Didier Daurat (imagem www.fandavion.free.fr) |
Wilson Baptista Junior
A “Linha”,
que era como Saint-Exupéry e seus companheiros sempre chamaram a Aéropostale,
desde seu início em que era simplesmente a linha de correio aéreo
Toulouse-Alicante-Rabat, foi construída para permitir que a correspondência
pudesse ser enviada por avião, que viajava mais depressa do que os navios e
trens que a transportavam época.
Didier
Daurat, piloto de guerra, que tinha começado fazendo voos de reconhecimento,
foi ferido pelos caças inimigos, saiu do hospital e voltou à linha de frente
como piloto de caça, condecorado com a Croix
de Guerre e a Légion D’Honneur,
no início de setembro de 1919 foi o primeiro a completar o voo de Toulouse, na
França, até Rabat, no Marrocos, levando a correspondência. Tornou-se em pouco
tempo chefe de escala (chef d’aéroplace)
em Málaga, encarregado de estruturar lá uma oficina completa de manutenção e
armazém de peças dos aviões, e por seu desempenho já no ano seguinte foi
promovido ao cargo de diretor de operações da Aéropostale.
Um grande problema
na Linha, que nessa época estava em precárias condições financeiras e de
gestão, era que como os pilotos, no início, só voavam de dia, pela falta de
infraestrutura para navegação noturna, a cada noite o tempo ganho durante o dia
era perdido para os trens e navios que continuavam a viajar enquanto os aviões estavam
parados.
Para
compensar o custo mais alto da aviação era indispensável recuperar estes
atrasos. Mas fazer voos noturnos regulares, enfrentando muitas vezes péssimas
condições de tempo, com a comunicação entre aviões e bases apenas por
radiotelegrafia, com dados meteorológicos rudimentares era considerado muito
perigoso. Daurat acabou convencendo seus colegas de direção que era preciso
tornar isso possível, apesar dos inevitáveis sacrifícios que certamente
ocorreriam no início.
Começaram,
cuidadosamente, por fazer os voos decolarem apenas uma hora antes do amanhecer
e prosseguirem até uma hora após o por do sol, e à medida em que as
experiências deram certo foram progressivamente estendendo este tempo até terem
confiança para voar a qualquer hora da noite.
“Voo
Noturno” (Vol de Nuit), o segundo
romance de Saint-Exupéry, conta a história de um voo destes, onde os correios
vindos do Chile, do Paraguai e da Patagônia deveriam se encontrar em Buenos
Aires para entregar o correio e os passageiros ao avião que prosseguiria a rota
com destino à Europa.
O personagem
principal do livro é o chef d’aéroplace
de Buenos Aires, Rivière, que é intencionalmente um exato retrato de Daurat, a
quem, aliás, o autor dedicou o livro. Saint-Ex nesse romance colocou
propositalmente o diretor de operações, que era seu chefe e quem ele muito
admirava, no posto que ele próprio ocupava quando da abertura e consolidação das
rotas sul americanas, e escreveu portanto com perfeito conhecimento tanto do
trabalho como do personagem.
Fabien, o
piloto do voo da Patagônia, por sua vez, representa todos os pilotos da Linha
que realizaram os voos noturnos, inclusive os que ficaram pelo caminho.
Toda a
construção do livro, onde o voo fornece o fio condutor, é feita em volta do profundo
dilema do chefe que estima e preza a vida dos seus pilotos mas tem o objetivo
maior de fazer com que eles sejam capazes de assegurar o êxito do correio, que
para ele era o alvo a quem eles todos dedicavam seus esforços e suas vidas.
Já aparece
aqui um tema recorrente na obra de Saint-Ex e que seria mais tarde
magistralmente exposto no seu “Cidadela”, o da construção do homem e de sua
alma através da dedicação, expressa pela ação, a um objetivo comum situado fora
dele. Rivière é o condutor que propõe esse objetivo e vai depurando
impiedosamente sua equipe para que só fiquem os que alcançam essa condição.
O autor não
analisa nem explica o seu Rivière / Daurat; o leitor vai descobrindo o
personagem, como escreveu Pierre Chévrier (pseudônimo de Nelly de Vogüé) “da mesma maneira que os pilotos o
descobrem”, por suas palavras e suas ações.
O livro
começa com Fabien, vindo da Patagônia, se aproximando da escala de San Julian,
no final da tarde, e ouvindo do seu rádio-navegador que “há tantas tempestades que os raios saturam meus fones. Pernoitaremos
em San Julian?”
Mas Fabien
via que o céu “estava calmo como um
aquário e todas as escalas à frente avisavam: Céu claro, sem vento”. E
responde: “Continuaremos”.
Depois da
escala e da nova decolagem, a escuridão da noite vai chegando, o piloto já não consegue
distinguir as leituras dos instrumentos, e acende a débil iluminação vermelha
que vai lhe permitir ver sem ficar ofuscado. Lá em baixo, a terra vai ficando
indistinta, pontilhada apenas pelas luzes distantes das cidades. Tudo está em
ordem, o giro do motor está firme e se transmite à estrutura do avião e às mãos
do piloto como uma pulsação de vida; o piloto se acomoda melhor,
tranquilamente, para as horas até a próxima escala. E com tudo em ordem começa
a profunda meditação do voo, que só os pilotos conhecem.
---
o ---
Em terra,
Rivière, responsável por toda a rede, caminha pelo campo de aviação e espera os
três aviões que voam para Buenos Aires. Enquanto os três não estiverem em terra
à sua frente seu dia de trabalho não estará terminado:
Minuto por minuto, à medida que chegam os telegramas, Rivière tem
a consciência de desprender alguma coisa das mãos da sorte, de reduzir a
parcela do desconhecido, de rebocar suas tripulações para fora da noite e até a
margem.
O avião do
Chile aterrissa. Quando chegarem os outros dois o trabalho das tripulações
estará feito, mas Rivière não descansará; porque então decolará o voo para a
Europa. Ele sente que seu trabalho nunca terá fim...
O piloto do
Chile conta da tempestade que enfrentou ao atravessar os Andes. Um ciclone do
Pacífico que geralmente nunca ultrapassava as montanhas, mas que dessa vez
prossegue terra adentro.
Há um
personagem do livro, o inspetor Robineau, que Saint-Ex usa em oposição a Rivière
para melhor mostrar o comportamento deste último. Robineau é um funcionário extremamente
consciencioso, analisa os livros à procura de erros, confere os registros de
chegadas e partidas de cada piloto e faz verificar os reparos feitos na oficina à
cata de defeitos, mas não conhece da aviação nada mais do que isso. É uma
pessoa meticulosa, solitária e introvertida.
Quando
Pellerin, o piloto do Chile, vai para a cidade, Robineau, terminado seu horário
de trabalho, o acompanha e sua admiração pelo feito do piloto que venceu o
ciclone faz com que ele vença por um momento sua timidez e o convide para
jantar. Pellerin aceita e quando estão se preparando para ir jantar Rivière
manda buscar o inspetor no hotel.
Nada há
nesse momento que reclame o trabalho do inspetor, mas quando ele chega ao campo
de aviação Rivière o chama e pergunta se se tornou amigo de Pellerin. E quando
o inspetor diz que sim, Rivière o repreende, dizendo no começo que não há mal nisso
mas...
- Só que você... Você é o chefe.
- Sim, responde Robineau.
- E deve se manter no seu papel.
- Você talvez tenha que mandar este piloto, na próxima noite,
decolar para o perigo. E ele terá que obedecer.
- Sim, responde o outro.
-Você dispõe quase que da vida deles, e de homens que valem mais
do que você. Isto é grave. Se obedecerem a você por amizade, você os estará
enganando. Você não tem, por si próprio, direito a nenhum sacrifício. E se eles
acreditarem que sua amizade lhes evitará certas tarefas, você os estará
enganando também. Será preciso que eles o obedeçam.
E Rivière
manda Robineau infligir uma penalidade a Pellerin. E como não há razão para
tanto, manda que invente qualquer uma. E ante a incompreensão do inspetor,
Rivière lhe diz:
- Finja que compreende, Robineau. Ame os seus comandados. Mas sem
lhes dizer...
---
o ---
O
rádio-navegador do avião da Patagônia, depois de uma hora de voo, começa a
perceber que as nuvens escurecem e cobrem as estrelas. E já não se enxerga o
solo. Mas o piloto continua, rumo aos relâmpagos distantes. Clarões aparecem
também aos lados, e apesar da sua confiança no piloto o navegador se preocupa.
---
o ---
No seu
escritório no campo de aviação Rivière recebe os telegramas rotineiros de suas
escalas. Mas nenhuma tem notícia dos dois aviões que faltam, a tempestade
bloqueia a rádio telegrafia.
Revisa e
assina papéis. E recorda a entrevista da véspera com o velho Roblet, um dos
mecânicos mais antigos, que pela primeira vez cometeu um erro que poderia
comprometer um avião, felizmente detectado a tempo, e que ele tem que retirar
da oficina. O homem que montou o primeiro avião da Argentina, que há vinte anos
trabalha nos hangares, e que emocionado recusou ser transferido das oficinas
para um posto de manobra para não perder sua dignidade frente aos companheiros.
E Rivière, que estima o velho companheiro, revê suas mãos calejadas trêmulas de
angústia e pensa:
Bastaria dizer: - Está bem, está bem. Fique. E sonha com o caudal
de alegria que desceria sobre as velhas mãos. E essa alegria que diriam, que
iam dizer, não esse rosto, mas essas velhas mãos de operário lhe pareceu a
coisa mais bela do mundo. Vou rasgar este papel? E a família do velho, ao
voltar para casa à noite, e seu orgulho modesto:
- Então? Te conservaram?
- Pois claro! Fui eu que fiz a montagem do primeiro avião da
Argentina!
E os jovens colegas que já não ririam, o prestígio reconquistado
pelo antigo...
Rasgo então?
Nisso toca o
telefone, e Rivière atende. Comunicam-lhe que num avião que estava pronto para
partir foi descoberto um problema num circuito de iluminação por montagem
defeituosa., que teve que ser refeito. Ainda não sabem quem foi o responsável.
E Rivière pensa:
Se não arrancamos o mal quando o encontramos, seja aonde for,
haverá panes nos circuitos; é um crime deixá-lo quando por acaso se descobre um
de seus instrumentos; Roblet irá embora.
E se lembra
de uma partida do correio para a Europa, quando mandou chamar o piloto antes da
decolagem, para lhe dizer:
- Você me pregou uma partida, no seu último voo. Voltou para trás
quando as previsões da meteorologia estavam boas. Você podia passar. Teve medo?
E o piloto,
surpreso mas sincero, responde que sim. E tenta explicar que no lugar onde
estava o tempo estava ruim, não via nada, o motor começou a vibrar...
- Não. Nós o examinamos depois. Estava perfeito. Mas sempre se acha
que o motor vibra quando se tem medo.
- E quem não teria tido medo? As montanhas me dominavam. Quando
tentei ganhar altitude, encontrei uma turbulência forte. O senhor sabe, quando
não se vê nada, a turbulência... Em vez de subir, caí cem metros. Já não
conseguia ver o giroscópio, nem os manômetros. Parecia que o meu motor perdia
rotação, que se aquecia, que a pressão do óleo caía... Tudo isso no escuro,
como uma doença. Fiquei bem contente de rever uma cidade iluminada.
- Você tem imaginação demais. Vá!
E Rivière
fica pensando: “Esse é o mais corajoso de
meus pilotos. O que ele conseguiu naquela noite foi muito belo, mas eu o estou
salvando do medo...”
E depois, “Para se fazer estimar, basta queixar-se. Eu
não me queixo, ou escondo isso. E no entanto gostaria muito de me rodear da
amizade e da doçura humanas. Um médico, em seu trabalho, as encontra. Mas eu
sirvo aos acontecimentos. É preciso que eu forje os homens para que os sirvam.
Como sinto bem esta lei obscura, à noite, defronte da minha escrivaninha, vendo
as folhas das rotas. Se eu me deixar ir, se deixar os acontecimentos bem
ordenados seguirem seu curso, então, misteriosamente, nascem os incidentes. É
como se somente a minha vontade impedisse o avião de se romper em voo, ou a
tempestade de retardar o correio a caminho. Me surpreendo, às vezes, com meu
poder”.
E pensa no
piloto: “Eu o salvo do medo. Não era ele
que eu atacava, era, através dele, essa resistência que paralisa os homens
frente ao desconhecido. Se eu o escutar, se eu lamentar com ele, se eu tomar a
sério sua aventura, ele acreditará que volta de um país de mistério, e é só do
mistério que se tem medo. É preciso que não exista mais o mistério. É preciso
que os homens tenham descido por esta cisterna sombria, e que voltem digam que
não encontraram nada. É preciso que este homem desça ao mais íntimo coração da
noite, em sua espessura, e sem nem mesmo uma lampadazinha de mineiro, que não
ilumina mais do que as mãos ou a asa, mas afasta da largura dos ombros o
desconhecido.”
Aí, nesta
página, está toda a essência de Rivière / Daurat. O chefe que por um objetivo
maior luta contra sua própria natureza humana e seu sentimento de justiça.
---
o ---
O correio da
Patagônia aborda a tempestade, e Fabien resolve atravessá-la porque os
relâmpagos revelavam frentes de nuvens extensas demais para serem contornadas. Em
pouco tempo se vê encerrado por ela. Resolve descer um pouco, mas encontra
turbulência e continua sem conseguir ver o solo. Pede ao rádio navegador que
pergunte às outras escalas como está o tempo, e todas respondem que há
tempestade. Manda perguntar à que ficou para trás se pode voltar, e a resposta
é a mesma. Manda dizer a Buenos Aires: “Estamos
fechados por todos os lados, a tempestade se estende por um milhar de quilômetros, já
não vemos mais nada, o que devemos fazer?”
Mas não
recebe resposta, a tempestade que aumenta corta as comunicações da rádio
telegrafia e derruba as linhas telegráficas de terra. Estão sozinhos. E não têm
mais do que uma hora e quarenta de combustível. Depois disso, de um jeito ou
outro, descerão.
---
o ---
Em terra,
Rivière tem que decidir se atrasa o correio para a Europa, esperando notícias
do da Patagônia, ou se o faz decolar logo que chegar o do Paraguai. O caminho
para o norte está aberto, para lá não há tempestade, é uma noite clara. E um
desastre ao sul seria um golpe seríssimo na ideia do correio noturno. Ao mesmo
tempo, ele tira da situação uma lição, seria preciso ter postos de observação mais
ao oeste que o pudessem ter avisado a tempo do ciclone que transpôs os Andes. Isso
será feito e poderá evitar novos problemas como esse, mas não mais o que já
está acontecendo. Também ele está sem comunicação com as escalas. E a
tempestade já se aproxima pouco a pouco de Buenos Aires...
“A mulher de Fabien telefona. Na noite de cada volta ela calculava
o trajeto do correio da Patagônia: - Decola de Trelew... e voltava a dormir.
Depois acordava de novo: - Deve estar chegando a San Antonio, já deve estar
vendo suas luzes... e aí se levantava, afastava as cortinas e examinava o céu:
- Todas essas nuvens o atrapalham... Algumas vezes a lua passeava no céu como
um pastor. Então a moça voltava a se deitar, reassegurada por essa lua e essas
estrelas, estes milhares de presenças junto ao seu marido. Lá pela uma hora,
ela o sentia próximo: - Não deve mais estar longe, já deve estar vendo Buenos
Aires... Então se levantava, e preparava a refeição dele, um café bem quente...
(...) quando era uma e quinze, tudo estava pronto, e então ela telefonava: -
Fabien já aterrou?”
Mas desta
vez em vez de responder como de costume a secretária passa o telefone para o
chefe do escritório, que não sabe dizer quando ele chegará. A última notícia é
que havia decolado de Commodore às dezenove e trinta para Trelew. Mas ela sabe
que de Commodore a Trelew são duas horas de voo, e ele já está voando há mais
de seis horas. E insiste até conseguir falar com Rivière.
Rivière
também não tem notícias, e em vão tenta acalmá-la, e sabe que não poderá
responder às suas perguntas:
“Ele tinha chegado àquela fronteira onde se coloca, não o problema
de uma pequena aflição particular, mas aquele mesmo da ação. À frente de
Rivière se erguia, não a mulher de Fabien, mas um outro sentido da vida.
Rivière não podia senão escutar, lamentar esta pequena voz, este canto tão
triste, e no entanto inimigo. Porque nem a ação, nem a felicidade individual admitem
serem partilhadas: Estão em conflito. (...) Uma vez, um engenheiro tinha dito a
Rivière, quando se inclinavam sobre um ferido, junto de uma ponte em
construção: - Esta ponte vale o preço de um rosto destroçado? Nenhum dos
camponeses que usavam a estrada teria aceito, para evitar um desvio até a ponte
seguinte, mutilar este rosto assustador. E, no entanto, construímos pontes...”
---
o ---
Fabien já
não sabe onde estão. A tempestade joga o avião para cima e para baixo. Já não
distinguia a massa do céu da massa da terra. Perdido na escuridão, quando a
altitude cai para quinhentos metros, pensa: “É
a altura das colinas”. E decide lançar seu único foguete de sinalização
para tentar achar qualquer lugar para aterrissar. Mas quando o foguete se
acende, ele ilumina uma planície e se apaga ao cair nela: estavam sobre o mar.
O ciclone os tinha desviado do curso.
O piloto
vira para o oeste e voa às cegas. De repente, quando estava pronto a desistir,
vê estrelas por um rasgão nas nuvens lá em cima. E, sabendo muito bem que isso
é uma armadilha, começa a subir.
Uma
armadilha porque sabe que vai subir acima das nuvens e atrás dele o rasgão se fechará e ele não verá nada
além delas e não saberá o que está abaixo.
“Vemos três estrelas num rasgão, subimos na direção delas, depois
não podemos mais descer, e ficamos por lá mordendo as estrelas...
Mas sua fome de luz é tanta que ele sobe”.
E lá em
cima, a luz da lua cheia e das estrelas transformavam as nuvens escuras em ondas
ofuscantes. A luz banhava a tripulação. Fabien olha para trás e vê o rádio
navegador sorrindo:
“- Vai melhor, exclamava ele.
Mas as vozes se perdiam no barulho do voo, só os sorrisos se
comunicavam. – Estou completamente louco, pensava Fabien, por sorrir: estamos
perdidos.
No entanto, mil braços obscuros o haviam soltado. Tinham desfeito
os laços, como os de um prisioneiro que se deixa caminhar sozinho, por algum
tempo, entre as flores.
- Belo demais, pensava Fabien. Ele errava entre as estrelas
acumuladas com a densidade de um tesouro, num mundo onde nada mais,
absolutamente nada além dele, Fabien, e de seu camarada, estava vivo. Como aqueles
ladrões das cidades fabulosas, murados na câmara dos tesouros, de onde não
saberiam mais sair. Entre as pedrarias geladas eles erravam, infinitamente
ricos e no entanto condenados”.
---
o ---
Em terra,
chega a Rivière uma mensagem, vinda do
rádio telegrafista de Commodoro Rivadávia, “transmitida
de escala em escala, avançando na noite como uma fogueira que se acende de
torre em torre de sentinela:
- Bloqueados a três mil e oitocentos acima da tempestade.
Navegamos direito ao Oeste para o interior, porque tínhamos derivado para o
mar. Abaixo de nós tudo está tampado. Não sabemos se ainda sobrevoamos o mar.
Comuniquem-nos se a tempestade se estende pelo interior.
Buenos Aires responde: - Tempestade por todo o interior. Quanto
combustível vocês ainda têm?
- Uma meia hora.”
E pouco mais
de vinte minutos depois, a mil quilômetros de Commodoro Rivadavia, Bahia Blanca
capta uma mensagem:
- Descendo. Entramos nas nuvens.
E depois, três
palavras soltas aparecem no posto de Trelew:
- ... não... ver nada...
(...) Cada segundo leva embora alguma coisa. Essa voz de Fabien,
essa risada de Fabien, esse sorriso. O silêncio ganha terreno. Um silêncio mais
e mais pesado, que se instala sobre a tripulação como o peso de um mar.
E então alguém comenta:
- Uma hora e quarenta. Último limite do combustível: é impossível
que ainda estejam no ar.”
---
o ---
E essa é
toda a história, pequena, simples. Mas a essência do livro não é a história, é
a descrição primorosa dos estados de alma e da psicologia dos envolvidos.
Escrita por Saint-Exupéry com mão de mestre, que não precisava inventar nada porque
viveu primeiro o papel de Fabien e teve depois nos ombros o peso enorme da
responsabilidade de Rivière.
“Voo Noturno”
ganhou o Prix Fémina, que distingue a
cada ano a melhor obra literária na língua francesa, no ano em que foi
publicado. Mas foi preciso esperar “Terra dos Homens” para que Saint-Exupéry
conquistasse o lugar que merecia entre os grandes escritores.
Quem sabe,
em próximas conversas, falaremos ainda de mais livros seus...
Meu caro Wilson,
ResponderExcluirMais do que um livro, um fantástico e poderoso depoimento de quem viveu o início da aviação e suas dificuldades de localização quando em voo.
Relato impressionante, que me prendeu a atenção, pois escreveste em forma de suspense o acontecido com o avião que lutava contra a tempestade, somado às angústias de quem estava em terra aguardando-o.
Indiscutivelmente, afora ser um livro muito bem escrito, com uma narrativa extraordinária, ainda tem o seu valor histórico, pois remonta aos primórdios do correio aéreo, o início de se receber as correspondências e encomendas muito mais rápido, ensejando o desenvolvimento da comunicação de maneira abrangente, pois foram com essas imensas dificuldades de comunicação que os aparelhos meteorológicos, altímetros, bússola e mais tarde o radar, que a aviação avançou, assim como observar o seu voo em terra.
Também a existência de mais aeroportos, outros meios eficientes e eficazes de sinalização, que tiveram uma notável contribuição para seu progresso depois da Segunda Guerra Mundial.
Agora, convenhamos, quem foi piloto nesta época era mais do que corajoso, mas um sujeito meio doido, com ímpetos suicidas!
Parabenizo o brilhante artigo de tua autoria.
Excepcionalmente bem escrito, detalhado, informativo, e nos concedendo conhecer esse grande escritor Saint-Exupéry, até então autor de um livro apenas para o grande público, lamentavelmente, O Pequeno Príncipe!
Nada mais importante do que termos um blog cultural, onde nossos horizontes se expandem de forma que jamais imaginaríamos a respeito de artes as mais variadas, tais como literatura, música, pinturas, esculturas, cinema, além de crônicas belíssimas e com mensagens impressionantes sobre a vida!
Agradeço penhoradamente fazer parte deste oásis cultural, desse espaço importante àquelas pessoas que apreciam qualidade, que desejam ainda aprender, que querem ampliar seus conhecimentos, e compartilhar com o grupo as suas experiências e circunstâncias de suas existências!
Um grande e forte abraço, Mano.
Saúde e paz.
Excelente semana que ora inicia.
Chicão,
ExcluirRealmente eles foram pioneiros, foram eles que abriram o caminho para a real utilidade dos aviões, antes pouco pais do que primitivas armas de guerra, de transportar cargas e passageiros. Mas para que isso virasse realidade, quanta bravura, quanto esforço, quanto sacrifício! Hoje quando viajamos tudo nos parece tão fácil... Reclamamos das demoras, dos espaços apertados, do lanchinho a bordo, deveríamos nos lembrar desses antigos tempos e desses homens e mulheres que desbravaram as rotas e criaram a estrutura para nossas viagens.
Fico feliz de você ter gostado, e você não tem que agradecer por fazer parte desse espaço, lembre-se de que foram suas crônicas, junto com as viagens do Moacir, que inauguraram a nova etapa do nosso blog.
Um abraço do Mano
Grande Wilson,
ResponderExcluirPara velhos "meninos passarinhos com vontade de voar" que economizavam para comprar os aviões da Revell – afinal a mesada tinha que acomodar também os gibis, os milkshakes do Bob’s e os cachorros quentes da Geneal (rsrs) - e que ainda hoje esquecem da vida assistindo filminhos sobre aviação na Netflix e/ou no Youtube, não tem como não gostar de Saint-Ex e desses belos posts que você nos tem teclado. Não li o livro mas você conseguiu comunicar a excitação do voo, a fragilidade do avião à mercê dos elementos, a adrenalina da batalha elementar com as nuvens e o vento, o perigo à espreita. Porém creio que o cerne da conversa de hoje seja o que significa ser um piloto pioneiro ajudando a tornar realidade os voos noturnos e a implantar as primeiras rotas postais. Esses homens estavam mudando o vasto mundo para sempre, tornando-o menor e mais perto e tinham plena consciência disso quando vestiam suas jaquetas de couro, subiam nos seus cockpits, rugiam suas hélices e apontavam o nariz dos seus aviões para a vasta escuridão do céu noturno: seu futuro, nosso presente. Pense em um belo e verdadeiro propósito!
Chama a atenção a sua descrição do preço a pagar pelo diretor do show, pelo líder que propõe a rota, o curso e o horizonte, que escala os atores e que, “impiedosamente”, vai afastando da ribalta aqueles que não aprendiam que só vale a pena viver “construindo o homem e a sua alma através da dedicação, expressa pela ação, a um objetivo comum situado fora dele", como você tão magistralmente teclou. Não tem como não compartilhar o peso da responsabilidade e da solitária angústia do Rivière, “gostando em silêncio”, mandando “homens que valiam mais do que ele” muitas vezes para suas mortes ou para a morte em vida, como foi o caso do velho mecânico Roblet. Afinal alguém tem que ficar na terra firme fazendo o trabalho duro, “arrancando o mal” seja ele um velho e querido companheiro que a idade tornara profissionalmente incompetente ou o maior inimigo de um piloto, o medo , “essa resistência que paralisa os homens frente ao desconhecido”.
Quando chegamos ao inevitável, ao fim da conversa, ao momento definitivo do Fabien no qual “os laços são desfeitos”, ao país desconhecido do qual “não se pode descer” e onde se fica “ mordendo as estrelas” a gente entende que, so sorry, essa não é uma história pequena. Ela é longa e antiga, é aquela de criaturas doidas de pedra que há milênios avançam, na certeza só da incerteza de chegar aos horizontes e às estrelas que só riscam as retinas de seus olhos. De seres que seguem em frente na angústia de aceitar os limites e de saber que já se encontram além de seus tempo e espaço. De uma espécie estranha cuja “fome de luz é tanta que sobe", que voa alto, perdendo seus pedaços mas criando o que foi capaz de imaginar, na incessante renovação dos seus desejos de viver/morrer tentando chegar onde – quem sabe? – a vida possa finalmente fazer sentido e se plenificar. Essa é a emocionante história humana e, pelamordedeus!, ao contá-la tão bem, Antoine de Saint- Exupéry e você têm que ser lidos. Parabéns e obrigado!
Moacir, seu comentário resume tão bem quanto a minha resenha o espírito do livro, mesmo sem você tê-lo lido. Então não tenho o que responder a ele senão dizer que virou, também, parte do que procurei contar. Eu fui também um desses "meninos passarinhos com vontade de voar" que compensava a falta das asas de verdade com as varetas de balsa, as folhas de papel japonês, o dope para entelar e depois seguindo no céu o voo dos aeromodelos que, algumas vezes, como o avião do Fabien, não sobreviviam aos riscos da viagem...
ExcluirObrigado e um abraço.
Magnífico resumo do segundo Romance do grande Escritor SAINT-EXUPÉRY ( Voo Noturno - 1931), de nosso Editor/Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR.
ResponderExcluirNo final dos anos 20' do Século passado, a Cia AeroPostale de Toulouse-FR que fazia a Linha França-Metropolitana Império Francês da África, estendeu-se a toda Costa Atlântica da América do Sul, de ponta a ponta. Buenos Aires- RA era a Filial que recebia os voos do Sul, (Patagônia), do Oeste ( Santiago- Chile onde tinham que atravessar a Cordilheira dos Andes ), e do Norte (Assunção - Paraguai), e dali encaminhava o Correio/Passageiros para o Norte até a França pela Costa Leste da América do Sul.
Nos Anos 20' começou-se a voar à noite, ( sem instrumentos), para o Correio levar uma vantagem nítida sobre os outros meios de transporte. Numa época em que mesmo com tempo bom (diurno e noturno) tudo dependia do Motor, de uma bomba de óleo, de água, de gasolina, de um circuito elétrico, de uma bateria, etc, da aeronave enfim, quando de tempestades e ciclones, com perda total da visibilidade, tudo dependia das estimativas do Navegador. SAINT-EXUPÉRY sendo Piloto faz o elogio do Piloto FABIEN, mas os verdadeiros heróis dos voos noturnos antes dos Instrumentos, a meu ver, são os Navegadores que sobre a carta, levando em conta a Velocidade da Aeronave, seu Rumo, o tempo e o Vento Dominante externo que produz uma deriva, etc, "estima a Rota" para chegar ao destino. E se o Cap. FABIEN nesse famoso Voo Noturno em meio a tempestade Ciclônica, sem visibilidade alguma, tendo em certo trecho derivado demasiado para Leste sobrevoando o Oceano Atlântico, conseguiu chegar a Buenos Aires-RA, foi graças ao seu Navegador que lhe passava o Rumo, de tempo em tempo: Tantos graus a Bombordo, agora tantos graus a Estibordo......nessa época em que não havia ainda o voo por instrumentos, mas só Visual.
Lembra o Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR, que SAINT-EXUPÉRY foi genial em traçar o que ia no íntimo dos Pilotos e principalmente dos Chefes/Administradores da Cia AeroPostale, sabendo que por mais que fizessem para minimizarem, os riscos, esses, pela tecnologia da época
ainda eram altíssimos. Muitos Pioneiros pereceram.
Esperamos as outras análises dos principais Livros de SAINT-EXUPÉRY, de quem tanto apreciamos a Obra.
Abração.
Caro Bortolotto, que apesar de todos os meus esforços não perde a mania de me chamar de "senhor", você tem toda a razão. Tão importante quanto o esforço dos pilotos era o trabalho dos navegadores com a carta, a bússola e o cronômetro, calculando as rotas, estimando os desvios, conferindo a posição pelas estrelas, quando podiam, para fazer com que chegassem a bom termo. Os primeiros aviões dos correios eram monoplaces, mas quando começaram os voos noturnos e, mais ainda, transportando passageiros, o piloto já não tinha como fazer tudo isso enquanto pilotava e o navegador, que também operava o aparelho de rádio telegrafia, se tornou seu companheiro indispensável. Mas ainda assim a natureza podia destruir os melhores esforços dos dois, como o ciclone que cobrindo todo o solo e interrompendo as comunicações provocou a perda final do aparelho e da tripulação do correio da Patagônia.
ExcluirSim, os riscos eram altíssimos, eles sabiam disso e mesmo assim voaram e muitos ficaram pelo caminho. Que nos lembremos sempre deles quando voarmos ou esperarmos a chegada do voo que traz alguém querido.
Um abraço do Mano
1)O tempo não espera ninguém. Tudo parece que é tão rápido como o voo de um avião.
ResponderExcluir2)Eu li a informação sobre o artigo do Mano. Gostei dos informes e das reflexões
3) "Mas a essência do livro não é a história, é a descrição primorosa dos estados de alma e da psicologia dos envolvidos."
4)Mas uma breve recaída na asma me impediu de postar a tempo, então fiz um outro tempo.
5)O tempo flui...
Antonio, entre amigos sempre é tempo de fazer outro tempo.
ExcluirObrigado e melhoras na asma, sua companheira de tanto tempo...
Um abraço do
Mano
Estimado Mano
ResponderExcluirConheci "O Pequeno Príncipe" nas férias que passava em Goiânia, quando aluno do Colégio Naval, em Angra dos Reis. Minhas três irmãs, um pouco mais velhas, eram apaixonadas pelo livro e citavam trechos a toda hora, em uma competição de quem sabia mais sobre ele. Além disso, ele era mencionado por todas as concorrentes aos concursos de Miss Brasil, inclusive uma goiana, de família amiga, que havia sido eleita para esse "posto", e que esnobava a ralé feminina da cidade.
Assim, adolescente, li o livro, não entendi nada, classifiquei como "de mulherzinha" e arquivei...
Ainda bem que,nessa altura da vida, você está abrindo meus olhos para a notável qualidade dos outros textos de autoria de Saint-Exupéry.
Uma das caraterísticas que mais me impressionou neles é a semelhança das limitações vivida pelos seus pilotos, naquela época, com os submarinistas do mesmo período, lutando com a precariedade e riscos decorrentes de soluções tecnológicas rudimentares em seus equipamentos. Eles eram verdadeiros heróis apaixonados pelos desafios vividos.
Um forte abraço
Domingos
Caro Domingos,
ExcluirSe meus artigos sobre Saint-Exupéry tiverem o condão de mostrar a você e possivelmente a alguns outros leitores uma nova e mais tocante imagem do escritor e dos seus livros (inclusive do Pequeno Príncipe) já estarão mais do que justificados.
Os pioneiros que exploram novas fronteiras, como os aviadores do tempo dele, os antigos submarinistas, os primeiros (e talvez por muito tempo ainda os atuais) astronautas, foram e serão sempre aqueles que têm a visão de um novo horizonte e a coragem de persegui-lo mesmo que isso possa lhes exigir a última dedicação. A nós que trilhamos depois, mais seguros, os caminhos que eles abriram resta sermos eternamente gratos por seu esforço e seus sacrifícios (que alguns, como você, conhecem mais de perto).
Um grande abraço do Mano.