A Confraria - fotografia de Heraldo Palmeira |
Heraldo
Palmeira
Há quase 25 anos era somente um sebo de CDs – compra, venda e
troca. O dono ficava sentado na calçada do outro lado da rua, num boteco,
tomando sua cervejinha. Quando entrava algum cliente, ele dava um subtotal,
atravessava e atendia o amante da música. Claro, torcendo para aquilo demorar
pouco, pois as louras geladas são temperamentais, esquentam logo. Ainda mais
naquele ambiente tropical.
Dois anos depois de abertas as portas, já no endereço atual, um
amigo trouxe umas latinhas de cerveja. Estava aflito com um problema pessoal e
queria conversar com o dono do sebo. Daí surgiu a “determinação etílica” de
colocar uma geladeira dentro da loja.
Uma gigante multinacional quis tocar um solo e ofereceu um cooler para refrigerantes, que o operoso
comerciante tratou de, retiradas as serpentinas, transformar em geladeira para
as latinhas da mesma marca de cerveja que vende até hoje. Naquele tempo, fazia
a festa dos abnegados da música, pois não cobrava por elas – quem comprasse
CDs, bebia de graça.
A multinacional – que também era dona da marca de cerveja
escolhida – não gostou da traquinagem e recolheu o cooler. O homem comprou sua primeira geladeira. Os amigos foram
trazendo panelas, talheres, pratos, fogão e montaram um novo acervo, culinário,
que virou uma minicozinha industrial pronta para os melhores sabores dos
iniciados na arte de cozinhar.
Quando os CDs deram lugar aos DVDs, a casa migrou para a novidade
e seguiu oferecendo suas obras de referência e raridades. Aberta de segunda a
sábado, com domingo reservado para a faxineira dar uma geral e entregar o
serviço ao redor das dez da manhã.
Num dos domingos, o dono repetiu o costume de receber a casa limpa
para mais uma semana de prazeres. Um amigo ia passando e entrou. Foi o primeiro
de todos os domingos em que a casa “abre a meio-pau”, nas palavras dos
confrades. Tradução: fica aberta apenas a porta lateral que dá acesso a um
beco, ligado diretamente à rua.
Hoje, todos os sábados, os homens começam a chegar a partir das
onze da manhã. Como se aquilo fosse religião. E é! Coisa de anos a fio, e o
grupo se renova com um amigo que traz um novato desconhecido ou por
descendentes dos pioneiros.
Nesses anos de entra e sai, o lugar pode não abrir em determinado
dia, se houver a menor suspeita de que não vai ter frequência que justifique escancarar
a porta – um critério empírico que seguirá impossível de tornar-se estatístico,
apesar de ser essa a formação acadêmica do dono. Conte-se aí alguma crise de
preguiça também.
A confraria junta tudo quanto é modelo: jornalistas,
publicitários, procuradores, juízes, empresários, médicos, advogados, políticos,
escritores, músicos e o escambau. Todos preparados para resolver ou rir dos
problemas do mundo e voltar para casa com outros tantos insolúveis.
O ambiente, uma casa transformada para os encontros, oferece três
salas e banheiro. E um grande quintal, que serve para festas específicas,
pontuais. Também acolhe pequenos eventos culturais, como lançamentos de livros
e apresentações musicais.
Tem logo na entrada os degraus derramados sobre a calçada, que dão
acesso à primeira sala, onde está o balcão sagrado de onde o dono comanda a
cena. Ao redor dele, apenas três banquetas e mais que outro tanto de amigos de
pé, tomando a cerveja estupidamente gelada, uma das marcas do lugar, reforçada
pela prosa sem futuro. Da melhor qualidade. Interminável.
O lugar é considerado um fenômeno. Não é bar, não é restaurante,
não tem garçons nem cozinheiros e, mesmo assim, é o maior ponto de venda da
mesma cerveja long neck de sempre (no
Estado). Afinal, hoje já são cinco geladeiras comerciais abarrotadas. É um
ambiente prioritariamente masculino, mas as mulheres, quando resolvem aparecer,
são sempre bem-vindas.
O bar, operado exclusivamente pelo dono (detrás do balcão), também
oferece uísques e vinhos honestos, e refrigerante – aquele mesmo do cooler transformado. A minicozinha
industrial é de uso livre pelos comensais, que trazem o que bem entendem para
preparar e dividir à mesa com os amigos. E a limpeza é um dos mandamentos mais
respeitados.
Vez ou outra, algum incauto produtor de cervejas especiais chega
tentando propor degustação e comercialização do seu produto. O dono nega, elegante
e taxativo. Explica que ali é um lugar para quem gosta de “beber com força, como
eu”.
A casa abre em dois turnos, antes e depois do almoço, com longo
intervalo, porque ninguém é de ferro. Algumas placas de madeira, dessas
encontradas em qualquer feira de artesanato, dão as coordenadas do lugar:
Nesta casa
não temos empregada. Faça sua parte.
Cerveja faz
mal quando falta.
Eu bebo pra
ficar ruim, mesmo. Se fosse pra ficar bão, eu tomava remédio.
É proibido chegar bêbado. Sair, pode.
Não houve qualquer planejamento para transformar o fenômeno Letra
& Música – um sebo de CDs que virou sebo de DVDs – em confraria. Tudo foi
acontecendo naturalmente, com o esfacelamento do mercado da música.
Os frequentadores costumam trocar apertos de mão ao entrar e
cumprimentar todos os presentes. Não raro, chegam confessando dívidas
anteriores, esquecidas pelo teor etílico e pela gentileza do dono, que logo convoca
ao pagamento para o sujeito “não ficar mal falado pelos outros”.
Ainda há um
acervo de discos na casa. Mas, hoje, o negócio é o afeto que se encerra em
garrafas, panelas e conversas de amigos. Ouso dizer, um dos lugares mais
agradáveis de Natal, que bem se traduz numa das placas famosas do lugar – que
pode estar em qualquer lugar, mas ali tem sabor especial:
Esta casa parece um hospício, somos todos loucos uns pelos outros.
Dedicado a
Ary Ramalho, o dono.
Heraldo, outra boa história, bem contada, de um bom lugar. Não posso fazer melhor comentário do que o que um conhecido meu daqui de Belo Horizonte, fotógrafo e conhecedor e divulgador dos discos (sim, dos belos discos de vinil) do bom rock and roll, fez no Facebook, onde contou que ficou entristecido quando ao final da leitura, percebeu que a Confraria era em Natal, porque já estava se dispondo a ir fazer-lhe uma visita...
ResponderExcluirUm abraço do Mano
Mano,
ExcluirLamento pelo seu conhecido, que não pode usufruir diretamente da nossa confraria. Mas será muito bem-vindo quando visitar Natal. Vai se sentir "em casa", já que foi divulgador dos bons tempos do vinil.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirÉ uma alegria saber que lugares como a Letra & Música sobrevivem em um mundo no qual o amor táctil por livros, discos, CDs e DVDs é coisa de velho, comprar objetos que ocupam espaço e juntam poeira é coisa de louco, as velhas livrarias e sebos e lojas de discos se transformam em estantes virtuais e se bota tudo na nuvem. Antigamente quando era preciso ler um título raro íamos aos sebos. Hoje se baixa qualquer texto da internet. Nessa guerra inglória entre o velho e o novo, os livros e o som digitais e o comércio eletrônico ganham uma batalha atrás da outra. E no entanto como são bonitos esses lugares cheirando a poeira geralmente decorados com peças antigas, onde os livros e discos parecem brotar das paredes, de pé, de lado e deitados nas prateleiras, em pilhas pelo chão e em cima das mesas.
Dia desses li com muita tristeza que o meu alfarrabista preferido no bairro dos Clérigos do Porto, foi despejado em dezembro passado para abrirem espaço para algo bem modernoso e fora do contexto. Sim, alguns valentes e últimos moicanos ainda sobrevivem nas nossas praias, repaginados e antenados, como é o caso da Beringela, na Avenida Rio Branco, ali no subsolo do Edifício Marquês de Herval, ou da Baratos da Ribeiro que depois de décadas em Copacabana parece estar se dando bem no novo endereço botafoguense e, é claro, da Bossa Nova & Companhia no lendário Beco das Garrafas. No centro do Recife, tem uma pracinha destinada pela Prefeitura exclusivamente para as lojas de usados. Dizem que esse bendito corredor do passado, onde os alugueis são compatíveis com os preços dos livros e discos comercializados, só existe graças à luta de um outro nordestino ilustre, um livreiro de nome bíblico - Melquisedec! - que apesar de só ter frequentado a escola por um ano, se apaixonou de tal forma pela leitura que, aos treze, arrumou o primeiro emprego em um sebo e nunca mais parou de ler até se despedir aos noventa anos. Lembro de eu menino sendo levado por meu avô à livraria do “Melqui”, que ficava então por trás da Universidade Católica.
Mas a verdade é que hoje quando falamos desses espaços sagrados sempre cogitamos se ainda mantêm as portas abertas e que, cada vez mais raramente, experimentamos o prazer de garimpar nunca sabendo o que iremos encontrar.
Talvez o grande Ary Ramalho, atrás do seu balcão nesse reduto de cultura alternativa de Natal tão bem descrito por você, tenha descoberto a receita exata para atrair o público fiel e também o novo, vendendo boas letras e música e cerveja estupidamente gelada.
Torço por ele!
Abração
Caríssimo,
ExcluirPena que pouca gente ainda enxergue esses oásis como verdadeiros tesouros que preservam tempos, estilos, jeitos de fazer as coisas, que viram memória e cultura.
É muito ver que em tantos lugares esses esses redutos ainda insistem em persistir. Bom para nós, que não nos incomodamos com poeira, com ocupar espaço, desde que estejam ali preciosidades. E com cerveja estupidamente gelada por perto... Abração.
Olá Heraldo.
ResponderExcluirOutro texto delicioso de se ler.
Gostaria de ter um discoteco desses perto de mim. Onde os homens poderiam adentrar se quisessem...com muita cerveja já que ela faz mal quando falta!
E vou guardar para mim a frase dessa casa parece um hospício, é a cara daqui de casa.
Talvez faça uma xilo e aí vou ter a placa. Só que será pequena.
Obrigada pelo prazer da leitura.
Até mais.
Ana,
ExcluirObrigado por sua leitura. Sim, ter um lugar como este por perto é mesmo uma dádiva, até porque se pode tomar uma cervejinha estupidamente gelada e jogar conversa fora com gente boa. Até mais.
Indiscutivelmente quem frequenta um local denominado de confraria, pois são os mesmos participantes, e encontra um ambiente com esta característica muito bem escrita pelo Palmeira é um afortunado!
ResponderExcluirMinha reverência ao texto, e parabéns aos frequentadores do Letra & Música, que fundaram um excelente ambiente, onde a alegria e satisfação devem ser mesmo constantes.
O meu abraço ao Palmeira.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirSim, somos mesmo afortunados tendo um ambiente desses por perto. Obrigado pela reverência ao texto e pelo abraço. Outro para você.
1) Belo texto cultural de uma cidade lindíssima e um povo hospitaleiro genial.
ResponderExcluir2)Natal, RN, abraços queridos.
Antonio,
ExcluirOrigado pela leitura e comentário. A confraria é mesmo um endereço querido da cidade.