Exercício - o soldado Francisco Bendl é o primeiro da fila da esquerda (fotografia Francisco Bendl) |
Francisco Bendl
Indiscutivelmente
o casamento é a maior experiência e compromisso assumido pelo ser humano, homem
e mulher.
A
constituição de uma família implica em uma série de questões que, se não forem
bem estabelecidas, o fracasso é inevitável.
No entanto –
e me refiro à minha época, pois hoje está muito diferente -, a melhor escola
que havia para o homem e na sua tenra idade, que o ajudava definir o caráter e
a personalidade do mancebo era o Exército.
Austero,
disciplinador, tendo como base a hierarquia solidamente obedecida, quem vestiu
uma farda na década de sessenta sabe muito bem o que quero dizer, pois sou do
período que havia até o castigo físico, e por nada!
- Paga dez apoios -, dizia o mal humorado sargento para o
soldado.
Por ter sido
tão exageradamente usado este tipo de punição absolutamente injusta foi abolida
em 71, pois a pior dessas ordens era o rolamento, ou seja, o recruta cair de
lado e rolar no asfalto ou paralelepípedo ou chão de terra.
Afora o
polichinelo, canguru – difícil, pois havia o salto para cima, a descida com uma
das pernas dobradas, enquanto os braços e mãos ficavam atrás da cabeça, na
nuca, e assim durante a quantidade que o tarado do superior hierárquico
decidisse!
A educação
física era outro tormento, pois além dos exercícios físicos havia depois a
corrida de dez a doze quilômetros, que nos fazia chegar no quartel exaustos,
literalmente com a língua de fora.
Em
compensação, o soldado que servia na Polícia do Exército, que foi o meu caso, e
dei baixa como Cabo, a sua farda era diferenciada das demais guarnições do
Exército.
A túnica de
passeio tinha a sua cor mais clara do que a calça, além de ser trespassada pelo
cinto de guarnição, um alamar branco no lado esquerdo, na manga do mesmo lado o
dístico do III Exército e do outro da PE.
No bolso, um
apito (lembro que a PE também fazia o controle de trânsito) e, no outro, em metal,
o distintivo da guarnição – eu ainda pertenci à 6ª Cia de Pol Ex, e depois como
III Batalhão de Pol Ex!
Coturnos
brilhantes, e vários tipos de se amarrar os cadarços.
O Cabo Bendl (foto Francisco Bendl) |
Logo, quando
saímos às ruas era inevitável obtermos os olhares das gurias, e uma certa
inveja da rapaziada, em face de que nos julgávamos super homens, superiores ao
tempo, ao frio, à chuva, ao calor, ao cansaço!
Menos quando
estávamos nos braços das namoradas, então o “Sansão” ronronava como um gato e
se enroscava na guria como se fosse um cachorro em um cobertor velho!
O soldado
tinha duas obsessões consigo durante o tempo que servisse, fosse ele anos a fio
quando saísse do quartel após o expediente, invariavelmente às cinco da tarde:
Alimentar-se
bem, e conhecer (biblicamente) as namoradas!
A comida
servida na cantina não que fosse ruim, não, simplesmente era intragável!
Ora, ficar
em jejum da noite anterior após o jantar até o final da tarde do dia seguinte e
com a movimentação física que tínhamos, a fome era tanta que, em casa, se comia
o que havia, para a felicidade das mães, que sempre reclamavam do filho que não
comia nada!
E, após o
lauto jantar, mesmo que fosse o trivial feijão com arroz, a pesquisa e experiências
anatômicas com relação ao namoro, em face de jovens com dezoito a dezenove
anos, com muita vontade de conhecer aquelas que o acompanhavam.
Alguns
voltavam para o quartel no dia seguinte mais cansados do que quando saíam no
dia anterior, mas a satisfação e a calma sobrepujavam outra jornada de física,
aprendizado sobre armas, ordem unida, stand de tiros e instruções variadas.
Claro,
tínhamos também as datas comemorativas quando usávamos a farda de gala, e
controlávamos o trânsito e o balizamento do público no dia 7 de setembro, data
onde ampliávamos significativamente o número de admiradoras!
Invariavelmente
após esta festividade, no dia seguinte o quartel recebia centenas de ligações
das gurias querendo falar com o Capitão fulano de tal!
Não havia no
mundo uma guarnição com tantos capitães e nenhum soldado, cabo ou sargento,
somente oficial e, capitão!
A função de
telefonista era compartilhada entre os três pelotões de serviço, denominados de
Infantaria/Polícia.
Cada
grupamento escolhia o telefonista, que dividia esta tarefa com a Patrulha, isto
é, quando precisávamos sair de viatura para atendermos uma ocorrência onde
havia um militar envolvido, o telefonista ia junto, aumentando o efetivo de um
sargento, cabo e dois soldados.
Pois este
telefonista era também muito esperto.
Precisava
ter uma boa voz, atender com educação, haja vista esposas de oficiais ligarem
volta e meia – aviso que sequer se imaginava o que seria um celular -, e ser
rápido em encontrar a pessoa solicitada pela ligação.
Na razão
direta que as namoradas eventuais pediam pelo “capitão”, o sagaz telefonista se
intitulava superior ao dito cujo, apresentando-se como major(!), e roubava a
namorada do oficial subalterno como são denominados o Aspirante a Oficial,
Segundo e Primeiro Tenente e o Capitão.
Major,
Tenente-Coronel e Coronel são Oficiais Superiores.
A encrenca
acontecia quando o “capitão” era passado para trás pelo telefonista, então
havia o desforço pessoal em pleno pátio do quartel, cada um dos contendores com
luvas de boxe, três rounds e, quem vencesse, o troféu era a namorada
conquistada sorrateiramente.
E o pau
pegava prá valer.
Logo, desde
o início se aprendia que para se conquistar alguém era necessário muita luta,
literalmente, mas valia a pena para o vitorioso, e uma via crucis para o
derrotado, que era alvo de chacotas pela surra levada e ter perdido a sua
amada!
Uma das
maiores alegrias do milico era quando o sargenteante (Primeiro Sargento) o
escalava para a Patrulha, enquanto a maior tristeza e decepção era estar no
quadro de informações designado para ser plantão do banheiro!
A patrulha
significava sair do quartel quando havia ocorrências, liberdade, o soldado era
uma autoridade, pois usava uma pistola Colt .45 e um cassetete de borracha,
mais tarde abolido.
A presença
de um soldado da PE impressionava pela altura e envergadura, pois volta e meia
era obrigado a usar da força para conter ânimos mais exaltados.
No banheiro,
enquanto isso, as latrinas eram turcas, ou seja, não havia o vaso sanitário,
apenas a colocação dos pés!
Pois o
meliante – isso mesmo, meliante -, que almoçara algo que não tinha sido
compatível com seu estômago de avestruz, demonstrava este litígio borrando o
local que usava, e lá ia o plantão do banheiro limpar a sujeira feita pelo
delinquente!
O mais
divertido – fedorento, mas caíamos na gargalhada – era quando o soldado com
pressa para se aliviar, saía depois com os calcanhares do coturno ... isso
mesmo, ambos impregnados com o efeito de uma péssima refeição!
Automaticamente
o seu nome de guerra era alterado na hora para... “***ão”.
Na verdade,
o plantão dos banheiros era uma punição para os “manqueiras”, uma turma que
detestava o serviço militar - lembro que na minha época servir as FFAA era
obrigatório -, que não se esforçava, não demonstrava vibração por estar
servindo.
Outra função
muito disputada era ser Dia-sala, em outras palavras, estafeta.
Capa pelotão
tinha designado então, o seu telefonista e dia-sala, cuja função era pagar as
contas do pessoal de serviço, que ficaria no quartel 24 horas, sem sair para
nada!
Mas, nessas
andanças, corria solto a paquera, uma matiné (cinema à tarde) na sessão das
duas, e chegar no quartel antes do fim do expediente.
Eu sempre
fui designado para duas delas:
Patrulha e
telefonista.
Certa feita,
me mandaram ser plantão do banheiro.
Havia um
local onde o pessoal encontrava as latrinas uma ao lado da outra, em um total
de oito.
Enquanto a
PE era companhia, o seu efetivo era de cem homens, logo, oito latrinas para
cabos e soldados comportava um que outro apressado.
Pois bem,
sem divisórias, quando se “encontravam” dois ou três na hora “H”, as
gargalhadas eram naturais, em razão do risco
de se sair borrado ou, então, o mais grave e insuportável, deixar o
plantão em maus lençóis, com as paredes respingadas de...!!!
Sabendo eu
dessas “brincadeiras”, usei de um artifício que me ocasionou OITO DIAS DE
DETENÇÃO, isto é, sem sair do quartel, mesmo quando na minha folga!
Um martírio,
uma tortura!
Mas,
querendo dar uma de sabido, de esperto, rasguei um lençol e entupi as latrinas.
Quem as
usasse e puxasse a descarga, o buraco enviava para cima os dejetos e respingava
até as pernas do necessitado!
Tal
“providência” não só inverteria a brincadeira com o plantão, como impediria de
ser usadas, logo, uma bela folga!
No entanto,
no Exército, aquilo que pensamos é o contrário.
As latrinas
não ficariam um dia sem uso, impossível! E se um pelotão (trinta soldados)
comesse a vaca atolada (carne com mandioca) da cantina no almoço e tivesse um
revertério??!!
Foi
designado o grupo especializado nesse tipo de problema, permanentemente à
disposição para resolver entupimentos, questões hidráulicas e elétricas.
Sem muitos
esforços e sem quebrar o piso e a louça das latrinas, os trapos foram sendo
sugados.
A cada um
deles tirado, eu ia sendo olhado com deboche e maneios de cabeças de um lado
para outro.
No dia
seguinte, na parada da saída do quartel à tarde, o boletim era lido.
Primeira
parte, segunda, terceira, a quarta parte
era Justiça e Disciplina.
- Soldado 108, Bendl, punido com oito dias de detenção por entupir
as latrinas. Também terá de pagar um lençol que usou para suas artimanhas - a voz do
sargenteante vibrava no alto falante da guarnição para quem quisesse ouvir!
Enfim, gosto
de escrever sobre os quase quatro anos que fiquei na PE, pois uma escola para
homens, que contribuía poderosamente para a formação desta pessoa, que entrara
criança, praticamente, e saía adulto!
Nesse meio
tempo, de trabalho duro, havia sempre as brincadeiras, os acontecimentos muito
divertidos, que deixavam o alvo das chacotas com problemas, se flagrado por
qualquer superior, principalmente o Cabo!
Havia o Cabo
da Guarda, o Cabo de Dia, o Cabo da Patrulha.
Aquele que
ficava na Guarda era o que recebia as pessoas, colocava os soldados que estavam
de serviço e designados àquela função em forma quando chegasse qualquer
superior, a entrada e saída da Unidade. Quando se tratava do comandante chegar,
até o corneteiro era chamado para avisar que o comandante estava presente, pois
as ordens são dadas por corneta.
O comandante
descia do carro antes do portão, entrava caminhando no quartel com a guarda
perfilada e batendo continência, e o corneteiro entoando as notas respectivas.
Incansável
nas brincadeiras, o soldado que mais se divertia era também o mais corajoso, em
razão de que, descoberto nesta sua ousadia, a punição seria dura.
Eu e mais
dois colegas, tão absurdamente insensatos, decidimos que dois de nós entrariam
correndo pelo Corpo da Guarda, berrando:
- O comandante chegou, o comandante chegou!
Nesse meio
tempo, o sargento colocaria em forma a guarda, o corneteiro já entoando as
primeiras notas, e eu entraria com toda a pompa e circunstância quartel
adentro!
Eu não
imaginava - inexperiente, ainda -, como poderia ser a reação do Sargento da
Guarda, e do próprio comandante da Unidade, se ele estivesse no quartel!
Ora, ouvir o
som da corneta avisando da sua chegada com o comandante já presente, pularia da
cadeira para ver quem estaria lhe tomando o comando!!
Pois bem:
O Nestor e o
Zeno entraram no quartel conforme combinado e, em seguida, eu apareço com cara
de brabo, sério, olhando de cima abaixo os soldados em forma, e o sargento com os
olhos esbugalhados de terror e ódio!
Logo após o
Corpo da Guarda, no quartel da Praça do Portão que foi depois demolido, ficava
a cadeia da Unidade.
Ali eram
presos os que eram flagrados em crimes, pois os militares também cometem seus
delitos, permanecendo até o julgamento pelo Tribunal Militar, quando eram
escoltados até o local.
Pois na
medida que eu ia entrando, percebi que o Sargento indicara que quatro soldados
da guarda me acompanhassem... até a cadeia!
A risada foi
geral, pois o “comandante” havia transferido o Posto de Comando para a...
prisão!
Fiquei um
dia preso, incluindo a noite, claro.
Pela manhã,
em tom de deboche, e antes de a Guarda ser rendida, ou seja, trocada por novos
soldados, o Sargento que me prendera, pergunta:
- Bendl, queres sair ao toque de corneta e guarda formada ou em
silêncio!?
Pois peguei
a fama de rebelde, haja vista que um das minhas maiores proezas foi espraiada
para fora dos limites da PE!
Como citei
acima, a farda nossa era diferente, mais bonita, mais vistosa, com mais
distintivos, digamos assim.
Pois eu
achava que pela importância de ser PE havia poucas “condecorações” na farda. Então
tratei de adquirir os emblemas em metal prateado de paraquedista, artilharia
antiaérea (?!) e batedor, aqueles que tripulavam as motos Harley Davidson,
acompanhando autoridades.
Coloquei-as
no peito da gandola de passeio, e enfrentei os olhares de admiração e
reverência das gurias, e inveja e raiva do homaredo!
Pelo fato de
eu não poder usá-las, pois nunca havia feito os cursos para ostentá-las,
inverno ou verão e eu saía do quartel de jaqueta!
Era entrar
no ônibus ou bonde – eles saíram de circulação em 74, em Porto Alegre – e
tirava o agasalho, mostrando um Cabo extraordinariamente condecorado, reluzindo
de metais e distintivos na farda!
E como eu
gostava de desfilar pela Rua da Praia, a mais famosa da capital gaúcha, e ser
olhado pelo pessoal!
Algumas
pessoas me paravam para perguntar como que eu havia ganho tantas medalhas, no
que eu respondia que fora em combate, quando fui assistente militar no
Vietnã!!!!
Eu cheguei a
ter uma agenda pequena, de bolso, com os endereços das moças que haviam se
interessado pelo belo e valente militar!!!
Mas, certa
feita sou descoberto em pleno desfile por um tenente da... PE!
Paralisado,
gelado, pensando no que eu ia inventar para justificar o uso indevido dos
galardões, ele fulmina em plena rua:
- Cabo Bendl, eu fiz a AMAN, tenho vários cursos, e não tenho esta
quantidade de emblemas que tens na tua farda. Amanhã, pela manhã, quero que tu
entres em forma na frente da tropa, e explique cada uma delas como as
mereceste!
Durante à
noite, pensei em como fugir dessa suprema humilhação:
Desde
adoecer, ser atropelado, doar três litros de sangue e baixar hospital por
fraqueza, a morte do irmão, um ataque do coração do pai, a casa que pegou fogo,
a mãe que cortou a mão cozinhando...
As horas
passavam e nada.
Morto por
ter cão, morto por não tê-lo.
Pela manhã,
tomei banho, fiz a barba e passei algodão no rosto, pois se ficasse um fiapo o
soldado era punido, passei “Brasso” nas fivelas dos cintos, coturnos brilhando,
empertigado, fui para o quartel.
A cada passo
que eu dava entrando na Unidade, eu ouvia os mais diversos comentários, sendo
que um deles era comum:
- O Cabo Bendl ficou louco!
A tropa em
forma, e eu ao lado do Staff do comandante!
Termina a
apresentação dos tenentes apresentando seus pelotões para o comandante, este se
vira para mim e pergunta:
- Bendl, agora quero que tu nos relates como conquistaste tantos
galardões, que nem eu, que sou comandante, os tenho!
Olhei para o
de paraquedista, e disse:
- Este eu o tenho porque caí da cama enrolado no lençol. Pensei, e
decidi ser paraquedista, porém comprei o emblema antes do tempo.
A risada foi
uníssona.
- O segundo, Bendl, de artilharia antiaérea, que droga é esta se
somos uma tropa terrena??!!
Na razão
direta que eu já estava mesmo desterrado, preso, quiçá fuzilado, segui no mesmo
rumo:
- O símbolo de artilharia antiaérea se deve à flatulência no
alojamento, onde dormem quarenta soldados! O bombardeio é geral, inclusive com
disputas quanto ao petardo com mais barulho!
Nessas
alturas, até o comandante ria das minhas explicações e justificativas.
- Muito bem, Bendl, antes que eu decida o teu destino – imaginei
que eu seria transferido para a prisão de Macapá -, me diz agora o motivo do emblema de batedor?
Engoli em
seco, e disparei:
- Comandante, no dia que eu fosse flagrado ostentando esses
distintivos, eu pegaria uma de nossas motos e sairia correndo do quartel – e imitei
uma moto saindo em desabalada carreira!
Jamais a
tropa tinha tido uma formatura como aquela, de pura diversão, e protagonizada
por um palhaço, corajoso, vá lá, mas um insensato.
Resumo da
ópera:
Fui “condenado” naquele dia a lavar as cem
bandejas de metal onde servem as refeições, de cada militar da PE!
Saliento que
não havia máquina para isso, pois cada um era responsável pela sua bandeja, de
lavá-la e guardá-la limpa!
Meu apelido
ficou até hoje como Cabo-General, e quando me encontro com meus camaradas que
serviram comigo é inevitável eu rememorar este episódio.
Por falar
nisso, entenderam agora por que jamais lavei uma louça depois de casado?
Já escrevi a
respeito nesse extraordinário blog e oásis cultural!