Heraldo Palmeira
O banheiro
era enorme e limpo, como era de esperar na sede da veneranda instituição.
Repleto de espelhos em cima da bancada de granito das inúmeras pias. Tudo ali
era inúmero! Vasos sanitários, cabines, mictórios, luzes.
Perpendicular,
eu acabara de deixar atrás de mim a grande avenida, lotada num domingo de lazer
para gentes das mais diferentes traduções. Tudo no mundo passava por aquele
asfalto e calçadas amplas – fatos, coisas, pessoas, novidades, velharias,
companhias, abandonos, misérias. Prédios de todos os tamanhos, traço
arquitetônico da opulência em escritórios milionários e milionários em seus
apartamentos estruturais.
Circular, eu
trafeguei pela galeria, vi as exposições e pessoas fazendo cara de entendidas
das artes – são engraçadas as caras das pessoas fazendo caras de entendidas em
qualquer coisa que não entendem. Talvez, por isso, não se vê espelhos nesses
ambientes, para evitar a crueldade de emoldurar caras e bocas tortas pela
ignorância compenetrada.
Tangencial,
eu andei lá por dentro, havia duas salas dedicadas a essas bobagens
tecnológicas que algumas bestas chamam de instalações – um falso adjetivo para
coisas que não passam de trapizongas obradas para ofender a arte.
Paralelo, eu
tomei um café no café bem instalado, enquanto músicos enchiam o ambiente com
seu duo de cordas em sopro delicado de harmonia. Canções conhecidas,
encantadoras. As pessoas não precisavam fazer caras de entendidas, conheciam o
repertório, cantavam baixinho, aplaudiam.
Diagonal, eu
entrei no banheiro, liberei a tensão líquida e fui lavar as mãos. Dois homens
ao meu lado, um quatrocentão outro em desconstrução.
O nobre
decadente distribuindo a empáfia que lhe cabia, até se deparar com a própria
antiguidade: não conseguia encontrar o papel toalha, só havia as máquinas que
sopram ar para secar as mãos.
O pobre
decaído espalhando a nobreza que não queria ostentar, avisando que não havia
papel ali. Disse como usar as máquinas e agiu rápido quando o velho ficou
ilhado naquela ignorância tecnológica. Ágil, correu a uma das cabines, trouxe
um rolo de papel higiênico e estendeu ao outro com extrema simpatia.
O velho
enxugou as mãos, largou o rolo sobre o balcão molhado das pias e foi saindo em
silêncio absoluto, como quem inutiliza o ato de compartilhar. Um terceiro
homem, que entrara depois, tratou de fazer o barato sair caro: “Disponha, seu
idiota!” – e saiu quase mordendo o pé da orelha do arrogante.
Simétrico, o
homem gentil exibiu um ar de riso conformado e balançou levemente a cabeça de
um lado para o outro, como se dissesse não a si mesmo. Estou quase certo de que
ouvi um “Estou acostumado!” murmurado. Sem arrependimento.
Nivelado,
ele apenas seguiu fazendo sua toalete; contava com a conivência da segurança
para se lavar ali, todos os dias. Em respeito, não tirava a camisa, apenas
abria os botões e lavava peito, axilas, nuca e rosto. O sabonete em espuma era
bastante perfumado. Por fim, umidificava o cabelo e penteava.
Antes de
sair ajustou as roupas e, se achando impecável, deu uma última olhada no
espelho. Estava acostumado a não enxergar traços em desalinho, a ignorar panos
de fundo, a rascunhar um mundo no submundo. Era a imagem da desigualdade
geométrica traçando um arco torto pela vida.
Tangenciou
passos profanos no mármore imaculado carregando suas porcarias. Nem conseguia
sumir porque não existia.
Heraldo, belíssima crônica/conto, que nos alegra pela qualidade e nos entristece pela verossimilhança. Uma das melhores coisas que já li de você até hoje, e olhe que até hoje só li coisas boas. Parabéns e um abraço do Mano.
ResponderExcluirCaro Mano,
ExcluirOra, fico muito honrado com seu comentário.
Também lamento que não seja apenas um conto, tenha som de crônica também, que nos assusta com trechos de fato, ali, diante dos nossos olhos. Cenas banais que se tornam brutais nestes tempos tão mal traçados, numa geometria sem qualquer precisão. Abraço.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirEu li sua crônica hoje cedo e pelo domingo afora fui perseguido pela maestria com a qual você, ao descrever os seus personagens, deu visibilidade à nossa falência enquanto comunidade.
As sua pretinhas de imensa sensibilidade social dotaram a figura no espelho - que nas belas linhas da Donana a gente mal advinha - com uma identidade de cores incômodas. As suas tintas conseguiram dar dignidade e prumo a quem “nem conseguia sumir porque não existia, carregando as suas porcarias” rumo à sua realidade, às agressões, às carências, ao perigo, à zombaria, a cicatriz que não fecha, ao frio ao relento, ao papelão em vez da cama e ao jornal como coberta, à rua que é só o que o ser invisível tem para chamar de seu, para lhe dar ritmo e tempo, para compensá-lo do fracasso, da solidão, da rejeição, da falta de tudo. É na rua que ele fará um bico e será capaz de deslocar a janta que lhe dará a sensação de ainda ser um homem.
A única coisa que nos conforta é saber que você não “inutilizou aquele pequeno ato de compartilhar” e, bem assim e apesar dos pesares, a sua miraculosa falta de arrependimento.
Um texto para se tirar o chapéu e aplaudir de pé.
Caríssimo,
ExcluirO que dizer diante de suas palavras? Além de agradecer por elas, lamentar junto esse triste retrato que terminei escrevendo a respeito do que nos cerca. Estamos falidos em todos os sentidos. A pior das falências é exatamente a moral, o abando que construímos para muitos dos nossos, gente como nós que, por algum motivo, escorregou do vagão onde seguimos espremidos.
Parabéns amigo. Sempre com o dom das palavras.muito bom o texto
ResponderExcluirObrigado, meu amigo. Abraço.
ExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirParabéns pelo texto. Além da sua escrita primorosa, o texto é bonito, triste quase desalentador. Assim como a vida. Mas a gente é teimoso...
Perto dele um texto que escrevi sobre virar baldes ficou tão bobinho, pessoal que está de castigo. Acho que ele é mais para CARAS e...BUNDAS. Na melhor das hipóteses uma Claudiazinha.
Acho que a ilustração não disse a todos a que veio. Pedi ao editor para troca-la mas ele insiste em me defender(rsrs) . Ele é muuuuuito teimoso! (talvez pense que está garantindo almoço, jantar e roupa lavada!)
Até mais!
Ana,
ExcluirSim, as cenas urbanas nos ferem quase de morte, mas a gente vai tratando as feridas e acreditando, seguindo, teimando. Por isso, tire seu texto do castigo, é reforço na bandagem, ajuda no curativo.
Lerdo, só agora me dei conta de que mereci a honra de ter uma ilustração sua - e não foi por falta de aviso da assinatura e do comentário do Moacir. Desculpe minha comida de mosca. E obrigado pela gentileza luxuosa.
Concordo inteiramente com a teimosia do editor, só lamento que a tal garantia seja apenas uma miragem no jogo de espelhos. Até mais!
1) A ilustração da Ana me lembra algo Zen, indicativo de imagens que sobrepõem de significativas várias. Parabéns !
ResponderExcluir2)Parabéns tb ao nosso bom cronista: eis a vida nos surpreendendo em todos os lugares.
3) Espelhos e imagens que refletem nossas irreflexões.
Obrigado, Antonio.
ExcluirHeraldo,
ResponderExcluirParabéns pela crónica, um texto que traça o reflexo de dias sem reflexões.
Lucchesi,
ExcluirBela reflexão. Sem reflexos.
Perpendicular, circular, tangencial, paralelo, diagonal, simétrico, nivelado.
ResponderExcluirQuase um aula de geometria, mesclada com sua fina sensibilidade.
"Nem conseguia sumir porque não existia".
Demais! Parabéns!!!
Obrigado, meu caro.
ExcluirObrigado por mais essa pérola de seu precioso colar de crônicas. Amplexos saudosos.
ResponderExcluirWA,
ExcluirE eu agradeço sua leitura e as palavras boas.
Impactante, atento, duro e doce... como sempre, brilhante. Beijo
ResponderExcluirCarmosa querida,
ExcluirVocê não imagina o prazer de ter você aqui. Coisa de sangue correndo nas veias. Adorei o comentário. Beijo.