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12/03/2018

A noite do aviador


Didier Daurat (imagem www.fandavion.free.fr)


Wilson Baptista Junior
A “Linha”, que era como Saint-Exupéry e seus companheiros sempre chamaram a Aéropostale, desde seu início em que era simplesmente a linha de correio aéreo Toulouse-Alicante-Rabat, foi construída para permitir que a correspondência pudesse ser enviada por avião, que viajava mais depressa do que os navios e trens que a transportavam época.
Didier Daurat, piloto de guerra, que tinha começado fazendo voos de reconhecimento, foi ferido pelos caças inimigos, saiu do hospital e voltou à linha de frente como piloto de caça, condecorado com a Croix de Guerre e a Légion D’Honneur, no início de setembro de 1919 foi o primeiro a completar o voo de Toulouse, na França, até Rabat, no Marrocos, levando a correspondência. Tornou-se em pouco tempo chefe de escala (chef d’aéroplace) em Málaga, encarregado de estruturar lá uma oficina completa de manutenção e armazém de peças dos aviões, e por seu desempenho já no ano seguinte foi promovido ao cargo de diretor de operações da Aéropostale.
Um grande problema na Linha, que nessa época estava em precárias condições financeiras e de gestão, era que como os pilotos, no início, só voavam de dia, pela falta de infraestrutura para navegação noturna, a cada noite o tempo ganho durante o dia era perdido para os trens e navios que continuavam a viajar enquanto os aviões estavam parados.
Para compensar o custo mais alto da aviação era indispensável recuperar estes atrasos. Mas fazer voos noturnos regulares, enfrentando muitas vezes péssimas condições de tempo, com a comunicação entre aviões e bases apenas por radiotelegrafia, com dados meteorológicos rudimentares era considerado muito perigoso. Daurat acabou convencendo seus colegas de direção que era preciso tornar isso possível, apesar dos inevitáveis sacrifícios que certamente ocorreriam no início.
Começaram, cuidadosamente, por fazer os voos decolarem apenas uma hora antes do amanhecer e prosseguirem até uma hora após o por do sol, e à medida em que as experiências deram certo foram progressivamente estendendo este tempo até terem confiança para voar a qualquer hora da noite.
“Voo Noturno” (Vol de Nuit), o segundo romance de Saint-Exupéry, conta a história de um voo destes, onde os correios vindos do Chile, do Paraguai e da Patagônia deveriam se encontrar em Buenos Aires para entregar o correio e os passageiros ao avião que prosseguiria a rota com destino à Europa.
O personagem principal do livro é o chef d’aéroplace de Buenos Aires, Rivière, que é intencionalmente um exato retrato de Daurat, a quem, aliás, o autor dedicou o livro. Saint-Ex nesse romance colocou propositalmente o diretor de operações, que era seu chefe e quem ele muito admirava, no posto que ele próprio ocupava quando da abertura e consolidação das rotas sul americanas, e escreveu portanto com perfeito conhecimento tanto do trabalho como do personagem.
Fabien, o piloto do voo da Patagônia, por sua vez, representa todos os pilotos da Linha que realizaram os voos noturnos, inclusive os que ficaram pelo caminho.
Toda a construção do livro, onde o voo fornece o fio condutor, é feita em volta do profundo dilema do chefe que estima e preza a vida dos seus pilotos mas tem o objetivo maior de fazer com que eles sejam capazes de assegurar o êxito do correio, que para ele era o alvo a quem eles todos dedicavam seus esforços e suas vidas.
Já aparece aqui um tema recorrente na obra de Saint-Ex e que seria mais tarde magistralmente exposto no seu “Cidadela”, o da construção do homem e de sua alma através da dedicação, expressa pela ação, a um objetivo comum situado fora dele. Rivière é o condutor que propõe esse objetivo e vai depurando impiedosamente sua equipe para que só fiquem os que alcançam essa condição.
O autor não analisa nem explica o seu Rivière / Daurat; o leitor vai descobrindo o personagem, como escreveu Pierre Chévrier (pseudônimo de Nelly de Vogüé) “da mesma maneira que os pilotos o descobrem”, por suas palavras e suas ações.
O livro começa com Fabien, vindo da Patagônia, se aproximando da escala de San Julian, no final da tarde, e ouvindo do seu rádio-navegador que “há tantas tempestades que os raios saturam meus fones. Pernoitaremos em San Julian?”
Mas Fabien via que o céu “estava calmo como um aquário e todas as escalas à frente avisavam: Céu claro, sem vento”. E responde: “Continuaremos”.
Depois da escala e da nova decolagem, a escuridão da noite vai chegando, o piloto já não consegue distinguir as leituras dos instrumentos, e acende a débil iluminação vermelha que vai lhe permitir ver sem ficar ofuscado. Lá em baixo, a terra vai ficando indistinta, pontilhada apenas pelas luzes distantes das cidades. Tudo está em ordem, o giro do motor está firme e se transmite à estrutura do avião e às mãos do piloto como uma pulsação de vida; o piloto se acomoda melhor, tranquilamente, para as horas até a próxima escala. E com tudo em ordem começa a profunda meditação do voo, que só os pilotos conhecem.
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Em terra, Rivière, responsável por toda a rede, caminha pelo campo de aviação e espera os três aviões que voam para Buenos Aires. Enquanto os três não estiverem em terra à sua frente seu dia de trabalho não estará terminado:
Minuto por minuto, à medida que chegam os telegramas, Rivière tem a consciência de desprender alguma coisa das mãos da sorte, de reduzir a parcela do desconhecido, de rebocar suas tripulações para fora da noite e até a margem.
O avião do Chile aterrissa. Quando chegarem os outros dois o trabalho das tripulações estará feito, mas Rivière não descansará; porque então decolará o voo para a Europa. Ele sente que seu trabalho nunca terá fim...
O piloto do Chile conta da tempestade que enfrentou ao atravessar os Andes. Um ciclone do Pacífico que geralmente nunca ultrapassava as montanhas, mas que dessa vez prossegue terra adentro.
Há um personagem do livro, o inspetor Robineau, que Saint-Ex usa em oposição a Rivière para melhor mostrar o comportamento deste último. Robineau é um funcionário extremamente consciencioso, analisa os livros à procura de erros, confere os registros de chegadas e partidas de cada piloto e faz verificar os reparos feitos na oficina à cata de defeitos, mas não conhece da aviação nada mais do que isso. É uma pessoa meticulosa, solitária e introvertida.
Quando Pellerin, o piloto do Chile, vai para a cidade, Robineau, terminado seu horário de trabalho, o acompanha e sua admiração pelo feito do piloto que venceu o ciclone faz com que ele vença por um momento sua timidez e o convide para jantar. Pellerin aceita e quando estão se preparando para ir jantar Rivière manda buscar o inspetor no hotel.
Nada há nesse momento que reclame o trabalho do inspetor, mas quando ele chega ao campo de aviação Rivière o chama e pergunta se se tornou amigo de Pellerin. E quando o inspetor diz que sim, Rivière o repreende, dizendo no começo que não há mal nisso mas...
- Só que você... Você é o chefe.
- Sim, responde Robineau.
- E deve se manter no seu papel.
- Você talvez tenha que mandar este piloto, na próxima noite, decolar para o perigo. E ele terá que obedecer.
- Sim, responde o outro.
-Você dispõe quase que da vida deles, e de homens que valem mais do que você. Isto é grave. Se obedecerem a você por amizade, você os estará enganando. Você não tem, por si próprio, direito a nenhum sacrifício. E se eles acreditarem que sua amizade lhes evitará certas tarefas, você os estará enganando também. Será preciso que eles o obedeçam.
E Rivière manda Robineau infligir uma penalidade a Pellerin. E como não há razão para tanto, manda que invente qualquer uma. E ante a incompreensão do inspetor, Rivière lhe diz:
- Finja que compreende, Robineau. Ame os seus comandados. Mas sem lhes dizer...
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O rádio-navegador do avião da Patagônia, depois de uma hora de voo, começa a perceber que as nuvens escurecem e cobrem as estrelas. E já não se enxerga o solo. Mas o piloto continua, rumo aos relâmpagos distantes. Clarões aparecem também aos lados, e apesar da sua confiança no piloto o navegador se preocupa.
--- o ---
No seu escritório no campo de aviação Rivière recebe os telegramas rotineiros de suas escalas. Mas nenhuma tem notícia dos dois aviões que faltam, a tempestade bloqueia a rádio telegrafia.
Revisa e assina papéis. E recorda a entrevista da véspera com o velho Roblet, um dos mecânicos mais antigos, que pela primeira vez cometeu um erro que poderia comprometer um avião, felizmente detectado a tempo, e que ele tem que retirar da oficina. O homem que montou o primeiro avião da Argentina, que há vinte anos trabalha nos hangares, e que emocionado recusou ser transferido das oficinas para um posto de manobra para não perder sua dignidade frente aos companheiros. E Rivière, que estima o velho companheiro, revê suas mãos calejadas trêmulas de angústia e pensa:
Bastaria dizer: - Está bem, está bem. Fique. E sonha com o caudal de alegria que desceria sobre as velhas mãos. E essa alegria que diriam, que iam dizer, não esse rosto, mas essas velhas mãos de operário lhe pareceu a coisa mais bela do mundo. Vou rasgar este papel? E a família do velho, ao voltar para casa à noite, e seu orgulho modesto:
- Então? Te conservaram?
- Pois claro! Fui eu que fiz a montagem do primeiro avião da Argentina!
E os jovens colegas que já não ririam, o prestígio reconquistado pelo antigo...
Rasgo então?
Nisso toca o telefone, e Rivière atende. Comunicam-lhe que num avião que estava pronto para partir foi descoberto um problema num circuito de iluminação por montagem defeituosa., que teve que ser refeito. Ainda não sabem quem foi o responsável. E Rivière pensa:
Se não arrancamos o mal quando o encontramos, seja aonde for, haverá panes nos circuitos; é um crime deixá-lo quando por acaso se descobre um de seus instrumentos; Roblet irá embora.
E se lembra de uma partida do correio para a Europa, quando mandou chamar o piloto antes da decolagem, para lhe dizer:
- Você me pregou uma partida, no seu último voo. Voltou para trás quando as previsões da meteorologia estavam boas. Você podia passar. Teve medo?
E o piloto, surpreso mas sincero, responde que sim. E tenta explicar que no lugar onde estava o tempo estava ruim, não via nada, o motor começou a vibrar...
- Não. Nós o examinamos depois. Estava perfeito. Mas sempre se acha que o motor vibra quando se tem medo.
- E quem não teria tido medo? As montanhas me dominavam. Quando tentei ganhar altitude, encontrei uma turbulência forte. O senhor sabe, quando não se vê nada, a turbulência... Em vez de subir, caí cem metros. Já não conseguia ver o giroscópio, nem os manômetros. Parecia que o meu motor perdia rotação, que se aquecia, que a pressão do óleo caía... Tudo isso no escuro, como uma doença. Fiquei bem contente de rever uma cidade iluminada.
- Você tem imaginação demais. Vá!
E Rivière fica pensando: “Esse é o mais corajoso de meus pilotos. O que ele conseguiu naquela noite foi muito belo, mas eu o estou salvando do medo...”
E depois, “Para se fazer estimar, basta queixar-se. Eu não me queixo, ou escondo isso. E no entanto gostaria muito de me rodear da amizade e da doçura humanas. Um médico, em seu trabalho, as encontra. Mas eu sirvo aos acontecimentos. É preciso que eu forje os homens para que os sirvam. Como sinto bem esta lei obscura, à noite, defronte da minha escrivaninha, vendo as folhas das rotas. Se eu me deixar ir, se deixar os acontecimentos bem ordenados seguirem seu curso, então, misteriosamente, nascem os incidentes. É como se somente a minha vontade impedisse o avião de se romper em voo, ou a tempestade de retardar o correio a caminho. Me surpreendo, às vezes, com meu poder”.
E pensa no piloto: “Eu o salvo do medo. Não era ele que eu atacava, era, através dele, essa resistência que paralisa os homens frente ao desconhecido. Se eu o escutar, se eu lamentar com ele, se eu tomar a sério sua aventura, ele acreditará que volta de um país de mistério, e é só do mistério que se tem medo. É preciso que não exista mais o mistério. É preciso que os homens tenham descido por esta cisterna sombria, e que voltem digam que não encontraram nada. É preciso que este homem desça ao mais íntimo coração da noite, em sua espessura, e sem nem mesmo uma lampadazinha de mineiro, que não ilumina mais do que as mãos ou a asa, mas afasta da largura dos ombros o desconhecido.”
Aí, nesta página, está toda a essência de Rivière / Daurat. O chefe que por um objetivo maior luta contra sua própria natureza humana e seu sentimento de justiça.
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O correio da Patagônia aborda a tempestade, e Fabien resolve atravessá-la porque os relâmpagos revelavam frentes de nuvens extensas demais para serem contornadas. Em pouco tempo se vê encerrado por ela. Resolve descer um pouco, mas encontra turbulência e continua sem conseguir ver o solo. Pede ao rádio navegador que pergunte às outras escalas como está o tempo, e todas respondem que há tempestade. Manda perguntar à que ficou para trás se pode voltar, e a resposta é a mesma. Manda dizer a Buenos Aires: “Estamos fechados por todos os lados, a tempestade se estende por um milhar de quilômetros, já não vemos mais nada, o que devemos fazer?”
Mas não recebe resposta, a tempestade que aumenta corta as comunicações da rádio telegrafia e derruba as linhas telegráficas de terra. Estão sozinhos. E não têm mais do que uma hora e quarenta de combustível. Depois disso, de um jeito ou outro, descerão.
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Em terra, Rivière tem que decidir se atrasa o correio para a Europa, esperando notícias do da Patagônia, ou se o faz decolar logo que chegar o do Paraguai. O caminho para o norte está aberto, para lá não há tempestade, é uma noite clara. E um desastre ao sul seria um golpe seríssimo na ideia do correio noturno. Ao mesmo tempo, ele tira da situação uma lição, seria preciso ter postos de observação mais ao oeste que o pudessem ter avisado a tempo do ciclone que transpôs os Andes. Isso será feito e poderá evitar novos problemas como esse, mas não mais o que já está acontecendo. Também ele está sem comunicação com as escalas. E a tempestade já se aproxima pouco a pouco de Buenos Aires...
“A mulher de Fabien telefona. Na noite de cada volta ela calculava o trajeto do correio da Patagônia: - Decola de Trelew... e voltava a dormir. Depois acordava de novo: - Deve estar chegando a San Antonio, já deve estar vendo suas luzes... e aí se levantava, afastava as cortinas e examinava o céu: - Todas essas nuvens o atrapalham... Algumas vezes a lua passeava no céu como um pastor. Então a moça voltava a se deitar, reassegurada por essa lua e essas estrelas, estes milhares de presenças junto ao seu marido. Lá pela uma hora, ela o sentia próximo: - Não deve mais estar longe, já deve estar vendo Buenos Aires... Então se levantava, e preparava a refeição dele, um café bem quente... (...) quando era uma e quinze, tudo estava pronto, e então ela telefonava: - Fabien já aterrou?”
Mas desta vez em vez de responder como de costume a secretária passa o telefone para o chefe do escritório, que não sabe dizer quando ele chegará. A última notícia é que havia decolado de Commodore às dezenove e trinta para Trelew. Mas ela sabe que de Commodore a Trelew são duas horas de voo, e ele já está voando há mais de seis horas. E insiste até conseguir falar com Rivière.
Rivière também não tem notícias, e em vão tenta acalmá-la, e sabe que não poderá responder às suas perguntas:
“Ele tinha chegado àquela fronteira onde se coloca, não o problema de uma pequena aflição particular, mas aquele mesmo da ação. À frente de Rivière se erguia, não a mulher de Fabien, mas um outro sentido da vida. Rivière não podia senão escutar, lamentar esta pequena voz, este canto tão triste, e no entanto inimigo. Porque nem a ação, nem a felicidade individual admitem serem partilhadas: Estão em conflito. (...) Uma vez, um engenheiro tinha dito a Rivière, quando se inclinavam sobre um ferido, junto de uma ponte em construção: - Esta ponte vale o preço de um rosto destroçado? Nenhum dos camponeses que usavam a estrada teria aceito, para evitar um desvio até a ponte seguinte, mutilar este rosto assustador. E, no entanto, construímos pontes...”
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Fabien já não sabe onde estão. A tempestade joga o avião para cima e para baixo. Já não distinguia a massa do céu da massa da terra. Perdido na escuridão, quando a altitude cai para quinhentos metros, pensa: “É a altura das colinas”. E decide lançar seu único foguete de sinalização para tentar achar qualquer lugar para aterrissar. Mas quando o foguete se acende, ele ilumina uma planície e se apaga ao cair nela: estavam sobre o mar. O ciclone os tinha desviado do curso.
O piloto vira para o oeste e voa às cegas. De repente, quando estava pronto a desistir, vê estrelas por um rasgão nas nuvens lá em cima. E, sabendo muito bem que isso é uma armadilha, começa a subir.
Uma armadilha porque sabe que vai subir acima das nuvens e atrás dele o rasgão se fechará e ele não verá nada além delas e não saberá o que está abaixo.
“Vemos três estrelas num rasgão, subimos na direção delas, depois não podemos mais descer, e ficamos por lá mordendo as estrelas...
Mas sua fome de luz é tanta que ele sobe”.
E lá em cima, a luz da lua cheia e das estrelas transformavam as nuvens escuras em ondas ofuscantes. A luz banhava a tripulação. Fabien olha para trás e vê o rádio navegador sorrindo:
“- Vai melhor, exclamava ele.
Mas as vozes se perdiam no barulho do voo, só os sorrisos se comunicavam. – Estou completamente louco, pensava Fabien, por sorrir: estamos perdidos.
No entanto, mil braços obscuros o haviam soltado. Tinham desfeito os laços, como os de um prisioneiro que se deixa caminhar sozinho, por algum tempo, entre as flores.
- Belo demais, pensava Fabien. Ele errava entre as estrelas acumuladas com a densidade de um tesouro, num mundo onde nada mais, absolutamente nada além dele, Fabien, e de seu camarada, estava vivo. Como aqueles ladrões das cidades fabulosas, murados na câmara dos tesouros, de onde não saberiam mais sair. Entre as pedrarias geladas eles erravam, infinitamente ricos e no entanto condenados”.
--- o ---
Em terra, chega a Rivière uma mensagem,  vinda do rádio telegrafista de Commodoro Rivadávia, “transmitida de escala em escala, avançando na noite como uma fogueira que se acende de torre em torre de sentinela:
- Bloqueados a três mil e oitocentos acima da tempestade. Navegamos direito ao Oeste para o interior, porque tínhamos derivado para o mar. Abaixo de nós tudo está tampado. Não sabemos se ainda sobrevoamos o mar. Comuniquem-nos se a tempestade se estende pelo interior.
Buenos Aires responde: - Tempestade por todo o interior. Quanto combustível vocês ainda têm?
- Uma meia hora.”
E pouco mais de vinte minutos depois, a mil quilômetros de Commodoro Rivadavia, Bahia Blanca capta uma mensagem:
- Descendo. Entramos nas nuvens.
E depois, três palavras soltas aparecem no posto de Trelew:
- ... não... ver nada...
(...) Cada segundo leva embora alguma coisa. Essa voz de Fabien, essa risada de Fabien, esse sorriso. O silêncio ganha terreno. Um silêncio mais e mais pesado, que se instala sobre a tripulação como o peso de um mar.
E então alguém comenta:
- Uma hora e quarenta. Último limite do combustível: é impossível que ainda estejam no ar.”
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E essa é toda a história, pequena, simples. Mas a essência do livro não é a história, é a descrição primorosa dos estados de alma e da psicologia dos envolvidos. Escrita por Saint-Exupéry com mão de mestre, que não precisava inventar nada porque viveu primeiro o papel de Fabien e teve depois nos ombros o peso enorme da responsabilidade de Rivière.
“Voo Noturno” ganhou o Prix Fémina, que distingue a cada ano a melhor obra literária na língua francesa, no ano em que foi publicado. Mas foi preciso esperar “Terra dos Homens” para que Saint-Exupéry conquistasse o lugar que merecia entre os grandes escritores.
Quem sabe, em próximas conversas, falaremos ainda de mais livros seus...

10 comentários:

  1. Francisco Bendl12/03/2018, 09:45

    Meu caro Wilson,

    Mais do que um livro, um fantástico e poderoso depoimento de quem viveu o início da aviação e suas dificuldades de localização quando em voo.

    Relato impressionante, que me prendeu a atenção, pois escreveste em forma de suspense o acontecido com o avião que lutava contra a tempestade, somado às angústias de quem estava em terra aguardando-o.

    Indiscutivelmente, afora ser um livro muito bem escrito, com uma narrativa extraordinária, ainda tem o seu valor histórico, pois remonta aos primórdios do correio aéreo, o início de se receber as correspondências e encomendas muito mais rápido, ensejando o desenvolvimento da comunicação de maneira abrangente, pois foram com essas imensas dificuldades de comunicação que os aparelhos meteorológicos, altímetros, bússola e mais tarde o radar, que a aviação avançou, assim como observar o seu voo em terra.

    Também a existência de mais aeroportos, outros meios eficientes e eficazes de sinalização, que tiveram uma notável contribuição para seu progresso depois da Segunda Guerra Mundial.

    Agora, convenhamos, quem foi piloto nesta época era mais do que corajoso, mas um sujeito meio doido, com ímpetos suicidas!

    Parabenizo o brilhante artigo de tua autoria.
    Excepcionalmente bem escrito, detalhado, informativo, e nos concedendo conhecer esse grande escritor Saint-Exupéry, até então autor de um livro apenas para o grande público, lamentavelmente, O Pequeno Príncipe!

    Nada mais importante do que termos um blog cultural, onde nossos horizontes se expandem de forma que jamais imaginaríamos a respeito de artes as mais variadas, tais como literatura, música, pinturas, esculturas, cinema, além de crônicas belíssimas e com mensagens impressionantes sobre a vida!

    Agradeço penhoradamente fazer parte deste oásis cultural, desse espaço importante àquelas pessoas que apreciam qualidade, que desejam ainda aprender, que querem ampliar seus conhecimentos, e compartilhar com o grupo as suas experiências e circunstâncias de suas existências!

    Um grande e forte abraço, Mano.
    Saúde e paz.
    Excelente semana que ora inicia.



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    1. Wilson Baptista Junior13/03/2018, 12:32

      Chicão,
      Realmente eles foram pioneiros, foram eles que abriram o caminho para a real utilidade dos aviões, antes pouco pais do que primitivas armas de guerra, de transportar cargas e passageiros. Mas para que isso virasse realidade, quanta bravura, quanto esforço, quanto sacrifício! Hoje quando viajamos tudo nos parece tão fácil... Reclamamos das demoras, dos espaços apertados, do lanchinho a bordo, deveríamos nos lembrar desses antigos tempos e desses homens e mulheres que desbravaram as rotas e criaram a estrutura para nossas viagens.
      Fico feliz de você ter gostado, e você não tem que agradecer por fazer parte desse espaço, lembre-se de que foram suas crônicas, junto com as viagens do Moacir, que inauguraram a nova etapa do nosso blog.
      Um abraço do Mano

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  2. Moacir Pimentel13/03/2018, 07:35

    Grande Wilson,
    Para velhos "meninos passarinhos com vontade de voar" que economizavam para comprar os aviões da Revell – afinal a mesada tinha que acomodar também os gibis, os milkshakes do Bob’s e os cachorros quentes da Geneal (rsrs) - e que ainda hoje esquecem da vida assistindo filminhos sobre aviação na Netflix e/ou no Youtube, não tem como não gostar de Saint-Ex e desses belos posts que você nos tem teclado. Não li o livro mas você conseguiu comunicar a excitação do voo, a fragilidade do avião à mercê dos elementos, a adrenalina da batalha elementar com as nuvens e o vento, o perigo à espreita. Porém creio que o cerne da conversa de hoje seja o que significa ser um piloto pioneiro ajudando a tornar realidade os voos noturnos e a implantar as primeiras rotas postais. Esses homens estavam mudando o vasto mundo para sempre, tornando-o menor e mais perto e tinham plena consciência disso quando vestiam suas jaquetas de couro, subiam nos seus cockpits, rugiam suas hélices e apontavam o nariz dos seus aviões para a vasta escuridão do céu noturno: seu futuro, nosso presente. Pense em um belo e verdadeiro propósito!
    Chama a atenção a sua descrição do preço a pagar pelo diretor do show, pelo líder que propõe a rota, o curso e o horizonte, que escala os atores e que, “impiedosamente”, vai afastando da ribalta aqueles que não aprendiam que só vale a pena viver “construindo o homem e a sua alma através da dedicação, expressa pela ação, a um objetivo comum situado fora dele", como você tão magistralmente teclou. Não tem como não compartilhar o peso da responsabilidade e da solitária angústia do Rivière, “gostando em silêncio”, mandando “homens que valiam mais do que ele” muitas vezes para suas mortes ou para a morte em vida, como foi o caso do velho mecânico Roblet. Afinal alguém tem que ficar na terra firme fazendo o trabalho duro, “arrancando o mal” seja ele um velho e querido companheiro que a idade tornara profissionalmente incompetente ou o maior inimigo de um piloto, o medo , “essa resistência que paralisa os homens frente ao desconhecido”.
    Quando chegamos ao inevitável, ao fim da conversa, ao momento definitivo do Fabien no qual “os laços são desfeitos”, ao país desconhecido do qual “não se pode descer” e onde se fica “ mordendo as estrelas” a gente entende que, so sorry, essa não é uma história pequena. Ela é longa e antiga, é aquela de criaturas doidas de pedra que há milênios avançam, na certeza só da incerteza de chegar aos horizontes e às estrelas que só riscam as retinas de seus olhos. De seres que seguem em frente na angústia de aceitar os limites e de saber que já se encontram além de seus tempo e espaço. De uma espécie estranha cuja “fome de luz é tanta que sobe", que voa alto, perdendo seus pedaços mas criando o que foi capaz de imaginar, na incessante renovação dos seus desejos de viver/morrer tentando chegar onde – quem sabe? – a vida possa finalmente fazer sentido e se plenificar. Essa é a emocionante história humana e, pelamordedeus!, ao contá-la tão bem, Antoine de Saint- Exupéry e você têm que ser lidos. Parabéns e obrigado!

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    1. Moacir, seu comentário resume tão bem quanto a minha resenha o espírito do livro, mesmo sem você tê-lo lido. Então não tenho o que responder a ele senão dizer que virou, também, parte do que procurei contar. Eu fui também um desses "meninos passarinhos com vontade de voar" que compensava a falta das asas de verdade com as varetas de balsa, as folhas de papel japonês, o dope para entelar e depois seguindo no céu o voo dos aeromodelos que, algumas vezes, como o avião do Fabien, não sobreviviam aos riscos da viagem...
      Obrigado e um abraço.

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  3. Flávio José Bortolotto13/03/2018, 09:52

    Magnífico resumo do segundo Romance do grande Escritor SAINT-EXUPÉRY ( Voo Noturno - 1931), de nosso Editor/Moderador Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR.
    No final dos anos 20' do Século passado, a Cia AeroPostale de Toulouse-FR que fazia a Linha França-Metropolitana Império Francês da África, estendeu-se a toda Costa Atlântica da América do Sul, de ponta a ponta. Buenos Aires- RA era a Filial que recebia os voos do Sul, (Patagônia), do Oeste ( Santiago- Chile onde tinham que atravessar a Cordilheira dos Andes ), e do Norte (Assunção - Paraguai), e dali encaminhava o Correio/Passageiros para o Norte até a França pela Costa Leste da América do Sul.
    Nos Anos 20' começou-se a voar à noite, ( sem instrumentos), para o Correio levar uma vantagem nítida sobre os outros meios de transporte. Numa época em que mesmo com tempo bom (diurno e noturno) tudo dependia do Motor, de uma bomba de óleo, de água, de gasolina, de um circuito elétrico, de uma bateria, etc, da aeronave enfim, quando de tempestades e ciclones, com perda total da visibilidade, tudo dependia das estimativas do Navegador. SAINT-EXUPÉRY sendo Piloto faz o elogio do Piloto FABIEN, mas os verdadeiros heróis dos voos noturnos antes dos Instrumentos, a meu ver, são os Navegadores que sobre a carta, levando em conta a Velocidade da Aeronave, seu Rumo, o tempo e o Vento Dominante externo que produz uma deriva, etc, "estima a Rota" para chegar ao destino. E se o Cap. FABIEN nesse famoso Voo Noturno em meio a tempestade Ciclônica, sem visibilidade alguma, tendo em certo trecho derivado demasiado para Leste sobrevoando o Oceano Atlântico, conseguiu chegar a Buenos Aires-RA, foi graças ao seu Navegador que lhe passava o Rumo, de tempo em tempo: Tantos graus a Bombordo, agora tantos graus a Estibordo......nessa época em que não havia ainda o voo por instrumentos, mas só Visual.
    Lembra o Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR, que SAINT-EXUPÉRY foi genial em traçar o que ia no íntimo dos Pilotos e principalmente dos Chefes/Administradores da Cia AeroPostale, sabendo que por mais que fizessem para minimizarem, os riscos, esses, pela tecnologia da época
    ainda eram altíssimos. Muitos Pioneiros pereceram.
    Esperamos as outras análises dos principais Livros de SAINT-EXUPÉRY, de quem tanto apreciamos a Obra.
    Abração.

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    1. Caro Bortolotto, que apesar de todos os meus esforços não perde a mania de me chamar de "senhor", você tem toda a razão. Tão importante quanto o esforço dos pilotos era o trabalho dos navegadores com a carta, a bússola e o cronômetro, calculando as rotas, estimando os desvios, conferindo a posição pelas estrelas, quando podiam, para fazer com que chegassem a bom termo. Os primeiros aviões dos correios eram monoplaces, mas quando começaram os voos noturnos e, mais ainda, transportando passageiros, o piloto já não tinha como fazer tudo isso enquanto pilotava e o navegador, que também operava o aparelho de rádio telegrafia, se tornou seu companheiro indispensável. Mas ainda assim a natureza podia destruir os melhores esforços dos dois, como o ciclone que cobrindo todo o solo e interrompendo as comunicações provocou a perda final do aparelho e da tripulação do correio da Patagônia.
      Sim, os riscos eram altíssimos, eles sabiam disso e mesmo assim voaram e muitos ficaram pelo caminho. Que nos lembremos sempre deles quando voarmos ou esperarmos a chegada do voo que traz alguém querido.
      Um abraço do Mano

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  4. 1)O tempo não espera ninguém. Tudo parece que é tão rápido como o voo de um avião.

    2)Eu li a informação sobre o artigo do Mano. Gostei dos informes e das reflexões

    3) "Mas a essência do livro não é a história, é a descrição primorosa dos estados de alma e da psicologia dos envolvidos."

    4)Mas uma breve recaída na asma me impediu de postar a tempo, então fiz um outro tempo.

    5)O tempo flui...

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    1. Antonio, entre amigos sempre é tempo de fazer outro tempo.
      Obrigado e melhoras na asma, sua companheira de tanto tempo...
      Um abraço do
      Mano

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  5. Estimado Mano
    Conheci "O Pequeno Príncipe" nas férias que passava em Goiânia, quando aluno do Colégio Naval, em Angra dos Reis. Minhas três irmãs, um pouco mais velhas, eram apaixonadas pelo livro e citavam trechos a toda hora, em uma competição de quem sabia mais sobre ele. Além disso, ele era mencionado por todas as concorrentes aos concursos de Miss Brasil, inclusive uma goiana, de família amiga, que havia sido eleita para esse "posto", e que esnobava a ralé feminina da cidade.
    Assim, adolescente, li o livro, não entendi nada, classifiquei como "de mulherzinha" e arquivei...
    Ainda bem que,nessa altura da vida, você está abrindo meus olhos para a notável qualidade dos outros textos de autoria de Saint-Exupéry.
    Uma das caraterísticas que mais me impressionou neles é a semelhança das limitações vivida pelos seus pilotos, naquela época, com os submarinistas do mesmo período, lutando com a precariedade e riscos decorrentes de soluções tecnológicas rudimentares em seus equipamentos. Eles eram verdadeiros heróis apaixonados pelos desafios vividos.
    Um forte abraço
    Domingos

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    Respostas
    1. Wilson Baptista Junior16/03/2018, 08:16

      Caro Domingos,
      Se meus artigos sobre Saint-Exupéry tiverem o condão de mostrar a você e possivelmente a alguns outros leitores uma nova e mais tocante imagem do escritor e dos seus livros (inclusive do Pequeno Príncipe) já estarão mais do que justificados.
      Os pioneiros que exploram novas fronteiras, como os aviadores do tempo dele, os antigos submarinistas, os primeiros (e talvez por muito tempo ainda os atuais) astronautas, foram e serão sempre aqueles que têm a visão de um novo horizonte e a coragem de persegui-lo mesmo que isso possa lhes exigir a última dedicação. A nós que trilhamos depois, mais seguros, os caminhos que eles abriram resta sermos eternamente gratos por seu esforço e seus sacrifícios (que alguns, como você, conhecem mais de perto).
      Um grande abraço do Mano.

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