Pães diversos - fotografia 3268zauber (Wikipedia, commons) |
Moacir Pimentel
Faz algum tempo o
Antonio, nosso vizinho de blog e de mundo, contou-nos em um belo post ter sido,
noutra vida, um padeiro etrusco. Na mesma oportunidade ficamos sabendo que,
nessa vida mesmo, a Donana foi neta de um outro padeiro português de cujo forno
nos Natais costumavam sair leitãozinhos assados de lamber beiços e dedos! - e
com quem ela aprendeu a sovar a massa para fazer “roscas, pizzas, cucas e
outras maravilhas”.
O que me faz recordar
de uma série que vimos na Netflix, de nome Cooked, na qual a cozinha é
desenhada através das transformações que os elementos - fogo, água, ar e terra
- produzem nos alimentos. O melhor dos episódios foi justamente o do ar, onde
moram as bactérias e leveduras e descobrimos que é o ar que é introduzido na
massa enquanto ela é sovada e que nela fica preso, em bolsões, aquilo que deixa
os pães macios pois fermentados.
O nosso vizinho também
nos informou que o Dia do Padeiro é comemorado no dia oito do mês de julho que,
não por acaso, é também o dia de Santa Isabel. Lembrei então que é portuguesa,
com certeza, a história da Santa padroeira dos panificadores.
Dizem que no ano de
1333, lá na t’rrinha, houve uma fome perversa. Reinavam então Dom Diniz e Dona
Isabel, uma mulher pia e de grande coração que, para aliviar o sofrimento do
seu povo, empenhara suas jóias e secretamente enviara emissários para comprar
trigo em lugares distantes para que pudesse continuar a distribuir pão aos
pobres.
Até que em um belo dia
e em meio à caridosa distribuição, eis que apareceu inesperadamente o rei Dom
Diniz. Para não ser repreendida pelo marido, a rainha mais que depressa
escondeu os pães no regaço sob uma manta. É claro que Dom Diniz percebeu o
gesto e, rápido no gatilho, perguntou à mulher o que ela escondera no colo.
A boa rainha Isabel,
erguendo uma prece silenciosa a Deus, respondeu com uma vozinha de nada:
- “São rosas, senhor.”
O rei,
desconfiadíssimo, não deixou por menos:
- “Rosas em janeiro? Deixai que as veja e aspire seu perfume”.
Dizem as velhas da
praia que Santa Isabel abriu os braços e – pasme! - rosas perfumadas caíram no
chão, as mais belas já vistas naquelas paragens enquanto a galera gritava:
- “Milagre, milagre!”
Essa é apenas uma das
muitas histórias milagrosas sobre o pão. Quem conhece a dos pãezinhos de Santo
Antônio, que ainda hoje em Portugal são distribuídos aos pobres em várias
igrejas no dia desse santo, 13 de junho, para serem guardados em latas? Acredita-se
que o que for mantido junto ao pão no mesmo esconderijo – geralmente moedas!
(rsrs) - não faltará naquele lar o resto do ano.
Note como o pão além
de morar na boca está na língua do povo:
“O pão do vizinho sabe mais um poucachinho”
E como repetimos a
oração que o próprio Cristo ensinou pedindo “o
pão nosso de cada dia nos dai hoje”, apesar de sabermos que “não só de pão vive o homem”.
Contaram-nos, desde as
primeiras aulas de catecismo, os milagres da multiplicação dos pães com os
quais Jesus alimentava as multidões. Sabemos que na Última Ceia ele o abençoou
e repartiu comparando-o com seu corpo. A devoção popular pelo pão diário - um
alimento que nunca é jogado fora – dá testemunho da sua importância tanto nas
práticas religiosas quanto na vida cotidiana.
A palavra pão,
portanto, sempre traduziu não só a subsistência mas a fome humana pelo bom, o
belo e o justo transformando o alimento em um símbolo espiritual sempre
presente nos festivais sagrados e nos ritos religiosos que permeiam toda a a
nossa história. O fato é que o bendito pão é considerado universalmente um dos
mais poderosos símbolos da vida e da partilha, um alimento do corpo e da alma.
É um grande equívoco,
no entanto, pensar que só a Igreja Católica foi responsável pelos pães
litúrgicos. Tudo bem que principalmente no Velho Mundo existe um pão para cada
ocasião: pão de Natal, de Carnaval e o delicioso Folar da Páscoa oferecido
pelos padrinhos aos miúdos afilhados. Mas em todas as crenças sempre rolaram
rituais e cerimônias nos quais o pão é o protagonista, quando das colheitas e
vindimas com a intenção de unir as pessoas.
Em quase toda a Europa
continental durante séculos sobreviveu a tradição de dar as boas vindas
repartindo o pão e oferecendo o sal para fortalecer os laços de amizades.
fotografia Moacir Pimentel |
Se no Cristianismo o
pão, enquanto a hóstia do sacramento da Eucaristia, representa simbolicamente o
corpo do Cristo, na religião judaica ele também é muito significativo e
abençoado antes das refeições. Tanto judeus quanto cristãos santificaram o pão
e o respeitaram misticamente.
O Velho Testamento nos
dá um belo testemunho do preparo dos grãos, de como as mulheres judias
amassavam e assavam os pães que – atenção! - elas deixavam “subir” ou seja,
crescer depois de fermentados. No Livro do Êxodo os hebreus foram impedidos de
deixar que o seu pão se “levantasse como de costume”, porque deixaram o Egito
às pressas correndo atrás da liberdade.
Os judeus comemoram
esse evento comendo pães ázimos sem fermento na Páscoa judaica e ainda repetem
a Jeová a antiga oração:
“Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que fazes sair o
pão da terra”.
No Islamismo, mesmo
que não tenha um ritual para chamar de seu, o pão é considerado uma dádiva de
Deus. De Budismo e de pão com certeza o Mestre Antonio entende mais do que eu
mas penso que, talvez, os conceitos budistas sejam como o fermento para assar o
pão da meditação.
Se a gente usa apenas
fermento não fabrica pão mas sem ele o pão não cresce. O verdadeiro pão não é o
fermento mas a massa e o amasso e o calor e a prática. Há que usar tanto os
preceitos quanto os fermentos muito judiciosamente, muito sabiamente, no
impermanente caminho do meio (rsrs)
O fato é que o pão de
cada boca, sagrado e consagrado, é ação e milagre e direito humano, o produto
da longa e dura luta do grão de trigo que procurou e achou sulco e terra, dos
grãos triturados que recebem a água, da conjunção do germe e do fogo. E que
esse pão que cresce dourado, espesso e leve e quente, desde os seus primórdios
foi valioso e, de sê-lo, passou a ser oferecido aos deuses e deusas protetores
das colheitas e dos grãos, como foi o caso dos egípcios Isis e Osiris, da grega
Demeter e da romana Ceres.
Nas nossas praias e
serras o grande Milton reza do mesmo jeito ao cantar a canção Cio da Terra...
“Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão...”
Tanto o pão como a
farinha eram usados como pagamento de salários e tributos na Antiguidade, assim
como na Idade Média, substituindo muitas vezes o dinheiro nas doações feitas
aos conventos onde “a pão e água”
jejuavam os santos.
Na Europa toda, por
séculos, gerações e gerações sobreviveram basicamente de pão, quando muito
acompanhado de um bocado de carne, um pouco de alho, uma cebola, um gole de
leite ou vinho – e, se calhava! - um pedaço de queijo.
Era a velha história
hoje um pouco fora de moda em certas paragens: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”. Daí ter sido ele
revestido de sacralidade e terem as civilizações orado por ele, oferecido
flores e animais feitos de massa de pão a seus deuses e passado a decorá-lo com
cruzes de massa crocante ao som de rezas que pediam que a fornada tivesse
sucesso e suprisse as necessidades de sobrevivência diária.
Durante a Idade das
Trevas a Europa foi rural e paroquial. Os poderosos barbarizavam sem qualquer
senso de progresso ou bem comum enquanto os pobres tentavam apenas sobreviver e
o fatalismo e a superstição prevaleciam. A crença no fim do mundo sempre
iminente dava o dom das conversas. Pudera! A Peste Negra, as fomes e as guerras
quase dizimaram a população na Europa e então, comia-se um pão feito com
bolotas de carvalho, centeio, as sementes secas disponíveis e até mesmo palha
macerados com sangue de porco
O principal problema
então era ter e botar comida na mesa e a fome caracterizava a vida diária.
Naqueles tempos escuros suplicar pelo pão diário era uma realidade concreta. A
importância do pão como alimento básico diário nos dá uma noção do papel crucial
desempenhado pelos bons e confiáveis padeiros de então e de como mexer com um
deles era ofender gravemente a comunidade.
Por outro lado os
padeiros que fossem pegos fraudando nos pesos ou adulterando suas massas com
ingredientes inferiores recebiam penalidades severas. Isso deu origem à
expressão inglesa “dúzia de padeiro”.
Existem várias teorias
sobre o porquê dessa dúzia de padeiro de treze unidades em vez de doze, mas
todos concordam que ela teve origem no fato de que muitas sociedades ao longo
da história tiveram leis extremamente rigorosas em relação ao pão. Ele era um
produto vital mas, ao mesmo tempo, era fácil demais trapacear os clientes
entregando-lhes menos alimento do que aquele pelo qual tinham efetivamente
pago.
Por exemplo, no antigo
Egito, se um padeiro fosse flagrado enganando alguém, teria a orelha decepada e
pregada na porta da padaria e, na Babilônia, muitas mãos bobas foram cortadas.
Na Grã-Bretanha do
século XII com o advento do Estatuto do Pão e da Cerveja – o Assize of Bread
and Ale em vigor até o século XIX - o preço e o peso dos dois itens foram
minuciosamente tabelados e embora tal estatuto tenha sido promulgado a pedido
dos próprios padeiros, ainda assim representava um problema para eles.
Pois se acidental ou
propositadamente enganassem um cliente, dando-lhes menos do que deveriam
conforme o Estatuto e fossem pegos em flagrante delito, os padeiros estavam
sujeitos a multas e punições extremamente severas, que variavam mas poderiam
incluir, sim, a perda de uma mão, como nos tempos babilônicos.
Como fazer um pão à
mão livre com o peso e as características rigorosas exigidas pelo Estatuto era
difícil sem ferramentas modernas, os padeiros começaram a dar mais pão do que a
lei mandava para se certificar de que, caso errassem, o fariam para cima e não
para baixo. Costumavam dar treze pães quando lhes era pedida uma dúzia deles e,
da mesma forma, entregar treze medidas de farinha pelo preço de doze.
Há quem acredite, no
entanto, que ao vender treze pães pelo preço de uma dúzia os velhos padeiros
estavam acomodando prováveis revendedores do produto que assim poderiam ter
entre sete e oito por cento de lucro por unidade. Não se sabe ao certo, mas a
expressão vingou na língua inglesa.
Na Idade Média o
fermento era utilizado principalmente na pastelaria conventual e foi apenas no
final do século XVI que os padeiros passaram a utilizá-lo rotineiramente na
feitura do pão. Por esta razão, o pão era tão pesado, duro e indigesto que foi
usado como o ascendente do prato, pois sobre ele eram servidos outros alimentos
cheios de molhos que o pão absorvia e, amolecido, podia ser comido.
Os trinchos ou trincheiras – do francês trancher
ou cortar – eram simplesmente fatias de pão altas e duras o bastante para
também serem usadas como suporte de velas, sobre as quais se podia, inclusive
trinchar os alimentos. Esses trinchos
que tinham bordas grossas - como as das atuais pizzas - durante séculos
substituíram os pratos de faiança, metal ou madeira não apenas nas mesas
humildes mas mesmo nos banquetes mais nobres. À mesa no começo da refeição
todos tinham a sua fatia de pão duro como pedra, que depois de bem molhada era
comida, se a fome era grande e o pão escasso, ou atirada aos cães em tempos
mais fartos.
Nos períodos de
fartura trinchos limpos se sucediam para receber novos quitutes várias vezes
durante uma refeição. Há literatura medieval mencionando, inclusive, regras de
etiqueta em uma espécie de manual de boas maneiras à mesa que sugere três
trinchos para o dono da casa, dois para o filho e/ou o hóspede e apenas uma
mísera fatia para os demais membros do lar, inclusive suas rainhas (rsrs)
É preciso ter em mente
que quando o pão se tornou o alimento principal do povo, a base da sua
alimentação diária, consequentemente a farinha tornou-se objeto de disputa, de
guerra e paz. Ter ou não ter farinha foi uma preocupação dos governantes, por
muitos séculos, pois a sua falta era o fermento das revoluções.
A nossa História foi
pois escrita conforme ditada pelas fartura ou escassez do trigo, da farinha e
do pão, que por ser um produto de valor econômico importante e, ao mesmo tempo,
um objeto místico respeitado, foi colocado sob o controle dos reis. Foi assim
na França, Espanha e Portugal.
À exceção das cidades
portuárias onde os ricos mercadores tinham pão de qualidade somente as
autoridades eclesiásticas e os nobres podiam se dar ao luxo de escolher o pão
que comiam, até que os burgueses renascentistas voltaram a cozinhar devidamente
as massas em suas casas e o cheiro delicioso de bom pão sendo assado, como na Grécia
e na Roma antigas, perfumou de novo a vida.
Foi a constante falta
de pão que, após os descobrimentos, levou à introdução da batata americana na
dieta europeia enquanto abaixo do Equador os nossos tupinambás e guaranis, na
era da pedra polida e portanto ainda neolíticos, já dominavam o cultivo e a
fermentação do milho e os astecas do México, muito mais adiantados, já então na
idade dos metais, transformavam o milho em farinha.
No século XVII, a
França já se tornara o centro de fabricação de pães de luxo, seguida de perto
pela Áustria. Foram os protestos por causa do preço do pão que acenderam o
estopim da Revolução Francesa. Aliás aquela famosa citação atribuída a uma
Maria Antonieta sem noção, a austríaca então rainha da França, é provavelmente
uma ficção.
Segundo Dona Lenda ao
ser informada de que o povo não tinha pão para comer a odiada senhora
totalmente divorciada das condições cotidianas das pessoas comuns teria
cometido a frase sacrílega:
“Qu'ils mangent de la brioche”.
Traduzindo: “Que comam
brioches”, cuja feitura exigia açúcar e baunilha e ovos e outros ingredientes
ainda mais distantes da relidade dos seus súditos famintos.
Só que não há
absolutamente nenhuma evidência histórica de que Maria Antonieta tenha
articulado tal sandice. Quem nos contou a primeira versão dessa lenda urbana
foi o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau que – dizem! - no quarto volume
das suas Confissões, escritas por
volta de 1767, atribuiu a frase bobóide a “uma grande princesa”.
Sucede que enquanto
Rousseau se “confessava” Maria Antonieta ainda era uma menina de dez anos. Mas
como, em seguida, os escritos do filósofo inspiraram os revolucionários, o mais
provável é que eles tenham falsamente colocado a frase na boca da rainha e
espalhado a fofoca como forma de suscitar oposição à monarquia.
Mas o pão e o sal,
dois dos elementos mais essenciais da cozinha francesa, estiveram sim no cerne
do conflito. O pão, em particular, estava profundamente vinculado à identidade
nacional pois o trabalhador francês gastava com ele metade do seu salário
diário.
Como era uma questão
de Estado impedir que as pessoas se revoltassem por causa da falta do pão, os
padeiros franceses eram servidores públicos e o Estado controlava toda a sua
produção. Quando as colheitas de cereais falharam por dois anos seguidos, em
1788 e 1789, o preço do pão na França atingiu noventa por cento dos salários e
o povo padeceu de fome e o governo não conseguiu responder à crise e os
tumultos resultaram na Revolução e na guilhotina e, ao fim e ao cabo, em Napoleão.
Até meados do século
XIX, para os otimistas, ou até a recuperação econômica que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial, para os mais realistas, o pão, nas suas mais diferentes formas,
constituiu o alimento básico de toda a população europeia.
Os velhos portugueses
das aldeias que ainda não esqueceram as agruras da Segunda Guerra falam de como
durante o conflito só comiam “se fosse a vontade de Deus” o pão porque
plantavam o milho nos campos e a sopa porque cultivavam as hortaliças nos
quintais. Tais épocas magras talvez expliquem a alegria que era, até algumas
décadas atrás, a colheita do milho no norte de Portugal, onde a sua cultura e o
seu uso para a feitura do pão é muito antiga.
Eu ainda tive a sorte
de participar na nossa aldeia da “desfolha”
do milho, quando todos os aldeões velhos e jovens se reuniam para debulhar as
espigas. E se um dos pás encontrava uma das raras espigas vermelhas era uma
alegria pois Dona Tradição garantia ao sortudo o direito de beijar todas as
cachopas presentes. Pense em uma festa! A broa de milho até hoje é parte
importante da mesa do Minho. Que maravilha uma boa broa com sardinhas assadas
na brasa e uma salada de pimentos!
fotografia Moacir Pimentel |
“No São João, a sardinha pinga no pão”
Minha mulher tem
receitas antigas de “pão de massa velha”, que é aquele feito com fermento
natural. Como é o caso do pão alentejano e de muitas broas do Minho feitas por
mãos de pergaminho e colocadas para esfriar envoltas em panos de linho
defumados pela fumaça das velhas cozinhas de fogão à lenha.
O racionamento do pão
durante a Segunda Guerra Mundial pode justificar parcialmente o consumo
desenfreado do pão branco no período pós-guerra até que recentemente nas nossas
praias – graçasadeus! - rolou a redescoberta do saboroso pão de grão integral
tão mais saboroso e próximo dos pães de campanha.
Para o Brasil, foram
os imigrantes europeus que trouxeram a farinha de trigo, antes desconhecida
abaixo do Equador. Isso mesmo! No Brasil colonial – segundo o Mestre Gilberto
Freire! - era raríssima a presença do pão à mesa, substituído que era pelos
cuscuz de milho e massa e outros produtos à base da mandioca, como o beiju, a
tapioca, a farofa e o pirão. Diz Dona Lenda que os nossos matutos nos seus
primeiros contatos com a estranha iguaria costumavam descascá-la da mesma forma
que faziam com as bananas (rsrs)
Foi apenas na virada
dos séculos XIX e XX com a chegada dos nossos portugueses e italianos e alemães
que o pão começou a se popularizar no Brasil. Exatamente como em outros países
o nosso hábito de comer pão surgiu associado à urbanização e à
industrialização, quando a farinha de trigo ganhou o mundo e o conquistou.
Não se sabe porque
começamos a chamar o pão nosso de “pão francês” mas foi nas primeiras décadas
do século XX . Acusam as elites viajadas e “colonizadas” de terem trazido a
novidade da França sob a forma da receita de um pãozinho de casca dourada – o
precursor da baguete – muito em moda em Paris no fin-de-siécle e, bem assim, de
ter mandado os padeiros locais a cometerem.
O fato é que sob o
nome de cacetinho, baguetinha, bisnaga ou pão de sal, nosso pão
francês-brasileiro se espalhou do Oiapoque ao Chuí ganhando um pouco de açúcar
e gordura e substituindo o fermento natural pelo biológico para agilizar a
produção. As famílias portuguesas logo dominaram o negócio e passaram a fazer
várias fornadas de pão quente ao longo do dia, fomentando uma cadeia produtiva.
Comida é um assunto
sério: foi em volta das fogueiras, cozinhando e compartilhando os alimentos e o
vinho que viramos gente e como não gostar de pão? Pão “contudo”, de tudo,
universal, de todos os grãos, de nozes e de raízes, de aipim, batata, cenoura.
Pão branquinho, preto, mulato mas sempre ali presente à mesa limpando os molhos
dos pratos.
Pão com manteiga, ovo,
mortadela, requeijão, patê e geleias e marmeladas feitas em casa. Ah um bifinho
no prego ou um misto quente e, de vez em quando, um hamburger que ninguém é de
ferro, folks. Pão árabe com homus tahine ou babaganoush, chapati com curry de
vegetais, pão ázimo, bruschettas, ciabattas, panettone, baguettes e croissants,
pão doce, francês, de milho, de alho.
Pão dormido e sagrado
que não pode ser desperdiçado e então vira torrada, farinha de rosca, papas,
migas, pudim de peixe, torta de banana, sopa de vinho ou fatias paridas. Pão e
circo e, se não tem, “os brioches” que não deram jeito nem darão porque o pão é
nosso e de cada dia e sem ele não tem graça.
Depois de tanto
rascunhar da próxima vez que eu comer um pão antes olharei bem para o danado
sabendo que mastigarei uma testemunha da história da humanidade e da
civilização.
Depois dessa loooonga
conversa deliciosa me resta ainda uma curiosidade:
Quem cometeu pela
primeira vez o milagre do pão?
Mas isso já é outra
conversa e pré-histórica...
Devorei o post feito pão. Valeu
ResponderExcluirCarlos,
ExcluirGostei do comentário. Volte sempre e bom apetite e muito obrigado.
Moacir,
ResponderExcluirParabéns por mais um belo e delicioso artigo. Também no Brasil no dia de Santo Antônio tem missa solene e os fieis levam para suas igrejas pão para os pobres. A tradicional entrega dos pães de Santo Antônio dos Capuchinhos é famosa. Muitas padarias ainda fazem os pãezinhos de Santo Antônio que são guardados com cuidado para que não nos falte em casa o alimento. No dia 13 de junho também se reza a oração de Santo Antônio.
Santo Antônio, amigo dos pobres, que
inspirais vossos devotos a vos honrar
oferecendo pão aos necessitados,
eu vos peço a graça de que nunca falte o pão à nossa
mesa, ganho com trabalho digno e justo.
Eu vos prometo, de minha parte, olhar
sempre com carinho pelos mais
necessitados, oferecendo um pouco do pão
que tenho à minha mesa.
Sobretudo, ajudai-nos a buscar sempre o Pão vivo
que desceu do céu, que é o próprio Jesus Cristo
na Eucaristia, verdadeiro alimento para a
vida eterna.
Vós, que tantas vezes o tivestes
em vossas mãos e aos outros o distribuístes
com piedade, fazei que também nós nos
aproximemos com amor deste Pão da vida.
Amém.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirDevo confessar que só vou às igrejas para os casórios que não posso evitar (rsrs) Então peço-lhe que me perdoe pela minha desinformação quanto às celebrações do dia de Santo Antônio nas nossas paragens tropicais e agradeço-lhe pela bela oração que enriquece o post. É engraçado como na vida corrida da cidade grande a gente se distância de eventos e costumes que, em comunidades menores, continuam a ter importância cotidiana. Nas aldeias da t'rrinha, por exemplo, lá perto de onde pousamos, todos vão aos cemitérios aos sábados e à missa domingueira e participam das festas dos Santos - Antônio, João, Pedro, Bento, Tirso, Ovídio e Santa Eufêmia. Seja pela fé ou para comer os doces, para ver os andores ou as danças, para jogar conversa fora ou para tomar uns copos com os vizinhos, simplesmente se vai para a "festa". Por causa dessas coisas grandes e pequenas a vida talvez faça mais sentido. Fico feliz que você apreciou o post e mando-lhe outro abraço
Você me deixou com água na boca, Moacir. Adorei a história do pão servindo de prato que me lembrou do melhor pão que já comi na vida. Foi em Gramado num restaurante especializado em sopas servidas dentro de pães.Não tenho certeza mas acho que é uma receita italiana.Tinha vários tipos de sopas e escolhi uma com queijo mas o melhor foi o pão quentinho e crocante com o formato de uma tigela redonda. Não esqueço a gostosura que foi tomar a sopa cremosa e comer o prato aos pedacinhos kkk Obrigada pela lembrança deliciosa!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirQue bom que você lembrou, lendo o texto, do pão da sua vida (rsrs) Eu pesquisei mas parece que ninguém sabe dizer se a receita da "sopa no pão" é italiana ou alemã. Embora a gente saiba que os romanos e os germânicos se encararam na Antiguidade me surpreendi ao descobrir que a palavra italiana para sopa - zuppa - vem do alemão mais arcaico - suppa - e que ambas significam “pedaço de pão molhado”. Nada mais apropriado já que o pão desde as cavernas é o mais fiel companheiro da sopa, nas mesas pobres e ricas, em todas as latitudes do planeta, matando todas as fomes. Obrigado pela leitura e comentário delicioso.
Abração
Moacir,
ResponderExcluirArtigo simplesmente espetacular!
Mais não escrevo porque mais não precisa ser dito.
Um forte abraço.
Saúde e paz, meu caro.
Chicão,
ExcluirMuito obrigado mas simplesmente o artigo não é "espetacular". Trata-se apenas de uma colagem de pretéritos comentários meus, aqui mesmo nas Conversas para o Antonio e a Donana , retalhos de vida, bytes de memória, fatos históricos e, last but not least, uma pesquisa cuidadosa.
Confesso que não consigo decidir se me alegro com tão gentil comentário, ou se me entristeço sabendo que ele é da lavra de um sujeito de "voz de trovão" que acredita que o silêncio é de prata e a palavra de ouro (rsrs)
Acredito que sempre haverá um boa história pedindo para ser contada e muito mais que "precisa ser dito".
Outro forte abraço.
Ótimo texto. Além do pão e do sal acho que também presenteavam os hóspedes com o vinho caseiro, símbolo da saúde. Nos tempos medievais o vinho era o único analgésico disponível para os pobres.
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirVivendo e aprendendo. Jamais imaginei que o vinho usado como agente bactericida para lavar ferimentos nos velhos filmes de guerra, também tivesse sido analgésico. Mas, sim, faz sentido (rsrs) O fato é que , na Idade Média, o vinho caseiro ganhou disparado a batalha contra a cerveja, por exemplo, porque para ser feita ela precisava dos grãos que então eram artigo de luxo e reservado para o fabrico do pão. Em vez fazia-se vinho com as uvas da ramada que mesmo o servo mais pobre cultivava atrás de casa, com bagas e frutas silvestres e por aí vai. Muito obrigado pela participação e o interessante comentário.
1)Texto primoroso Moacir, nota 10 !
ResponderExcluir2)Durante um tempo de solteiro morei em um antigo mosteiro budista de Santa Teresa,RJ, que não existe mais.Fui aprendiz de cozinha e fazíamos pão de trigo integral, sovando bem a massa. Dizíamos que, ao sovar, estávamos sovando nossas negatividades.
3)Há alguns minutos acabei de saborear, três fatias quentinhas de pão integral alemão com manteiga mineira.
4)Esse pão, dizem, é uma fórmula dos camponeses da Westfalia(Alemanha). É muito bom !
Vizinho Antonio,
ExcluirPão "contudo" é uma maravilha e, como você, prefiro os integrais. Obrigado pela nota generosa mas, principalmente, por ter teclado lá atrás, na caixa de comentários do seu Padeiro Etrusco, que:
"Se desenvolver um pouco mais este comentário vira um artigo. Fica a sugestão."
"Gratidão"
Caro Moacir,
ResponderExcluirUm artigo magnífico. Eu não sei como você consegue pensar em tantos temas interessantes para escrever mas só tenho a lhe agradecer pelas boas leituras. Nelas aprovo 100% a sua fluência na linguagem e o seu grande talento narrativo. Parabéns.
Caro Alexandre,
ExcluirNa verdade às vezes dá branco total mas aí eu aceito sugestões dos familiares e amigos (rsrs). Obrigado pelas leituras e as exageradas palavras de incentivo.
Bendito Moacir que se pôs a falar do bendito pão.
ResponderExcluirE como fala bem! "Esse pão nosso que é de cada dia e sem ele não tem graça". E os muitos usos do pão velho? Maravilha.
Padaria me tira do sério. Quando lá, quero um pouco de cada e ainda é pouco. Pão que te quero pão, pão com salada, pão com queijo, com pernil. Pão com linguiça, sempre me lembrando minha irmã que, em perambulanças lusitanas, se deparou com a placa na estrada "temos pão com linguiça. E sem". Pois é. Pão com molho, pão com manteiga. Até pão com nada. Com vinho, com café, com chá.
Obrigada por tão bom pão.
Até mais. Com pão ou sem.
Caríssima Donana,
ExcluirTambém eu sou maluco por uma boa padaria. No tempo dos curumins meninos tinha o "piquenique" dos domingos à noite, o que significava uma ida à padaria mais próxima - só o cheiro valia o tumulto! - e a tribo autorizada a escolher os seus pães e recheios preferidos. Depois colocávamos aquilo tudo - pães de todas as cores e feitios, brancos e integrais com aquelas sementes por cima, queijo disso e daquilo e de minas, peito de peru, mortadela, salame, manteiga, geleia, mel e não, não esquecíamos alguns doces! - em cima da mesa de centro da sala e, todos a caráter - descalços e sentados no chão! - dávamos início ao banquete do pão "contudo". Bons tempos! Hoje, a ementa domingueira mudou para pizza ou japa delivery mas, de vez em quando, ainda tomamos um café da manhã de respeito na nossa padaria de estimação.
Um ótimo final de semana para todos nós e "até mais".
Olá, bom dia,
ExcluirVocês me encantam!
Ótimo fim de semana também.