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25/08/2017

Modi le Maudit

Amedeo Modigliani (imagem i.telegraph.co.uk)
Moacir Pimentel 
Centro de interesse artístico, Paris atraía muitos pintores estrangeiros no começo do século XX como, por exemplo, os emigrados judeus Amedeo Modigliani, Chaim Soutine e Marc Chagall. Embora tenham ficado amigos e se inspirado nas recentes inovações artísticas, foram todos originais e suas pinturas são incomparáveis desafiando rótulos e imitadores.
Soutine e Chagall eram oriundos do Império Russo e Modigliani da Itália e, por motivos maiores do que aqueles meramente culturais, continuaram a ser forasteiros no cenário artístico parisiense. Eles compartilhavam o isolamento da alteridade, sem nunca realmente pertencer a um só grupo ou a aderir a um programa único.
Hoje conversaremos sobre o primeiro dos emigrados: Amedeo Clemente Modigliani. Ninguém realmente conheceu esse orgulhoso judeu italiano que permaneceu uma estranheza artística única dentro do seu tempo, nem entendeu porque ele escolheu deliberadamente o caminho da autodestruição.
Com raízes familiares ligando-o a Baruch de Espinoza, ele era conhecido por seus amigos como o “Modi”, um apelido tenebroso por causa da sua estranha homofonia na língua francesa com "maudit", que significa amaldiçoado.
O maldito Modi, um dos homens mais bem apessoados de Paris, morria de vergonha da amarga pobreza na qual sobrevivia, geralmente bêbado, drogado ou ambos, recitando Baudelaire e Verlaine de cor e salteado, dançando com os postes de luz, fazendo piruetas pelas ladeiras de Montmartre abaixo, tirando as roupas nas festas, dormindo em caixotes, pintando retratos extremamente sensíveis ou com caras de paisagem e nus icônicos de mulheres com pescoços de cisne e corpos alongados, enquanto tossia até a morte.
Modigliani, um filho de pais sefarditas de velha e erudita estirpe e cultivado em Livorno, mudou-se como expatriado para Paris louco para fazer parte da cena artística da cidade que era, então, o dínamo mundial da vanguarda. E como dizia Jean Cocteau:
“Não esperemos pela vanguarda!”
Somente em Paris se poderia encontrar então aquela mistura exquisita do muito novo - o cubismo e a escultura de Constantin Brancusi! - do antigo e santificado - o Louvre! – e do exótico colonial - as coleções de arte africana e cambojana sugadas das colônias francesas no Musée de L'Homme.
No trabalho de Modigliani, todas essas influências surgem acima da cultura italiana, herdada do gracioso desenho de Botticelli e daquele sienense, dos nus de Giorgione e especialmente dos de Ticiano. Vê-se também nas coisas de Modigliani a força da pegada de Giorgio di Chirico que propagava aos quatro ventos que já não se podia falar de pintura italiana moderna, que ela se resumia a di Chirico e Modigliani, “mas nós somos franceses”
O resultado de todas essas referências e influências na obra de Modigliani foi um amálgama um tanto lânguido, tremendamente atraente, do velho e do novo, que hoje quase não parece radical, mas que o foi em seu tempo. Apesar da indiferença quase completa mostrada por colecionadores franceses às suas primeiras telas, Modigliani é hoje arte moderna para pessoas que, na verdade, não gostam muito do modernismo.
O pintor conhecia a fragilidade da vida e é por isso que a sua arte ressoa uma tristeza profunda que, no entanto, jamais cai no macabro. Havia sempre presente nela uma elegância, uma sensação de silêncio, de distanciamento e refinamento.
Modigliani perseguiu sua própria visão artística durante os sete anos que dedicou à pintura, depois de ter experimentado a escultura por outros quatro. A sua primeira tela data de 1913 e os anos que lhe restavam foram interrompidos pela guerra e pela péssima saúde. Mesmo assim, ele conseguiu pintar mais de duzentos e cinquenta óleos.
Devo confessar que não sou um devoto de Amedeo Modigliani – dele já vi coisas estupendas, verdadeiras obras primas, ao lado de outras muito maçantes – e que sobre o trabalho dele tenho opiniões contraditórias, mas a popularidade do artista é inquestionável e duradoura e quase obsessiva não se rivalizando com a de van Gogh, é claro, mas construída com o mesmo tipo de material.
O público de arte é chegado aos retumbantes fracassos que, após a morte, conseguem finalmente trilhar o caminho do sucesso. No caso de Modigliani consigo pensar em várias razões para justificar tanta idolatria. As lendas do modernismo primitivo, atuando em um público sentimental com um fraco para o martírio auto induzido, produzem esse amor nebuloso e eterno por Modi.
O certo é que, quando chegou de Livorno, mesmo bêbado e drogado, Modigliani agitou ateliês, salões, bares e camas na Paris de 1906 até sua morte em 1920. André Salmon escreveu que quando ele aparecia em qualquer lugar metade dos presentes sorria e suspirava:
“Modi chegou!”
Enquanto a outra metade desmaiava. Ele deve ter sido carismático: um judeu sefardita italiano exótico, um sedutor culto e amoroso que era amigo de infância de Dante.
É interessante vê-lo pintado pela amiga e brilhante pintora cubista Marie Vorobieff no meio da galera, como a personalidade dominante e o macho-alfa da tribo, de peito nu e copo na mão, no mural entitulado de "Homenagem aos Amigos de Montparnasse”.
Em torno de Modigliani se reconhece a sua companheira Jeanne Hébuterne, Diego Rivera, Leopold Zborowski, Chaim Soutine, Moise Kisling, Ilya Ehrenburg, Max Jacob e a própria pintora, mais conhecida como Marevna. 
(imagem www.wikiart.org)

A excelente aparência do artista também contribuiu para a lenda já que Dona História descreve Amedeo como “um jovem de beleza quase sobrenatural”. Vaidoso, ele fazia questão de andar bem vestido e não perdoava em Picasso, por exemplo, os grossos e deformados agasalhos de lã, as calças puídas e os casacos remendados.
Perto do bonitão Modi, os pobres Moose Kisling, Chaim Soutine, Marc Chagall e Picasso e os demais habitantes do Bateau Lavoir e da Ruche - as lavanderia e colméia de pequenos ateliês caindo aos pedaços em Montmartre e depois em Montparnasse - deviam parecer anões esfarrapados.
Poucos homens já encarnaram melhor do que Modigliani o arquétipo do pintor desvalido, o mito romântico do artista brilhante e transgressor, do criador amaldiçoado pela vida dissoluta, do belo boêmio de muitos amores, do gênio incompreendido que se refugiou no vinho e no absinto e no ópio e no haxixe, cuja história é curta, mas intensa, dramática e memorável e marcada por ataques de raiva e de agressão sem sentido.
Mas, a bem da verdade, a doença e a pobreza não prejudicaram em nada o desempenho sexual do rapaz com uma série de parceiras: outro ingrediente da lenda!
Entre elas estava em lugar de honra a jovem poetisa russa Anna Akhmatova. 
(imagem pt.pinterest,com / wikipedia)
Modigliani jamais pintou Anna e – dizem! - desenhou-a assim toda nua só de imaginar. Pudera! Quando se conheceram a moça estava com o marido em Paris e em lua de mel. Talvez por isso os enamorados tenham passeado tanto no Jardim de Luxemburgo juntinhos e debaixo de um “enorme guarda-chuva preto velho recitando Verlaine”, como Anna poetou anos depois.
O que se sabe através de registros históricos, é que ela era uma beldade que literalmente virava as cabeças masculinas nas ruas de Paris e que do amante escreveu:
“Ele era diferente de qualquer outra pessoa no mundo."
Quando o casal de recém-casados russos - finda a lua de mel!- partiu de volta para a sua São Petersburgo natal seguiu-se uma torrente de cartas. Modigliani não costumava se incomodar a ponto de escrever para suas amantes - e foram muitas, antes e depois de Anna - e então podemos considerar esse intercâmbio de pretinhas deles bastante extraordinário.
No ano seguinte a apaixonada missivista voltou a Paris sozinha e alugou um apartamento perto da igreja de Saint-Sulpice onde durante vários meses a paixão foi consumada e ela escreveu o verso final do romance. E vida que segue...
Com Beatrice Hastings, uma escritora e crítica literária e teosofista inglesa que se encantou perdidamente pelo italianinho e que Modigliani em dois anos de relacionamento de tão enamorado retratou nada mais nada menos do que quatorze vezes. 
(imagem alchetron.com)
Beatrice, que talvez tenha sido o primeiro dos Nus Sentados de Modi, por sua vez, escreveu sobre o amante:
"Encontrei-o no Café Rotonde. Ele sempre tinha um livro no bolso: Os Cantos de Maldoror de Lautrémont. Um personagem complexo: um porco e uma pérola. Encantador, ergueu o boné com um gesto bonito, corou e me pediu para ir conhecer o seu trabalho. E eu fui.”
Bem, acho que a moça não teve escolha: o Modi e o uruguaio Conde Lautréamont juntos, um pintor bonito e um escritor que se esgotou em blasfêmias e metáforas esplêndidas, ambos sem limites, ambos bárbaros civilizados, de fúria elegante e vandalismo engravatado era mesmo uma combinação irresistível e letal (rsrs)
Beatrice tivera casos sérios com Ezra Pound e amizades coloridas com André Breton e Picasso. Dizem que ela fazia entalhes na cabeceira da cama para manter o registro de seus amantes.
É difícil imaginar essa mulher altiva e independente e feminista como uma infeliz vítima da fúria bêbada de Amedeo. Mas notoriamente ele a arrastava pelos cabelos enquanto ela quebrava as cadeiras mais próximas.
Devido ao temperamento orgulhoso de Beatrice, Modigliani chamava a amante de milady e jocosamente pintou-a intitulada de Madame Pompadour, em uma tela quase cubista, na qual o rosto da moça é descrito simultaneamente dos dois lados – frente e perfil – rodeado por colagens e inscrições muralistas. Uma tela interessante que difere do conjunto da obra. 
(imagem www.modigliani.org)
O retrato se rebela contra a costumeira pobreza dos fundos do artista embora mantenha a sobriedade habitual da cor de Modigliani. Além de preto e branco, apenas três tons são usados. Ironicamente, e talvez ternamente, a valente Beatrice foi retratada usando um dos chapéus ingleses “impossíveis”, dos quais Modigliani zombava.
Infelizmente, conhecer esse caso de amor e ler todo esse “chocolate com pimenta” não torna mais expressivos os demais retratos que Modigliani fez dela. Biografias intrigantes não têm o dom de aprimorar pinturas.
O último amor de Modigliani foi Jeanne Hebuterne, uma filha da mais legítima e católica burguesia parisiense.
 
(imagem wikipedia)
Jeanne Hébuterne, pintada por Modigliani na tela acima em 1918, é conhecida por ter sido a mais retratada das musas do artista mas na verdade foi muito mais: foi sua companheira e com ele viveu uma das histórias de amor mais trágicas do mundo da arte.
Jeanne era uma linda garota de dezenove anos, de rosto ovalado, belos olhos azuis e bastos cabelos acobreados que usava amarrados em longas tranças. Nas fotos ela é bem diferente da Jeanne modigliana mas possuía uma beleza rara e estranha, uma aparência que hoje a juventude chamaria de “gótica" que ganhou muitos admiradores em Montparnasse. 
(imagem wikipedia)
Ela foi introduzida na comunidade artística por seu irmão André Hébuterne que queria se tornar pintor e conheceu alguns artistas, fez amizade com vários deles, incluindo Tsuguharu Foujita para quem ela modelou. Jeanne também possuia talento para as artes, era musicista e desenhava e optou por estudar na Académie Colarossi.
Foi na primavera de 1917 que Jeanne Hébuterne foi apresentada a Amedeo Modigliani no Café de La Rotonde onde todos a queriam e apostavam quem a levaria primeiro para a cama. Modigliani, o Don Juan do pedaço, ganhou. Primeiro ele a desenhou, em seguida a levou para um hotel miserável e a pintou, depois se conheceram melhor e...
@#$%&@!
Os dois se apaixonaram profundamente. Ela tinha dezoito anos e Amedeo trinta e dois. Apesar da forte objeção de seus pais católicos praticantes, Jeanne jogou tudo para o alto para viver com o artista do seu encanto que era pobre como Jó, judeu, dissoluto e moribundo.
Quando Modigliani e Jeanne passaram a morar juntos seus amigos mais próximos acreditaram que a jovem séria e centrada pudesse motivar Modigliani a conter seus excessos. Jeanne possuía um comportamento tranquilo e era descrita como "gentil, tímida, calma e delicada”. Talvez um pouco depressiva. Mas por isso mesmo todos torciam para que, com suas serenidade e juventude, ela fosse capaz de acalmar Amedeo.
Jeanne foi percebida pelos amigos do companheiro como uma menina pura e boa que – quem sabe? – tinha chances de salvar Modigliani. A situação me lembra de Crime e Castigo, em cujas páginas a piedosa e abnegada Sônia salva um Raskolnikov temperamental. Jeanne, no entanto, nutria por Amedeo uma adoração cega que nada pedia e muito menos exigia.
Embora o casamento não tenha resultado em mudanças fundamentais em seu comportamento – ele continuou bebendo e se drogando - os retratos que Modigliani fez de sua jovem amante, bem menos estilizados do que os seus trabalhos anteriores, sugerem uma claridade psicológica maior e uma nova serenidade no artista.
A pintura de Modigliani nesse período parece perseguir a beleza de Jeanne, em retratos clássicos de rosto e/ou meio corpo, nos quais a sua figura e o seu rosto aparecem modelados em tons quentes e harmoniosos.
Geralmente dois planos de cor dividem o corpo: os continentes inferiores têm o volume das deusas africanas que ele apreciava enquanto que os torsos de Jeanne, vestidos por cores diversas, eram os preâmbulos ideais para os longos pescoços e pálidos rostos em flor.
Os retratos são simples, à primeira vista, mas eles têm uma profundidade atraente. Tudo bem que é sempre o mesmo rosto alongado – que ela não tinha! – de lábios cheios, de bochechas rosadas, de olhos inteligentes que encaram, não o espectador, mas a distância. Porém essa Jeanne de Modigliani é emocionante.
Seus olhos que eram azuis parecem tão escuros, pensativos e sonhadores, e seu olhar está cheio de tristeza insuportável, causada pela cruel realidade da qual ela não podia escapar. O casal passava fome! É esse espírito melancólico enquanto ela considerava pensativamente o seu ambiente sombrio que cativa, é essa beleza triste e vã que seduz.
O olhar de Jeanne não é direto, não está pedindo a quem a observa para salvá-la das suas telas, pelo contrário, ela parece ser uma parte inerente desse mundo sórdido, presa nele para a eternidade. E a gente deseja estender a mão e resgatá-la desse enredo doido de pedra.
Diz Dona Lenda e o filme sobre Modigliani estrelado por Andy Garcia que o artista costumava dizer à sua Jeanne :
“Quando eu conhecer sua alma pintarei os seus olhos”.
E como os pintou bem, sobretudo na segunda tela da montagem abaixo, cujo nome é Jeanne. A gente entende que, para Modigliani o único sentido, o possível e curto futuro, a própria arte estava no rosto dessa jovem mulher. Ele pintou Jeanne vinte e oito vezes!
(imagem pinterest ⬌ wikipedia)

Cada um desses retratos é como uma carta de amor: muito delicado, lírico e calmo. Modigliani a pintou perdida em seus pensamentos, distante da realidade, do lugar e do tempo, e extraordinariamente bela. O pintor sussurrava sua pintura como um amante murmura carinhos no ouvido da mulher amada.
Mas as preocupações escultóricas de Modigliani continuaram a ser traduzidas, por exemplo, nessa pintura de Jeanne vestida com a malha amarela, na qual retratou a companheira como uma espécie de deusa da fertilidade.
Com seu rosto estreito altamente estilizado e olhos em branco, ela tem o semblante sereno de uma deidade, e a ênfase do artista nos quadris e coxas maciços e no ventre grávido imita o foco de esculturas antigas que fetichizam a reprodução.
Já na última tela radiante Modigliani pinta sua amante grávida definida por uma saia em preto liso, o xale vermelho e mangas brancas. O círculo feito por suas mãos caracteristicamente dobradas é imitado pela forma da cadeira na qual ela se senta, e essas formas curvas são, por sua vez, desafiadas pelas verticais afiadas em cinza, preto que formam a porta e as paredes no fundo.
A figura de Jeanne foi sentada ligeiramente descentrada, com a cabeça inclinada para um lado e os braços falsamente alongados para o outro. A pintura está cheia do calor e da riqueza desses tons de amarelo e ocre e lilás e o vermelho do xale de Jeanne amarrado em volta dos seios pesados em sutil contraste com o vermelho da porta e da parede inferior atrás dela e do branco total das mangas longas da camisa.
Seus olhos azuis nos olham inexpressivos, perdidos em contemplação interior, como uma Madona tardia, trazendo serenidade e aconchego para os problemas do mundo.
Os retratos de Jeanne, cheios de uma espécie de ternura e intimidade, parecem puxar Modigliani para longe da sua bagunça biográfica e situá-lo em uma esfera onde você vê senão esperança pelo menos a seriedade e a segurança de seu trabalho.
Pinturas como essas fizeram Modigliani imensamente colecionável. Parece moderno sem ser demasiado desafiador, protegendo uma velha noção da beleza mesmo enquanto distorce-a. Mas essas obras também mostram que seu objetivo é nada menos que uma tentativa concertada e séria de reinventar o retrato clássico para a idade moderna.
Embora continuasse a pintar, a saúde de Modigliani se deteriorava rapidamente e seus apagões induzidos por álcool e drogas se tornaram mais frequentes. Rejeitada por sua família, em 29 de novembro de 1918 Jeanne dera à luz a uma menina e, já em junho de 1919, estava grávida novamente, enquanto Modigliani piorava a cada dia.
Em janeiro, depois de não ter visto Amadeo por vários dias, o pintor Ortiz de Zárate, vizinho e amigo de Modigliani, preocupou-se e invadiu o estúdio do casal onde, horrorizado, encontrou Modigliani delirando nos braços de Jeanne sobre uma cama cheia de garrafas de álcool e latas de sardinha vazias. A moça não pensara em chamar um médico.
Modigliani foi internado já inconsciente no Hospital de la Charité em 22 de janeiro de 1920, onde faleceu de meningite tuberculosa no dia 24, aos trinta e cinco anos de idade, na mais completa miséria. Jeanne, grávida de oito meses, foi levada atordoada para a casa de seus pais onde, inconsolável, passou uma noite insone e, na manhã seguinte, se matou atirando-se de costas de uma janela do quinto andar. Tinha vinte e um anos e estava grávida de oito meses.
O corpo de Jeanne, recolhido por um estranho caridoso, foi rejeitado por seu irmão André Hébuterne. Levado por uma carroça até o ateliê de Modigliani lá ficou abandonado até que Jeanne Léger, a esposa do pintor Fernand Léger, tomou as providências para que o corpo da jovem fosse sepultado no mesmo dia às escondidas e em penosa solidão.
O destino trágico do casal abalou as comunidades artísticas em Montmartre e Montparnasse. O enterro de Modigliani foi um acontecimento e, a essa altura, suas obras já haviam experimentado uma vertiginosa valorização. Como disse Chaim Soutine: “Do nada à glória”.
Somente dez anos depois o irmão mais velho de Modigliani conseguiu convencer a amargurada família Hébuterne a trasladar os restos mortais de Jeanne e de seu filho não nascido para o cemitério do Père Lachaise, onde Modigliani fora enterrado e hoje o casal descansa.
Uma única lápide homenageia os dois.
O epitáfio de Amedeo é :
"Derrubado pela Morte no momento da Glória”
No de Jeanne lemos:
"Devotada companheira até o sacrifício extremo".
A filha do casal, Jeanne Modigliani, foi criada pela família paterna e escreveu sobre o que lhe restara: a arte paterna. Mas essa será outra conversa...



15 comentários:

  1. Mônica Silva25/08/2017, 09:06

    Uma história de arrepiar, Moacir. Você descreve muito bem a confusão que o artista fez da própria vida. Talvez a doença explique a ânsia de viver e a natureza compulsiva. E as drogas são uma verdadeira maldição. Enquanto só fazia mal a si mesmo tudo bem. Mas e quanto a Jeane que só tinha 18 anos? Parece que os auto-destrutivos e masoquistas se atraem. Como é que uma mãe se mata com um bebê de nove meses na barriga deixando uma filhinha sozinha no mundo? Quanta loucura e irresponsabilidade! Não acredito que isto seja amor. É doença. Não tem arte que justifique a destruição deliberada da própria vida. Obrigada e um bom final de semana.

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    1. Moacir Pimentel26/08/2017, 07:50

      Mônica,
      Hoje senti falta dos simpáticos “kkks”(rsrs) Com certeza as vidas e as mortes precoces e trágicas desses dois jovens são sim chocantes e nos fazem encolher. É triste que não tenham vivido para criar os filhos e aprimorar suas artes. A Jeanne também brincava com as tintas e pintou, inclusive, o homem do seu encanto:

      https://artmodel.files.wordpress.com/2008/06/modibyjeanne.jpg

      Decerto que faltava um bocado de juízo ao casal mas apesar de ter sido muuuito difícil aprendi a separar a arte dos desvios de caráter e de comportamento e, bem assim, das posturas políticas, religiosas e sexuais de quem a produz.
      De tudo, o que deveria nos interessar mais é se as produções intelectual e artística desses atormentados criadores nos agradam, se nos encantamos diante de uma tela de uma ficção da lavra deles. Os vícios e os buracos negros morais de Modigliani , não deletam o mistério de suas esculturas, a tristeza e a solidão pungentes que identificamos em alguns de seus retratos ou o esplendor de alguns dos corpos despidos que pintou. Do homem Modigliani, que se foi, o importante é a obra, que ficou, e que ainda conversa conosco. Portanto foquemos na sua arte e, para apreciá-la ou não, que as nossas razões sejam estéticas.
      Obrigado pela sua leitura sempre atenta, um bom final de semana e um abraço

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  2. Flávia de Barros25/08/2017, 09:18

    Moacir,

    Os poucos trabalhos de Modigliani que conheço são tão tranquilos e sensuais que me surpreendi com a sua trágica vida. Não há nada nas obras dele que indique seus graves problemas de saúde nem com bebidas e drogas. Também desconhecia a história de amor que viveu com Jeanne. Você me emocionou quando falou que para Modigliani o único futuro possível foi transformar a beleza da mulher em dezenas de quadros. Destaco:

    “Quando eu conhecer sua alma pintarei os seus olhos”.

    Ainda bem que Modigliani pintou os olhos da 'Madona tardia’ que pagou um preço alto demais pela paz que trouxe para a sua arte. Lindo e triste o seu artigo.

    Um abraço para você

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    1. Moacir Pimentel26/08/2017, 07:54

      Flávia,
      Como teremos mais algumas conversas sobre o Modi pela frente não vou me aprofundar – abaixo os spoilers! - mas sim você está certa: Modigliani se revela minimamente nas suas tintas.
      Na aparente calmaria das suas telas não identificamos muito da sua pessoa por trás das suas personas como é o caso do tumulto mental que vislumbramos nas coisas de van Gogh, da poderosa agressividade de Picasso nas fragmentações que cometeu, do envelhecimento auto retratado de Rembrandt ou das neuroses agônicas que Munch nos gritou. Nada disso. Mesmo nos lindos nus de Modigliani falta a intimidade física e emocional daquele beijo do Klimt.
      Porém talvez mais importante do que adivinhar o que esses gênios eram , sentiam, pensavam e queriam nos dizer seja focar naquilo que, efetivamente, os seus trabalhos nos dizem. Com certeza você interpreta em termos religiosos A Criação de Adão lá no teto da Sistina enquanto que eu naqueles dedos se encontrando enxergo metáforas da necessidade humana de fazer contato e – quem sabe? - de uma sinapse neural ainda mais com aquele cérebro que Michelangelo inventou como pano de fundo (rsrs) São exatamente essas diversas e infinitas possibilidades de leitura que tornam a arte fascinante.
      Outro abraço para você

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  3. Francisco Bendl25/08/2017, 14:39

    Pimentel,

    Contribuiria para dar mais ênfase a este teu excelente artigo - mais um! -. o filme sobre Modigliani, estrelado pelo correto Andy Garcia.

    Elogiado pela crítica quando do seu lançamento, em 2005, se não me falha a memória, pode-se ter uma ideia do brilhante pintor e escultor, e a sua tragédia pessoal, a sua vida miserável, e sua dependência do fumo e álcool, apesar da sua genialidade.

    Recomendo o filme, que somado à tua importante postagem sobre essa personalidade marcante nas artes, nos oferecem a real dimensão deste célebre artista, que se foi em pleno auge da sua criatividade, morrendo na miséria e tuberculoso, e com a sua esposa se matando no dia seguinte ao seu sepultamento!

    Dantesco!

    Um grande abraço.
    Saúde e paz.

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    1. Moacir Pimentel26/08/2017, 07:58

      Bendl,
      É uma boa ideia até por que o filme está disponível no Youtube.

      https://www.youtube.com/watch?v=pNik9gJeQAg

      Confesso que o Modigliani do Andy Garcia, na minha modesta avaliação, faz algumas caretas demais e representa de menos. Além disso o roteiro se permite larga licença poética (rsrs) Mas as cores sombrias da vida miserável, do sofrido amor,da doença, da dependência das drogas, dos brancos e delírios e neuroses do artista estão presentes nesse enredo de bela fotografia.
      Muito obrigado pelas leitura, palavras de incentivo e sugestão.
      Abração

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  4. Márcio P. Rocha25/08/2017, 18:55

    Concordo com você sobre Modigliani ser consumido por quem não gosta do modernismo. Muito mais do que um modernista que nunca saiu do armário ele foi o último a pintar pela cartilha dos clássicos. Já com Picasso, Kisling, Soutine, Brancusi etc a arte mudou radicalmente. Depois da publicação da Interpretação dos Sonhos de Freud, quando a mente subconsciente virou notícia nos jornais, os artistas romperam com o passado e passaram a reinterpretar o mundo de formas inesperadas e modernas.

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    1. Moacir Pimentel26/08/2017, 08:08

      Caro Márcio,
      Primeiro vou concordar com você: as senhoras modiglianizadas com as mãos cruzadas no colo são primas legítimas da Mona Lisa e os nus do artista são ascendentes daquelas Vênus de Giorgione e Ticiano.
      Em seguida vou discordar: a modernidade não foi uma lâmpada ligada por Freud em 1899. Paixão é paixão e pronto e respeito a sua, mas não consigo abstrair a modernidade na arte sem começar pelo b-a-bá e sem contextualizar. Seria como fazer prova de História sobre a Roma Antiga sem antes ter passado pela Mesopotâmia, o Egito e a Grécia. Podemos até cravar uma nota dez mas terá sido decoreba e não compreensão.
      Se é para demarcar a fronteira entre a arte moderna e tudo o que veio antes dela então porque não fazer o corte em 1907 quando Picasso pintou as revolucionárias Les Demoiselles d'Avignon inspirado pela Abertura do Quinto Selo que El Greco pintara em 1614? Ou que tal 1863 quando, para muita gente boa, a Olympia de Édouard Manet marcou o nascimento do modernismo ainda que revisitando a Venus de Urbino nascida em 1538?
      Certamente o espanhol Francesco Goya pintando a loucura e a guerra foi para lá de vanguardista. Embora a Itália , é claro, jure de pés juntos que nada que pode ser mais chocantemente modernoso do que o realismo perturbador de Caravaggio nos primórdios do século XVII. Se bem que, para mim, quem leva o Oscar da Modernidade é mesmo Michelangelo cuja Pietà Rondanini, datada de 1550, é tão abstrata quanto as coisas de Brancusi.

      http://www.italianways.com/wp-content/uploads/2015/11/michelangelo-buonarroti-piet%C3%A0-rondanini-01.jpg

      Note que nessa viagem no tempo de volta ao Renascimento, o adjetivo "moderno" jamais perdeu o seu sentido léxico e esse é o meu argumento: todos os artistas mencionados “romperam com o passado”.
      Abração

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  5. Alexandre Sampaio25/08/2017, 20:53

    Pimentel,
    Bela e competente postagem. Há alguns anos atrás fui a uma exposição de Modigliani em Curitiba. Gostei muito do estilo inconfundível da pintura dele principalmente dos famosos nus femininos.

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    1. Moacir Pimentel26/08/2017, 08:16

      Sampaio,
      Já que você aprecia o estilo inconfundível do artista por favor continue nos lendo e verá mais “exposições” dos nus e dos retratos de Modigliani. Muito obrigado pela sua participação.

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  6. Olá Moacir,
    Sol, mar e paraíso.
    E dá-lhe Modigliani. Um belo homem muito trágico. E uma bela aula bem completa. Não sabia quase nada desse tudo que voce nos contou.
    Gosto de suas obras, muito peculiares e às vezes pouco expressivas. Mas o estilo é inconfundível. Passo um tempo vasculhando os fundos das pinturas. Se as figuras me atraem , o que as compõem me fascina, as formas e as cores.
    Quero muito saber o resto da história. Eu e mais ou menos dois mil leitores!
    Bom final de semana. Até mais.

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  7. Olá Moacir,
    Sol, mar e paraíso.
    E dá-lhe Modigliani. Um belo homem muito trágico. E uma bela aula bem completa. Não sabia quase nada desse tudo que voce nos contou.
    Gosto de suas obras, muito peculiares e às vezes pouco expressivas. Mas o estilo é inconfundível. Passo um tempo vasculhando os fundos das pinturas. Se as figuras me atraem , o que as compõem me fascina, as formas e as cores.
    Quero muito saber o resto da história. Eu e mais ou menos dois mil leitores!
    Bom final de semana. Até mais.

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    1. Moacir Pimentel28/08/2017, 08:08

      Caríssima Donana,
      Divirto-me com os seus comentários nos posts de arte "em seguidinho" porque a artista pula etapas e fala do que escrevi um ou dois capítulos à frente me deixando no maior teclado justo para responder. Mas digamos que milito no seu time e que também "passo um tempo vasculhando os fundos das pinturas e se as figuras me atraem , o que as compõem me fascina, as formas e as cores". Bingo! Só que às vezes também é "bem bom" dar uma boa olhada naquilo que não atrai. Note que não estou falando de passar a gostar - na arte acredito piamente em amor à primeira vista - mas de entender os porquês da antipatia.
      “Até mais" modiglianices

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  8. 1)Modigliani e Moacir: magníficos !

    2)Tento comentar na forma de Haikays:

    3)Poesia japonesa: 3 versos e 17 sílabas...

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    1. Moacir Pimentel28/08/2017, 08:13

      Antonioji
      Pois é. Sempre admirei a capacidade de síntese e sempre penei para reduzir a enxurrada de palavras confusas que escorre da minha mente prolixa para o teclado. Em vão. Tenho para mim que ser "sintético" é uma qualidade nata: não se aprende. Nasce com a gente ou não e pronto. Não levo o menor jeito para posts de trinta linhas, mensagens com 144 caracteres no Twitter, haicais de três versos de 17 sílabas nem mesmo quando estou zen...quase budista (rsrs)
      Mas para me desculpar pelo pecado do mais em vez do menos mando-lhe um haikai do grande Quintana:
      "O verso é um doido cantando sozinho,
      Seu assunto é o caminho. E nada mais!
      O caminho que ele próprio inventa……"
      Abração

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