Gargalheiras, mundo d' água desaparecido (fotografia Heraldo Palmeira) |
Heraldo
Palmeira
O calor insuportável, parecia que se estava dentro de uma estufa.
Sol a pino, sem um fiapo de brisa que fosse, o juízo quase batendo pino. As
noites não estavam vindo amenas, o vento marinho parecia ter desviado sua rota
para outro lugar. Não havia refresco, temperaturas aproximando atrevidamente
dos quarenta graus, sensação térmica de alguns tantos mais.
O final da tarde, um pouco mais fresco, pareceu melhor indicado
para colocar o carro na estrada rumo ao fim de semana no interior. Por lá, o
calor intenso também era tema constante das conversas, ainda mais num cenário
de racionamento de água. Pelo menos, a noite quase sempre trazia um vento ameno
que desce das serras que circundam o lugar e açoita o vale onde a cidadezinha
se esparrama.
As chuvas irregulares que caíram desde o início do ano foram suficientes
para deixar o mato verde, fazendo brotar aquela imagem de fertilidade que
caracteriza o sertão no inverno. A vegetação viçosa encheu de vida o cinza de
caatinga que havia pouco antes.
Sim, era um falso inverno, andava chovendo muito menos do que o
necessário, muito distante do que sonha o sertanejo todos os anos. O Dia de São
José ainda estava para chegar. É um marco na esperança da gente simples. Se
esse dia for chuvoso é bom sinal.
A música do mundo tocando no som do carro, a atenção redobrada
para evitar os sustos de motoristas mal habilitados, imprudentes que estão em
todos os lugares, ainda mais num ambiente de regras muito particulares e
fiscalização inexistente.
É bom rever a entrada da cidade no começo da noite, as luzes já
acesas, tremeluzindo, iluminando a vida pacata. Por sorte, o ventinho já
circulava acolhedor, indicando a primeira calçada de amigos para sentar e
aguardar o jantar na velha e boa prosa de muitas gargalhadas. Santo remédio
para dissipar a tensão da estrada.
Mais tarde, cansaço dando sinais, hora de pegar a estradinha que
leva até a pousada, erguida em pedaço reservado no topo de uma pequena colina fora
do ambiente urbano. Lugar simples, acolhedor, com o conforto possível para a
região. Funcionários amigos de longa data – alguns de infância –, silêncio de
área rural, cozinha caseira honesta.
O quarto amplo, à espera, já com ar-condicionado ligado, um dos
mimos de sempre. O vento forte que assovia agitando as árvores lá fora até o
amanhecer. E cedinho chega a passarada na sua alvorada perfeita. O sol, quente
desde o nascer, iluminando a paisagem desoladora do açude acostumado a ser respeitosamente
tratado em muitos milhões de metros cúbicos, agora reduzido a um pequeno poço
na base da grande muralha de concreto de sua represa.
Nunca se viu aquilo naquele estado de escassez, o mundo d’água
completamente desaparecido, deixando no ar a dúvida incômoda de quanto tempo
passará até que se veja a chuva enchendo tudo de novo até a sangria vigorosa
sobre a muralha.
O espetáculo tradicional que descerá feroz pelo concreto, rugindo
dias a fio, enchendo o rio que segue abaixo, lavando de fertilidade a terra
infinita por muitos quilômetros adiante.
Logo depois do café, hora de voltar para a cidade e visitar mais
amigos, chegando com algazarra nas casas sempre abertas, acolhedoras. Prosa,
prosa, prosa... A resenha que vai sendo construída a gracejos mútuos e
gargalhadas a granel.
Mais tarde um pouco, as conversas sérias sobre um projeto cultural
que motivou a viagem. Tudo resolvido rapidamente. Algo normal num ambiente onde
todos se conhecem há muito tempo.
Os acertos musicais breves com os maestros, a visita ao vigário na
casa paroquial – sempre bom estar em dia com o Divino. O almoço a convite de
outros amigos, comida feita com esmero, muitos ingredientes produzidos no
quintal da casa ou na fazendola da família, distante poucos quilômetros daquela
mesa farta e feliz. E o prazer do encontro estampado em cada pessoa presente, até
nas que foram sendo apresentadas e virando amigas de infância. Como deve ser
sempre que boas amizades têm início.
Outra noite de sono e amanhecer naquele pedaço de paraíso isolado.
O dia correndo ligeiro rumo à hora de pegar de novo a estrada para o caminho de
volta, apontando muitas casas que não daria tempo de visitar. Compromisso
assumido para a Semana Santa ou para a festa da padroeira, mais na frente.
E assim será, como sempre foi. Haverá tempo para um cafezinho, uma
refeição robusta, uma prosa com cadeiras na calçada debaixo da sombra de uma
árvore, o ventinho maroto como trégua de verão. Tudo para que não se perca
nenhuma oportunidade daquela convivência. Só para lembrar dos bons tempos, como
se estes de hoje também não fossem bons. Paciência! Nossa mania de gostar do
passado, de cultuar a nostalgia da terra de nascer e renascer.
A seta piscando, ritual para entrar na estrada. Ali na frente,
quase ao alcance da mão, um verdadeiro luar do sertão. O pensamento, amarelado
por aquela luz deslumbrante, se curvando diante de tanta beleza:
Se a lua nasce
Por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata
Prateando a solidão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Amarelo mais para ouro velho, refletido nos olhos serenos que
dizem sim ao futuro, que se abrem para a vida companheira como um clarão. Olhos
que verão com calor a estrada como o caminho indispensável até lá. Verão!
Verão que corre lá fora cortado pelo carro veloz. E a lua, doce
clarão, vai indo para bem longe, subindo, virando prata, mudando a cor dos
olhos serenos que avançam pelo futuro que a gente combinou com a vida. Que não
para de passar. Passado e presente. Futuro que há de vir. E virá, basta ver
para crer.
O luar
Do luar não
há mais nada a dizer
A não ser
Que a gente
precisa ver o luar
Que a gente
precisa ver para crer
Diz o dito
popular
Uma vez que
existe só para ser visto
Se a gente
não vê, não há
Se a noite
inventa a escuridão
A luz
inventa o luar
O olho da
vida inventa a visão
Doce clarão
Trechos de:
Luar do sertão (Catulo da Paixão Cearense-João Pernambuco)
Luar (Gilberto Gil)
1)Vamos ver se terei sorte hoje...
ResponderExcluir2) um dia consigo postar, outros não.
3)Faço tudo como sempre, a máquina boicota, parece-me um complô webiano.
4)No mais só dizer que gosto muito das crônicas do Heraldo. Das coisas boas que ficaram lá no passado.
Antonio,
ExcluirEsses mistérios do mundo digital são insondáveis. Por isso, já ouvi alguém chamando a informática de esfinge, pois ela não se deixa conhecer inteiramente por ninguém.
Obrigado por seu comentário gentil.
muito legal, Heraldo, que você lembrou que Luar do Sertão é parceria de Catulo da Paixão Cearense com João Pernambuco. João é frequentemente esquecido nessa.
ResponderExcluirAndré,
ExcluirObrigado pela leitura. Como também atuo no ramo da música, tenho sempre preocupação para que a informação seja correta, ainda mais quando trato de autoria de obras.
Aprecio os contos de Palmeira porque usa muito bem as palavras.
ResponderExcluirConstrói expressões bem feitas, e tem o talento de descrever com muita propriedade os locais visitados.
A mescla de prosa com poesia me agrada, pois enfatiza a ideia que se quer transmitir e a sensação do momento quando se escreveu o texto.
Logo, a obra apresentada é completa, com um início que chama à atenção, um roteiro interessante e o final poético, ainda mais quando o sol se põe e surge a lua substituí-lo, como se o astro-rei apenas trocasse de roupa para à noite que se avizinha.
Gostei muito do que li, parabéns, Palmeira.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirObrigado. Espero continuar despertando seu interesse. E merecendo comentários como este, cheios de poesia. Abraço.
Querido amigo Heraldo
ResponderExcluirFaz algum tempo desde quando nos encontramos neste valioso blog do Mano.
Desta vez, seu texto poético trilhou duas vertentes, melhor dizendo, duas veredas (!!!) a serem percorridas neste despretensioso comentário.
A primeira delas traz, da memória distante, um trajeto de oito dias (e noites mal dormidas...)de um menino, na pré-adolescência, sentado em sacos de sal,com mais uns dez caboclos,todos usando largos chapéus, na carroceria descoberta de um caminhão. Eu e minha mãe, sentada na boleia, com outra senhora e o dono do caminhão, um italiano falante, chamado Orfila. Ela e eu estávamos completando a viagem ,"por dentro", Rio/Teresina/Fazenda Santa Cruz",num ponto distante nas margens do Parnaíba. Essa epopeia toda, que incluiu dez dias de viagem descendo o São Francisco,de barco gaiola, se explicava pelo fato de que os submarinos alemães já haviam afundado mais de trinta navios brasileiro nas nossas costas oceânicas. É daí a minha paixão pelos valorosos submarinos...
A segunda vertente do seu texto trata da Lua com delicadeza e paixão, usando versos lindos de poetas inspirados. Eu também sou apaixonado pelo nosso satélite. Contudo, contei esse fato para minha querida Vênus, no último encontro que tivemos no calçadão. Disse-lhe, então, que alguns companheiros (a) do nosso blog reclamaram do fato de ela ter chamado a Lua de cafona.Ela riu muito e mandou dizer que faz uma concessão, mudando o adjetivo de "cafona" para "espalhafatosa", quando chega como dona do pedaço.
Pronto, contei...
Um abraço fraterno.
Domingos
Querido amigo Domingos,
ExcluirGosto de rabiscar tempos antigos porque eles sempre despertam lembranças tão boas, inclusive nas outras pessoas. Seu relato de viagem daria, sozinho, um bom livro. E lhe inspirou para gostar de submarinos! Histórias impagáveis, precisam ser contadas.
Aí chegamos à lua, linda de morrer! E você deságua poesia. Mas diga à sua Vênus que a lua não tem culpa de ela se mostrar menos. E que a lua tem tanta elegância que se mostra devagarinho, passando por quatro fases. Afinal, a lua é uma mulher, sempre linda, sempre misteriosa. Desperta inveja! Abração.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirJá começo a ler seu belo texto quase ouvindo a música que ainda não sei. Mas sei que virá. E vem assim cheia de lembranças antigas com Catulo e depois mais linda ainda com o Gil. E que fica ainda na gente um tempo depois de acabar de ler.
Depois a viagem quente, que passa devagar por causa da pressa de chegar. Quem não?
E mais depois, chegando no finzinho, essa lua espalhafatosa como diz seu amigo, ao mesmo tempo silenciosa e senhora já,como fecho de brilhante no colar de pērolas.
Fica comigo essa mistura de coisa nova boa que se junta com lembrança velha minha.
Parabéns, obrigada e até mais.
Ana,
ExcluirA música, a música... "Companheira do quarto dos rapazes, confidente do quarto das meninas...". E que fica na vida inteira.
A lua é tão modesta que se mostra em quatro fases, até com a nova, onde some como se sentisse a vergonha da menina de outros tempos ao descobrir seus próprios segredos femininos. E o meu amigo falando de Vênus... Imagine se ele conversasse com sua mãe! Ou com todas as incontáveis lembranças!
Amigo Heraldo, há algum tempo não lia tuas crônicas; não sei se por falta de tempo meu ou teu ... mas lê-las me faz sentir vivo, como se eu fizesse parte daquele pedaço de terra que você tanto ama ... e me faz sentir saudade do meu pedaço também..
ResponderExcluirAbçs
Emerson,
ExcluirBom encontrar você por aqui. Tenho estado sempre, mesmo com alguns intervalos maiores de vez em quando. Nada que impeça nossas viagens às terras do ontem. Abraço.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirA sua Bic Cristal Azul milagreira faz a gente recordar dos versos do Mestre Caeiro: "Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia/ E para onde ele vai / E donde ele vem / O rio da minha aldeia não faz pensar em nada/ Quem está ao pé dele está só ao pé dele".
A gente sente mais do que entende essa sua paisagem. Em vez de nos informar você nos lembra de tanta coisa: da música do mundo antes da cidadezinha da gente menino onde na casa branca de janelas verdes tinha abraço e "xêro" de vó, cozinha com fogão de lenha, bolinhos de maisena em prato de beirada lascada, leite "do peito da vaca" em caneca de ágata, jardim de rosas e margaridas, horta e pomar com pé de manga, cajú , goiaba, abacate, sapoti, pitanga, jaca, pinha e "cruaçá". Tinha quintal para as galinhas de capoeira - e cabidela! - tinha família grande, barulho de criança, mesa farta, gargalhadas, jogo de pôquer.Tinha cadeiras nas calçadas para assistir às cavalhadas, festa, sanfoneiro, procissão, dia de feira e de missa e pipas coloridas que meninos "sem perícia" tentavam fazer voar. Tinha brisa noturna cheirando a jasmim e histórias de "malassombro" e paz e a vida inteira pela frente e como se não bastasse a lua subindo lá da verde mata. Por tudo isso não tem mesmo "estrada cumprida", "légua tirana ", ou "seca marvada" capaz de nos fazer não querer voltar. Pelo menos na imaginação:
https://www.youtube.com/watch?v=tAIURN5ftAY
Abração
Caríssimo,
ResponderExcluirNão satisfeito em honrar com a leitura, você faz comentários preciosos. E taca a citar maravilhas, como essa de um dos filhotes de Pessoa. E as tantas outras da infância quando havia infância sem compromissos de adultos!
Sim, nos resta ir driblando a légua tirana diária do passar do tempo, fingindo que não estamos nem aí, até o dia de ter a estrada cumprida - oxalá, já tendo tido asa para ver, inda hoje, aquela ela, e entregue pra ela eu e o coração. E assim será. Abração.