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13/08/2017

Papai se foi.

Wilson Baptista Junior
(Hoje, Dia dos Pais, quero republicar um artigo que publiquei no dia dezesseis de janeiro de 2014)
Faz três dias. Ia dizer que quero escrever para falar um pouco dele para quem não o conheceu.
Na verdade, só quero falar para tirar um pouco desse aperto no peito e ficar um pouco dentro da lembrança de tantas horas felizes.
Papai nasceu prematuro, em 1913, e os médicos disseram que ele não ia sobreviver.
Mas a sua avó materna, com a determinação da gente brava que nasceu e viveu nos barrancos do Rio das Velhas não quis saber do que diziam os médicos e disse para sua filha e seu genro que o menino ia viver sim, porque ela ia criá-lo.
E por isso ele passou sua infância na cidade vizinha de Santa Luzia, antiga Santa Luzia do Rio das Velhas do Sabarabussu, na Rua de Trás, na casa de seus avós Mestre Augusto Freire, carpinteiro, e Dona Maria Laura Soares Freire (mas que todo o mundo conhecia como Dona Cocota), costureira e parteira.
E como queria a Vovó Cocota, ele viveu. E viveu muito.
Trabalhou desde bem cedo, como escriturário, datilógrafo, taquígrafo. Formou-se em Direito, mas nunca exerceu. Depois de formado foi ajudar o pai, Osias Baptista, o meu vovô Ziza, no cartório de registro civil, que assumiu, por concurso, quando meu avô morreu. E lá ficou por mais de quarenta anos. Como ele dizia, registrou e casou metade de Belo Horizonte, e brincava dizendo que não sabia quantos inimigos e inimigas fez por isso  :)
Dos avós e dos pais aprendeu a integridade e a bravura pessoal que eu gosto de pensar que passou para nós seus filhos.
Descendente de bandeirantes e índios, tinha orgulho do sangue kayapó que lhe corria nas veias.
Casou-se com minha mãe, Hortênsia, a querida mamãe Tentém, que morreu faltando três meses para completar cinquenta anos de casados. E daí viemos os oito filhos, três mulheres e cinco homens, e uma quantidade de netos e bisnetos.
Durante todo esse tempo, além de trabalhar muito e criar junto com Mamãe essa tropa toda, arranjou tempo para fazer uma porção de coisas interessantes.
Foi esgrimista, atirador, várias vezes campeão mineiro, foi fundador do Foto Clube de Minas Gerais, expôs fotografias no Brasil e no mundo inteiro.
Desenhista, está ainda numa das estantes lá de casa uma edição do “Livro da Jângal”, do Kipling, na tradução de Monteiro Lobato, que mandou encadernar depois de primorosamente ilustrada por ele a bico de pena e aquarela.
Na sua oficina em casa, até pouco tempo antes de morrer, fazia coisas lindas em madeira e metal. Das grandes em marcenaria às minúsculas em seu torno de joalheiro.
Quando os filhos eram pequenos, em vez dos contos de fadas inventava as histórias que contava para nós na hora de dormir, histórias lindas que depois publicou em livro, “O Macaco Juca”, também ilustrado por ele a bico de pena, onde os personagens eram os membros da família e os amigos, todos transformados em bichos das florestas brasileiras.
Depois que crescemos escrevia as histórias da família, que dizia (só meio brincando) que não podiam ser publicadas durante sua vida para evitar processos, e ao completar cem anos terminou e publicou uma novela, “A Água”, passada na Santa Luzia antiga.

Nas últimas duas décadas de sua vida os fotógrafos, arquitetos e historiadores mineiros foram redescobrindo seu grande acervo fotográfico, que ele mesmo tratava e arquivava em seus computadores (quando ele já tinha mais de setenta anos cheguei à sua casa e o encontrei programando um daqueles microcomputadores de quase trinta anos atrás - tinha aprendido sozinho), e aí voltou a expor em mostras individuais e coletivas (a última, a cuja abertura ele compareceu, ainda está aberta no Palácio das Artes) e a colaborar com arquitetos e historiadores na recuperação da memória de Belo Horizonte.
"Quadros de uma exposição..."
Na festa de seu aniversário de noventa anos conheceu uma amiga de uma de minhas irmãs, começaram a namorar e aos noventa e cinco casaram-se.
No seu aniversário de cem anos ainda teve reunidos duas centenas de seus parentes e amigos. Há pouco mais de três meses ainda conseguiu subir, contente, as escadas até nosso apartamento de terceiro andar para tomar um lanche conosco e comer as torradas com mel e canela que não deixavam que ele comesse em casa.
No Natal do ano passado, já (muito a contragosto) numa cadeira de rodas, fez questão de presidir o almoço da família, como fazia todos os anos, e fez o seu último brinde com uma taça de um dos vinhos de que tanto gostava.
Mas no dia doze de janeiro, aniversário de minha mãe, ele decidiu que já era tempo de ir se encontrar com ela. E no dia seguinte, perfeitamente lúcido, rodeado na cama pelo carinho de sua segunda mulher e de todos os seus oito filhos e filhas, a sua vontade de ferro disse ao coração que afinal podia parar de bater.
Quando o vi estendido na cama, o corpo relaxado, o rosto tranquilo, lembrei-me de uns versos de Garcia Lorca para seu amigo morto na arena, o toureiro Ignácio Sanchez Mejíias:
“Tardará mucho a nacer, se es que nace,       
un andaluz tan claro, tan rico de aventura”...
No dia seguinte foi levado para o túmulo pelos braços dos filhos e dos netos, que não quiseram que quem não gostava da cadeira de rodas fizesse seu último passeio empurrado num carrinho.



17 comentários:

  1. Mano, que delicadeza este texto. Também acredito que para nascer outro parecido vai levar tempo. Que homem excepcional! Agradeço sempre aos céus o presente e a alegria de partilhar de sua vida.

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  2. Linda crônica, Mano. Talvez não se lembre de mim como eu me lembro de vc, quando era colega de Elisa, no Pio XII. Sua casa era o único lugar que meu pai me deixava frequentar. Lá conheci D. Hortênsia, já acamada. Curti muito pingue-pongue na garagem! Como era bom estar em contato com aquele grande número de pessoas da família, além de amigos que moravam ali perto da av. Barbacena com av. Amazonas. Vc tinha uma barba enorme, era tão grande que a gente ficava encabulada...Depois cheguei a ir à casa do Seu Wilson, como eu o chamava. Uma vez levei para ele uma placa de metal (não me lembro de que material era) pois soube que ele fazia um monte de coisas com aquilo. Ele sempre tinha boas histórias para contar. Agora, quando comecei a trabalhar no Museu Histórico Aurélio Dolabela, em Santa Luzia, encontrei um acervo de fotografias dele, em exposição permanente. Lindas fotos da cidade, que chamam a atenção dos visitantes. Eu faço sempre questão de explicar quem é o fotógrafo, dizendo com empolgação que eu o conhecia desde adolescente. Uma figura incrível. Vai fazer muita falta. Mas, tenho certeza, nosso Pai maior estava precisando de um artista como ele para inventar coisas lá...Foi uma honra te-lo conhecido! Receba, em nome de todos vocês, um abraço de conforto neste momento difícil. Com carinho, Jusça.

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  3. Eduardo Garcia17/01/2014, 06:37

    Lindo Texto, sem mais.

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  4. Oi Wil
    Sinta um grande abraço
    Talvez ajude a confortar:

    Usando o lado oposto
    http://fabelem.webng.com/dicas/cartao/out-tsun.html

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  5. Andrea Boldrim19/02/2014, 23:46

    Oi Wilson, quanto tempo!
    Não acredito em coincidências, e a cada dia a vida me dá exemplos de que estou absolutamente certa.
    Em 2001, quando nos conhecemos no Ibmec, vc contou pra mim histórias incríveis sobre seu pai, inclusive sobre o livro baseado na família de vcs. Lembro-me que fiquei encantada e logo, enxerida, pedi um exemplar de presente. Pra minha imensa alegria, esse livro chegou com uma carta linda, escrita por vc, contando um pouco mais sobre ele e, na primeira página, veio a carinhosa dedicatória do macaco Simão! Lembro que o li em um dia e adorei todas as histórias ali escritas, imaginando cada personagem, cada cenário! Na época, eu nem pensava em ter filhos, mas decidi que gostaria de ler aquele livro para meu filho, caso eu o tivesse um dia.
    Saí do Ibmec, mudei de profissão e em 2006, finalmente o Lucas nasceu. O livro sempre esteve nas prateleiras do quarto dele, mas eu esperei ele crescer um pouco pra poder compreender as entrelinhas de tudo que ali era contado. Não sei porque, mas não tive a oportunidade de ler o livro junto com ele….até hoje! Resolvi que hoje finalmente eu leria algumas histórias do Macaco Juca pra ele, que confesso, estava um pouco desanimado. Ao abrir o livro, encontrei a carta de 2001 e a li. Seu animo melhorou um pouco, mas o Ipad a poucos metros parecia despertar mais seu interesse. Comecei a primeira história e ele se aninhou mais pra perto de mim. Quando percebi, estávamos na página 30 e ele já havia pedido pra ler um dos contos. Meu coração se encheu de alegria por perceber que o mesmo entusiasmo que senti havia sido transmitido a ele. Tivemos que parar por conta do horário, com a promessa de recomeçarmos amanhã à noite, e com meus carinhos em suas costas, ele adormeceu. Vim correndo pro computador pra tentar encontrá-lo e contar o ocorrido e me deparei com seu blog e o primeiro post falava sobre a partida do seu querido pai.
    Acho que fica claro que a partida dele foi somente física, pois seu legado, suas memórias serão eternizadas através dos que conviveram de perto ou dos que o conheceram através de suas obras. Tenho certeza que lerei essas mesmas histórias para meus netos e juntos iremos rir das trapalhadas do Juca, das broncas do Simão, das estripulias dos bichos todos. De onde estiver, o Macaco Simão deve estar orgulhoso por suas memórias viajarem por florestas mais distantes do que ele jamais poderia imaginar.
    Que bom que eu o reencontrei.
    Vou te mandar fotos do Lucas.
    Beijos na família
    Andréa Boldrim

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  6. Eu nao soube... Eu o conheci ja doente, no Hospital Santo Ivo, eu fui orgulhosamente fisioterapeuta dele, sou neta do Guy de Guimaraens que foi colega de escola dele, sou Patricia Alphonsus de Guimaraens, e mandei no e-mail dele algumas coisas minhas e ele me mandou coisas dele ate no Natal... sinto muitissimo... perdemos um grande homem... que assinava pra mim assim: Abacuera (Homem Velho).

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    1. Olá Patrícia,
      provavelmente já tive ocasião de me encontrar com você alguma vez acompanhando Papai ao Santo Ivo, onde vocês sempre cuidaram muito bem dele. Tenho certeza de que ele deve ter gostado de ter conhecido você e das coisas que você lhe mandou por email.
      Muito obrigado, por toda a família.
      Mano

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    2. Patrícia, me esqueci de colocar na resposta anterior, por favor nos mande seu email, pode endereçar para:
      maninhoblogger@bol.com.br
      porque temos o último livro de Papai que você talvez goste de ler.
      Um abraço do
      Mano

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  7. 1) Bela crônica, belo exemplo de vida.

    2) Feliz Dia dos Pais, para todos os Pais que escrevem e leem o ótimo blog Conversas.

    3) Bom domingo !

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    1. Wilson Baptista Junior14/08/2017, 09:54

      Obrigado, Mestre Antonio. Pelo elogio à crônica e pelo elogio ao Blog, do qual uma boa parte se deve aos seus escritos.

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  8. Francisco Bendl13/08/2017, 11:06

    Meu caro Mano,

    Imagino o quanto teus sentimentos para com o senhor teu pai não sejam intensos e importantes!

    E que longevidade a dele!!!

    Meu pai se foi com 49 anos, recém feitos.

    Não tive com ele esta tua intimidade e amor que tiveste pelo teu pai.

    Fomos distantes, quase estranhos.

    Mas me lembro dele tantos nessas datas quanto em outros dias, volta e meia.

    E, confesso, tenho feito meus esforços para que meus filhos não se afastem de mim, que me considerem, que me respeitem, e que sintam algum tipo de carinho e afeto.

    Não é para qualquer homem ser pai, ainda mais admirado e amado!

    Justamente em face desta tua crônica tão enternecedora em homenagem ao teu pai, Mano, rendo minhas reverências aos genitores que deixaram em seus filhos recordações inesquecíveis e saudades imensas quando partiram, da mesma forma as minhas saudações aos pais ainda vivos e também participativos, queridos e venerados pelos seus filhos.

    Um forte abraço, Wilson.
    Saúde e paz.

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    1. Wilson Baptista Junior14/08/2017, 09:59

      Obrigado, amigo Chicão.
      Tenho certeza de que teus filhos, e teus netos, se lembram de ti agora e se lembrarão quando fores embora com muito carinho e muita saudade, do pai e do Super Duplo!

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  9. Moacir Pimentel13/08/2017, 18:08

    Wilson,
    Pois é, você e a Donana nos presentearam com dois posts "em seguidinho" daqueles que, se não nos quebram, bem que vergam. Porque orfandade não tem idade e não sei e nem gosto de falar dela. O seu belo post me faz pensar em tantas coisas. Em como a vida está cheia de pessoas realmente especiais que desconhecemos. Como seu pai. Em Sophia de Mello Breyner, uma poetisa lusitana maior e desconhecida por cá. Uma pena... para nós. Me orgulho de ter sido "roubado" da obra completa dela pela minha filha caçula.
    "Para atravessar o deserto do mundo/ Para enfrentar o terror da morte/ Para ver a verdade e para perder o medo/ Ao lado dos teus passos caminhei.”
    Só não sei se outros da estirpe dos nossos velhinhos que já foram para o andar de cima ... "Tardarão muito para nascer se é que nascem". Nós achamos que somos as provas vivas da involução da experiência humana: menores que nossos pais. Sim, é claro, pois nossos pais são os gigantes que sempre nos deram sombra e os heróis com quem almejamos parecer. Mas embora seja impossível repetir quem quer que seja sobre a Terra quantas vezes você se olha no espelho e o enxerga lá sorrindo-lhe de volta porque nunca traiu seus amores, filhos, amigos e valores? Quanto mais leio sobre você e o senhor seu pai mais vejo-os misturados: autodidatas voluntariosos, fotógrafos, atiradores, esgrimistas, amantes de livros e filmes, de trabalhos manuais, de música, dos bons copos e mesa, do belo e do bom e do justo, lendo compulsivamente - “traduttore, traditore”! – e, o que é melhor, conversando sobre tudo isso amavelmente.
    Talvez o outro nome dessa conversa seja vida.E a melhor parte de um homem, a que evolui e evoluirá teimosamente não se sabe em que direção, seja os seus filhos e os filhos deles e assim inquebrantavelmente até...quem sabe? Mas quem é filho dos nossos pais e pai dos nossos filhos e avô dos nossos netos tem mais do que bons motivos para tentar continuar acreditando na tal da eternidade.
    Abraço

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    1. Wilson Baptista Junior14/08/2017, 10:12

      Moacir,
      Responder o quê ao seu comentário? Apenas que, do fundo do coração, gostaria muito de acreditar nisso que você me diz do espelho. E que, graças a Deus, a vida está sim cheia de pessoas especiais, muitas que desconhecemos, outras que tivemos o privilégio de conhecer, e, quem sabe, outras que conheceremos ainda. Nessa longa, difícil, muitas vezes feliz, às vezes dolorosa, mas sempre interessante trajetória que começou ao sermos concebidos de nossos pais, que vai acabar não sabemos bem aonde, e durante a qual por nossa vez deixamos em nossos filhos um pouco do que, esperamos, seja bom em nós.

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  10. Heraldo Palmeira16/08/2017, 21:01

    Mano,
    Fico impressionado como os homens do tempo dos nossos pais eram especiais. Mesmo com alguma formação - o meu era agrônomo - tiravam do mundo todos os aprendizados que pudessem. A grande maestria do meu pai estava na palavra, inclusive o dom dos discursos. Obcecado por informação, dedicava boa parte das suas noites escuras do interior (de motor de luz desligado) a ouvir a BBC num rádio a bateria, que o passar do tempo mudou para pilhas.

    O que mais me impressionava era que os muitos amigos também estavam por ali, ao redor, diversos analfabetos(!), mas capazes de acompanhar os temas. Todos dotados de grande sabedoria. E mestres em seus muitos ofícios.

    Sinceramente, conhecemos um passado que não tem qualquer motivo para sentir inveja do futuro dele, que é este nosso presente. Basta ver que os atores eram homens como os nossos pais. E mães. Abraço.

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  11. Wilson Baptista Junior18/08/2017, 23:46

    Heraldo, com um atraso que não quer dizer descuido, obrigado. Sim, nossos pais eram especiais. Espero devotamente que nossos filhos tenham ao menos algum motivo para se lembrarem de nós como nos lembramos dos nossos pais, e que os filhos deles também se lembrem deles assim.
    Um abraço do
    Mano

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