor Sr. FRANCISCO BENDL, cuja pressão sanguínea anda um pouco alta.

    Abração.




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  7. Olá Flávio Bortolotto,
    Fico feliz de te ver por aqui.
    Os re-encontros quase sempre são muito bons. Em perdições, em família, em casais depois de briguinhas , porque para brigonas as soluções são outras. Entre irmãos hoje em dia tão separados pelas opiniões políticas. Família é isso, um eterno reencontrar-se.
    A pressão sanguínea do nosso amigão Francisco é sempre alta na TI, principalmente com alguns. Mas ele vai se safar, já teve outras crises de saúde. E precisamos dele! Gostamos muito dele e dos seus textos.
    Obrigada pelo "bem escrito".
    Até mais, Flávio.

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  8. Heraldo Palmeira04/02/2018, 19:34

    Ana,
    Desta feita, fui eu quem viajou junto na perdição das suas letras contando um "perdido" que você deu em Paris e no povo de casa. Claro que me conforta saber que você escapou das ciladas, posto que está aqui contando a aventura. Com direito a "gato" e tudo!

    Imagino o senhor Editor marcando o território do acolhimento da pródiga da família e mostrando com quantos miados se declara amor. Imagino os corações de todos voltando ao ritmo normal.

    Está claro que se o passaporte estivesse em dia, não haveria esta história para contar, não haveria nossa respiração apressada a cada palavra temendo alguma encrenca realmente marcante. Não haveria o deleite do último aniversário com pai e mãe - antes de ela virar lua, lembra?

    Pelo visto, haja despensa para sua "lista de compras". Até mais.

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  9. Olá Heraldo,
    Sim, o sr. Editor marcou o território, mas entre os miados de amor ouvi também uns rugidos de leão ferido. Quanto ao voltar ao normal acho que representaram bem.
    De outra feita, temporada anterior com minha mãe, saímos todos sem as chaves, um achando que estavam com o outro. Em noite de domingo muito frio. Tivemos umas horas de meditaçao antes de entrar no quentinho da casa.
    Sim, lua!
    Obrigada.
    Até mais.

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  10. Olá Heraldo,
    Sim, o sr. Editor marcou o território, mas entre os miados de amor ouvi também uns rugidos de leão ferido. Quanto ao voltar ao normal acho que representaram bem.
    De outra feita, temporada anterior com minha mãe, saímos todos sem as chaves, um achando que estavam com o outro. Em noite de domingo muito frio. Tivemos umas horas de meditaçao antes de entrar no quentinho da casa.
    Sim, lua!
    Obrigada.
    Até mais.

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  11. 1) Parabéns Ana, bom texto, fiz divertida leitura !

    2) Penso que só os grandes sábios saem assim: um tênis de um jeito e outro diferente...

    3)O Mano está de parabéns. Eu sempre quis fazer isso, mas nunca tive coragem...

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  12. Olá Antonio,
    Passeou bastante?
    Sábios dão trabalho sabia? Quando não são os tênis trocados são os botões da camisa! Ou o pijama do lado avesso. Tem que ter assessoria todo o tempo.
    Obrigada.

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