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29/09/2017

O Monge e o Espírito Tarado

Suzuki Harunobu - Mau Comportamento - xilogravura - 1770 (imagem Wikipedia)

Antonio Rocha
Estou recontando uma história que faz parte da quase três vezes milenar literatura budista:
Em um pequeno povoado, assim um pouco afastado da cidadezinha, havia um monge idoso que morava sozinho em uma cabana. Então os moradores da cidade combinaram que cada dia uma família iria se encarregar do almoço e, quando terminasse a última casa, a “roda retornaria a rodar” que é uma expressão tipicamente budista para representar a eternidade do tempo sempre girando impermanentemente, infinitamente.
Cada dia, na hora do almoço, uma pessoa levaria o que hoje nós chamamos de “kentinha”. Antigamente era um recipiente de barro, com os alimentos e um pano de prato envolvendo e protegendo a comida.
Quando eu era criança, vi muitas vezes, vizinhos levando a comida desse jeito para os trabalhadores nas obras, bem antes do advento das “quentinhas”.
Voltemos ao texto; belo dia então foi escolhida a menina Fulana, adolescente, filha de uma devota família. A mãe preparou com todo esmero e carinho o prato. De acordo com a multimilenar tradição, quando você, de livre e espontânea vontade oferece alimentos a um monge que vive retirado do mundo, só rezando, meditando, isso traz muitas bênçãos para a família.
- Fulana, hoje é a sua vez de levar o almoço do monge! – chamou e mãe.
E prontamente a menina apareceu, toda feliz para cumprir sua tarefa religiosa.
Lá se foi contente pelo caminho rumo à floresta onde o religioso morava.
Mas... o que não estava no roteiro é que a jovem sempre demorava um pouco, conversava com o monge enquanto ele almoçava e depois trazia a tigela vazia para lavar.
Então, ela voltou rapidamente, toda assustada, cansada com o coração batendo apressado e com uma cara estranha. Claro que a mãe perguntou:
- O que foi que houve menina, você entregou o prato ao monge?
- Entreguei sim mãe, mas...
- Mas o quê? Fala logo...
- Mãe é que o monge tentou me agarrar...
- Ah! meu Senhor Buddha, que história mais esquisita, e logo na minha família... aconteceu, de fato, o que, Fulana?
- Na verdade mãe, não aconteceu nada... mas ele quis me agarrar, eu deixei a comida lá e saí correndo...
- Era só o que faltava, será que não é fantasia sua, dessa cabeça oca sua, nessa idade as pessoas imaginam muitas coisas desse tipo, viajam fora da realidade.
- Não é mãe, eu não falo mentira, eu tenho certeza...
- Então vamos fazer o seguinte... temos que pegar o prato de volta. Você vai voltar lá e vai contar ao monge tudo o que você me disse, vamos ver qual vai ser a reação dele.
A contragosto a menina voltou e quando avistou o monge ele já havia almoçado devolvendo o prato de barro.
- Ô menina, que cara esquisita é essa? Algum bicho te mordeu no caminho?
- Monge, desculpe, mas é que eu contei a minha mãe que o senhor quis me agarrar, perdão mestre...
O religioso começou a rir com uma gargalhada alta e disse:
- Ô Fulana, diz para sua mãe que naquela hora, estava perto de mim um Espírito tarado e ele me influenciou, atuou em mim, mas agora já passou, ele já foi embora...
- O senhor vai ficar chateado comigo?
- Claro que não, você falou a verdade e eu também estou falando a verdade. Pode voltar e muito obrigado pelo almoço que estava ótimo!
Enquanto o religioso devolvia o prato vazio, recitou um mantra de agradecimento pela refeição. Abençoou a menina, sem tocá-la e ela voltou satisfeita e sorridente.
Moral da História: O Budismo tem uma outra abordagem para o sexo, diferente do Ocidente. Hoje, numa linguagem corrente no Brasil, diríamos que o monge assediou a adolescente. Mas a Literatura budista e a espiritualista também confirma isso, muitas vezes, não é só a pessoa, só a carne querendo o sexo, às vezes, também é um Espírito de outra dimensão, um ser invisível, que por uma série de fatores, que não vem ao caso agora, para não tornar o artigo longo, pode atuar no médium e, às vezes, ocorre o enlace...
Alguns dizem também que, essa história de Espírito, é uma desculpa esfarrapada...
Cada um tire as suas conclusões...


27/09/2017

O Começo da Ópera

Página de uma das primeiras edições da partitura vocal do Rigoletto de Verdi, com ilustração de Roberto Focosi 



Francisco Bendl
Certamente a sétima arte, conforme é considerado o cinema, dificilmente arrebataria a plateia que possui se nos grandiosos filmes já produzidos e multipremiados não houvesse a música, na condição de transportar o espectador para o estado desejado do roteirista, se de pavor, alegria, medo, terror, felicidade, surpresa...
Bem antes de terem sido desenvolvidas as máquinas de filmar e depois o cinema propriamente dito, a ausência de diálogo era compensada pela música, e tocada ao vivo por um pianista que ficava perto da “tela” do cinema, que tinha de ser muito preciso nos seus acordes para não entoar notas que se diferenciavam da cena!
Pois antecedeu ao cinema, à teatralização de atores específicos para esta nova arte cinematográfica, gente com feições bonitas e significativas e dotadas de expressões corporais que por si só davam o recado pretendido, o teatro, que sempre foi a diversão do passado até os dia de hoje!
Mas também faltava aos espetáculos uma certa emoção, acumulando aos atores das peças dos compositores mais famosos, que se desdobrassem para levar à plateia a carga de dramatização necessária à essência do texto, exigindo além da capacidade interpretativa vozes potentes, pois também não havia como ampliar o som dos participantes, apenas a acústica do teatro.
Em meados de 1590, as primeiras óperas foram encenadas em Florença, e um grupo que reunia nobres, músicos e poetas, mostrou-se interessado em conhecer mais profundamente a cultura da Grécia Antiga, mais precisamente a tragédia grega.
Este grupo foi denominado de “Camerata”, acreditando que os gregos CANTAVAM, em vez de declamar suas tragédias.
A Camerata chamava suas composições de dramma per musica ou ópera in musica (obra musical). O termo ópera é uma forma reduzida de ópera in musica.
Jacopo Peri, pertencente à Camerata, compôs aquela que é considerada como a primeira ópera, Dafne (1597).
A Ópera é uma peça onde todas as falas ou quase todas são cantadas pelos personagens, sendo possivelmente a mais complexa de todas as formas de arte, pois reúne ação dramática, música orquestral, cenários e figurinos, muitas vezes balé ou algum outro tipo de dança, e até animais no palco!
Para narrar uma história, a ópera emprega a enorme força da música para comunicar sentimentos e emoções, haja vista a música expressar essas emoções de maneira muito mais vigorosa do que as palavras.
Os cantores, acompanhados pela orquestra, podem criar uma situação dramática com mais vida do que os atores em diálogo falado, ao mesmo tempo que a música vocal e orquestral também consegue transmitir ao público detalhes sobre um personagem e seu estado de espírito.
Visto que a música expressa tão bem as emoções, a maioria dos compositores baseia suas obras em histórias altamente emocionais, e sendo a ópera mais do que uma peça falada, tende a acentuar as cenas passionais de alegria, amor, ciúme, crueldade, ira, tristeza, triunfo e vingança. A música, em decorrência, contribui para dar mais colorido às cenas de que participam muitos figurantes, como uma parada militar ou coroação.
A comédia Sonhos de uma Noite de Verão, de Shakespeare, tem algumas cenas que requerem música. Esse tipo de música é denominada de incidental, pois tem um enredo completo mesmo sem a parte musical, havendo muitos compositores que escreveram belas músicas e que podem ser apresentadas independentemente da peça.
A Ópera tem dois elementos básicos:
O Libreto e a Música.
Para melhor apreciação e compreensão de uma ópera é conveniente que o espectador leia o libreto ou o resumo do enredo da ópera que vai ser apresentada. O libreto é menor do que o texto de uma peça teatral, porque cantar toma bem mais tempo para pronunciar um determinado número de palavras. Algumas óperas foram criticadas pelos seus libretos medíocres que, no entanto, para muitos apreciadores deste espetáculo musical não é importante, pois estão mais interessados em ouvir boa música tocada e cantada por bons músicos. Mesmo assim, alguns libretos foram considerados como verdadeiras obras-primas da literatura, como acontece com os escritos pelo poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal para as óperas de Richard Strauss.
As partes mais emocionantes dos libretos são os solos chamados árias, sendo a maioria escritas em verso, com rima e ritmo, e invariavelmente as músicas compostas para essas passagens são as mais belas e dramáticas de uma ópera. Algumas delas contém recitativos e árias, como acontece com o Don Giovanni, de Mozart, que após declamar um recitativo canta uma ária que expressa o seu estado de espírito.
As óperas podem ser classificadas na sua forma de arte como Barroca, Séria, Bufa e Clássica.
A Barroca consiste em recitativos, cantados por solistas, e em passagens com corais, acompanhados por uma pequena orquestra. Surgiu na Europa Ocidental entre 1600 e 1750, e elaborada emocionalmente.
Cláudio Monteverdi, o primeiro grande compositor de ópera barroca, compôs a primeira obra-prima desse gênero, Orfeu, em 1607. A primeira casa de espetáculos dedicada à ópera, o teatro San Cassiano, foi inaugurado em Veneza em 1637.
Na ópera Séria, seus compositores baseavam suas obras em histórias de antigos reis e rainhas ou em deuses e deusas da mitologia. A ária da capo (do começo) tornou-se a maior característica da ópera séria.
A ópera Bufa surgiu sob a forma de quadros satíricos, chamados de intermezzos, que eram representados em frente à cortina, entre um ato e outro de uma ópera séria. Os personagens de uma ópera bufa, ao contrário da séria, eram pessoas comuns que retratavam as profissões e as classes sociais da época, inclusive médicos, fazendeiros, comerciantes, empregados domésticos e soldados. A ópera bufa típica descrevia situações cômicas do cotidiano, havendo personagens que cantavam mediante o dialeto do local da apresentação, e não o italiano formal da ópera séria. Uma obra de grande sucesso foi La Serva Padrona (A Criada Patroa), em 1733, de Giovanni Pergolesi.
A ópera Séria e ópera Bufa italianas eram extremamente populares. Foram compostas centenas delas e muitas eram apresentadas durante uma temporada e depois esquecidas. Em vista da enorme demanda de novas óperas, os compositores faziam uso do mesmo libreto várias vezes. Embora os amantes da ópera se ressentissem dos péssimos libretos das óperas italianas, com enredos e personagens pouco convincentes, o público dos séculos XVII e início do XVIII apreciava as obras, principalmente pela sua música.
Na década de 1670, surgiu um estilo de ópera caracteristicamente francês.
Jean Baptiste Lully, embora nascido na Itália, foi o criador da ópera francesa.
Em meados do século XVIII, Jean Philippe Rameau tornou-se o mais proeminente compositor operístico da França.
Os compositores franceses evitavam o recitativo seco, acompanhando-o com toda a orquestra e fazendo-o obedecer ao ritmo do idioma francês. Em vez das árias rebuscadas, davam preferência a uma expressiva linha melódica e árias mais simples. Tanto no período barroco como nos que se seguiram, o balé desempenhou um papel importante na ópera francesa.
A ópera na França era patrocinada pela nobreza. Lully tornou-se famoso na corte de Luis XIV. Nobres franceses e de outros países demonstravam suas riquezas e poder mantendo grandes companhias de ópera e patrocinando produções que se destacavam pelos dispendiosos efeitos cênicos.
No início do século XVIII generalizou-se um movimento de insatisfação com relação à ópera italiana.
As reclamações mais frequentes diziam respeito aos libretos artificiais e personagens inconsistentes, mencionados acima, e com árias que só serviam para glorificar os cantores.
Esta reação levou a ópera para um novo estilo, posteriormente denominado de Ópera Clássica.
O período clássico começou aproximadamente na década de 1750 e durou cerca de setenta anos. O primeiro compositor importante do classicismo foi o alemão Christoph Willibald Gluck, mas o maior compositor clássico foi o austríaco Wolfgang Amadeus Mozart.
Gluck achava que ação dramática e música de conteúdo expressivo deveriam ser unificadas na ópera. E assim fez em Orfeu e Eurídice (1762) e em outras obras. O alemão foi também o primeiro compositor a inspecionar pessoalmente todas as fases de produção de suas óperas, exigindo que fossem realizados mais ensaios que de costume à época.
Mozart sentia que a música deveria ser integrada à ópera, assim como Gluck, tornando mais aceitáveis enredo e personagens. Alcançou este objetivo interligando cuidadosamente a música instrumental e vocal com a ação dramática, demonstrando talento especial na utilização da música para criar caracterizações – isto é, desenvolver a individualidade dos personagens. O austríaco se utilizava desse estratagema tanto nas cenas em conjunto quanto nas árias.
Mozart compôs óperas em italiano e em alemão.
Suas óperas mais conhecidas são As Bodas de Fígaro (1786), Don Giovanni (1787), Cosi Fan Tutte (1790). As suas obras em italiano mais importantes são O Rapto do Serralho (1782) e A Flauta Mágica (1791).
Essas duas óperas contém elementos de Singspiel (forma de ópera alemã em que o canto se alterna com partes faladas), em substituição ao recitativo. A linha melódica é quase sempre simples, empregando elementos do folclore alemão.
A Ópera no Século XIX
O Romantismo, movimento que dominou as artes, inclusive a ópera, desde o fim do século XVIII até meados do século XIX, destacava o caráter emocional e romântico do que havia. A típica ópera romântica era ambientada em cenários naturais, o enredo baseado em temas folclóricos ou sobrenaturais e a música brilhante e bem descritiva. O compositor alemão Carl Maria von Weber foi o autor de uma das primeiras e maiores óperas neste sentido, O Franco-Atirador (1821)
O compositor alemão Carl Maria von Weber foi o autor de uma das primeiras e maiores óperas neste sentido, O Franco-Atirador (1821).
A história é ambientada em uma floresta e quase todos os principais personagens são pessoas do campo. A orquestra desempenha um papel importante na descrição dos sons da natureza e das forças do sobrenatural.
A “Grande Ópera” desenvolveu-se no início do século XIX, especialmente na França. Os compositores dedicados à grande ópera davam preferência a episódios históricos, nos quais podiam incluir cenas com grande número de figurantes, espetaculares efeitos cênicos, além de uma música instrumental e vocal bem elaborada e complexa.
Giácomo Meyerbeer, compositor alemão, tornou-se o nome mais importante da grande ópera francesa, com obras como Os Huguenotes (1836) e O Profeta (1849).
Gioacchino Rossini, compositor nascido na Itália e radicado na França, escreveu uma famosa grande ópera, Guilherme Tell (1829).
Giuseppe Verdi dominou a ópera italiana na segunda metade do século XIX. Talvez ainda seja o mais popular compositor operístico de todos os tempos.
Entre as obras mais conhecidas de Verdi estão Rigoletto (1851), O Trovador (1853), La Traviata (1853) e Aída (1871).
Destacam-se pela força emocional, expressa através de um vocal de grande eloquência. Aída é também exemplo de Grande Ópera.
As duas últimas óperas de Verdi – Otelo (1887) e Falstaff (1893) -, foram compostas quando o italiano tinha mais de setenta anos, demonstrando que a idade avançada não lhe diminuíra o gênio musical.
Ambas são verdadeiras obras-primas de caracterização através da música e evidenciam uma completa unidade entre a música vocal e instrumental.
Richard Wagner foi o mais importante compositor alemão de óperas do século XIX. Achava que todos os componentes de uma produção operística – figurinos, ação dramática, música orquestral e vocal, e encenação – deveriam receber igual atenção. Wagner escrevia os libretos e, sempre que possível, supervisionava a encenação e outros aspectos da produção.
O compositor alemão abandonou as formas tradicionais, tornando a orquestra tão importante quanto os cantores. Em várias de suas últimas obras, os temas musicais são executados por instrumentos.
Quando jovem, Wagner ficou vivamente impressionado com a ópera romântica O Franco-Atirador, de Weber, a ponto que uma de suas primeiras obras, O Navio Fantasma (1843), reflete características românticas semelhantes. Tais qualidades incluem os aspectos sobrenaturais do enredo e a representação musical das forças da natureza, como o vento e o mar. Em O Navio Fantasma Wagner usou pela primeira vez o leitmotiv (motivo condutor) para identificar certos personagens, lugares ou ideias cada vez que apareciam na dramatização. O compositor desenvolveu muito essa técnica do leitmotiv em suas últimas óperas, Tristão e Isolda (1865) e as quatro obras que compõem O Anel dos Nibelungos (1876) representam Wagner na plenitude de seu estilo pessoal.
O Nacionalismo, um sentimento de orgulho pela Pátria, influenciou muitos compositores europeus do século XIX. Um grande número de obras desses autores era baseado em temas folclóricos e motivos populares.
Assim, o nacionalismo tcheco domina as óperas de Antonin Dvorák e de Bedrich Smetana.
A Noiva Vendida (1866), de Smetana, e Rusalka, a Ninfa da Água (1901), de Dvorák, são bons exemplos de óperas nacionalistas.
Entre os compositores russos de óperas nacionalistas encontram-se Modest Mussorgski com Boris Godunov (1874) e Alexandr Borodin com Príncipe Igor (1890).
As Óperas Veristas: No final do século XIX, alguns compositores italianos começaram a escrever óperas de um realismo pungente, cujos temas versavam sobre a vida cotidiana. Essas óperas veristas (verdadeiras ou realísticas) focalizavam ações ou emoções violentas. As primeiras e mais conhecidas óperas veristas são Cavalleria Rusticana (1890) de Pietro Mascagni, e Os Palhaços (1892), de Rudgero Leoncavallo.
No Brasil, o maior compositor do século XIX foi Carlos Gomes, autor de várias óperas. Embora às vezes fazendo uso de libretos com temas nacionalistas, sua música seguiu o estilo da ópera italiana, sendo influenciada sobretudo por Verdi.
Entre suas obras, as mais conhecidas e famosas são O Guarani (1870) e O Escravo (1889).
A abertura de O Guarani é verdadeiramente extraordinária, pois além de servir para anunciar A Hora do Brasil
muito se aproveitou e bem de um dos trechos desta abertura o cantor grego, radicado no Brasil, Patrick Dimon, que fez muito sucesso justamente com a maviosidade desta obra no seu início
Numa próxima conversa falaremos sobre a ópera no século XX.


25/09/2017

Duas histórias de gatos

Wilson Baptista Junior / Wilson Baptista - "L'Essence de l'Ennui"

Wilson Baptista Junior
A fotografia que abre este post tem uma história.
Esse bocejo hierático, essa pelagem de tigre branco, tem um título bonito – “L’Essence de l’Ennui” (A Essência do Tédio) que, espero, transmita o seu espírito, e no seu tempo ganhou entrada em três ou quatro salões de fotografia aqui e lá fora.
E muita gente quis conhecer o gato magnífico que foi seu modelo. Cujo nome – “César” – combinava com sua altanaria.
Só que... Como muitas vezes na vida, as aparências enganam.
Esse gato imperial da fotografia era uma gatinha vira lata, gatinha de rua cuja mãe um dia entrou por um basculante e se escondeu, para parir a ninhada, no fundo de um armário no laboratório de fotografia da nossa casa mãe.
Depois da família felina devidamente expulsa (bons tempos de ruas calmas com árvores, gramados e sombras e casas com jardins e quintais abertos e ratos e pássaros onde os gatos viviam sem se apertar), a gatinha depois de crescida voltava de vez em quando lá para casa. Acabou sendo mais ou menos adotada e ganhou o nome de César, dado, sei lá por que razão, por um de meus irmãos ou irmãs menores, e só depois descobrimos que era uma gata e não um gato, aí já era tarde para mudar...
Era uma gatinha cinzenta, rajada, pequena, sem nada que a distinguisse de todos os outros gatos de rua. Gostava de tomar sol nos degraus de pedra também cinzenta da escada do jardim de entrada de nossa casa.
Um dia qualquer eu estava sentado no murinho baixo que separava o jardim da rua, não me lembro se sozinho ou conversando com alguém, com uma máquina fotográfica na mão, o César dormitando num dos degraus, quando ele acordou e se espreguiçou. Eu virei a máquina para lá e esperei o bocejo que inevitavelmente viria.
Uma fotografia bonitinha, como milhões de fotografias bonitinhas de gatinhos que foram e são tiradas todo dia por esse mundo afora. Mas depois, quando fui revelar o filme, enquadrei no ampliador só a cabeça do gato, e mostrei para o meu pai. Ele olhou para a foto e disse – Se conseguíssemos isolar só esse bocejo ficaria interessante...
Resolvemos fazer um processo que se chamava “compressão de tons”, para enfatizar a boca e clarear o resto. Sem retoque nem manipulação externa, porque o resultado para uma fotografia de salão deveria ser exclusivamente fotográfico.
Naquele tempo não existia o Photoshop, que hoje torna tão fácil fazer o que se quer com uma imagem. A compressão de tons era feita copiando-se o negativo original num filme de alto contraste, depois o positivo resultante novamente no filme de alto contraste, produzindo outro negativo que seria por sua vez copiado de novo e assim sucessivamente, cada vez diminuindo a gama de tons que separavam o branco do preto até chegar ao ponto desejado. Com negativos grandes, essas cópias eram feitas por contato, colocando-se o negativo encostado no outro filme debaixo de uma placa de cristal e expondo-se à luz. Mas o negativo dessa fotografia era um pedacinho de filme do tamanho de um selo de correio, e a parte que interessava era um pedacinho menor ainda lá no meio dele. Se tentássemos usar este processo, qualquer imperfeição no vidro ou o menor grão de poeira seria ampliado mais de trinta vezes no resultado final. E como teríamos de repetir o processo várias vezes, nenhuma chance de conseguir um bom resultado.
Para copiar negativos deste tamanho usava-se um aparelho colocado à frente de uma lente especial na máquina fotográfica, que segurava o negativo na distância correta para ser fotografado através da lente macro, capaz de gerar uma imagem do mesmo tamanho do que estava sendo fotografado. Fácil. Mas, claro, não tínhamos nem o aparelho nem a objetiva macro...
Nossa oficina ficava ao lado do laboratório. Papai fez um aparelhinho, uma verdadeira joia de metal e borracha cinzenta, que ajustava um negativo 35mm em cima de um pedaço de filme também de 35mm, e conservava os dois bem planos, com uma pressão de molinhas minúsculas sobre uma moldura de metal sem usar vidro.
Voltamos para o laboratório. Fizemos oito cópias sucessivas em filme de alto contraste, revelando negativo por negativo por inspeção, até conseguir uma separação boa. Depois, uma ampliação cuidadíssima num papel Agfa Brovira, onde depois dos primeiros segundos de exposição uma máscara com um corte no formato aproximado da boca da gatinha foi segura na mão entre a lente do ampliador e o papel fotográfico, permitindo “queimar” mais a boca do que o resto.
Fácil e rápido, como vocês veem, gastamos pouco menos de um fim de semana inteiro para chegar ao resultado final...
Esta fotografia, por justiça, deveria concorrer sob o nome de dois autores, bem mais o dele, até, do que o meu, mas como isso não era permitido e o costume era o de colocar o nome de quem apertou o obturador, foi rodar por aí só no meu nome.
Depois de ir e voltar algumas vezes, foi guardada junto com uma quantidade de outras veteranas de exposições, protegidas da luz, e aí ficou por mais de quarenta anos. Depois papai a mandou para mim e eu mandei emoldurá-la e a Ana a pendurou na parede do meu escritório cá em casa.
Quando fiz um comentário sobre um belo post do Heraldo sobre o gato dele, escrevi que um dia ia escrever sobre esta fotografia. Mas havia um problema: não existia em arquivo digital; não podia escaneá-la por duas razões – era maior do que o meu scanner e, mais importante, não deve mais ser retirada de trás do vidro que a protege porque nessa altura, exposta ao ar, o processo de degradação que qualquer cópia em papel acaba por experimentar iria fazer esmaecerem-se mais rapidamente ainda os tons originais. O negativo, aquele pedacinho minúsculo de filme, se perdeu há muitos anos; não há mais como refazer essa velha amiga.
Aí pensei em fotografar o quadro. Só que o vidro da moldura funciona como um espelho, e a fotografia saia um composto do gato bocejando, do fotógrafo com sua máquina e das estantes de livro na parede oposta...
Um pano preto pendurado tampando a estante de livros, uma roupa escura para o fotógrafo e um filtro polarizador na objetiva conseguiram atenuar e quase fazer desaparecer os reflexos. E aí está ela. Pelo menos reconhecível...
Bom, contei uma história de gatos. A segunda, para os leitores que não leram meu comentário para o Heraldo, vai agora.
Eu fui criado com cachorros, de diversos tipos, passando pelo primeiro pastor alemão de meu pai, o Prinz, por um bravíssimo cachorro boiadeiro, o Kim, que vivia na corrente, e por fox terriers diversos e brincalhões em casa e nas casas de parentes, até, depois de grande, os vários pastores belgas que meu pai criou. Gatos só os gatinhos de rua que entravam pelo basculante e se abrigavam nos desvãos do subsolo no laboratório de fotografia, e que a gente tinha que por para fora (todos menos um, o César, que estabeleceu conosco uma espécie de paz armada e que virou essa fotografia pendurada na parede à minha frente de que eu contei no começo).
Bastante tempo depois de casado veio para cá o gato da Ana, um persa himalaia com um nome de duas linhas de comprimento e um pedigree de duas páginas, mas que aqui virou simplesmente o Bartoca.
Claro que não nos demos bem, um gato de modos imperiais aos olhos de quem eu era obviamente um usurpador tentando posar de dono da casa dele, e um homem que pensava que era o dono da casa, criado no velho sistema patriarcal mineiro. Além disso o gato, como todo bom persa, era um dispensador ambulante de pelos, tão finos que flutuavam no ar e conseguiam entrar por todas as frestas dos meus computadores, que tinham que ser frequentemente abertos e aspirados, adorava explorar os numerosos cabos, estabilizadores e, pior, interruptores debaixo das mesas do escritório e ainda tinha como lugar predileto para afiar as garras o estofamento de couro de nossas poltronas Mole.
Quem cuidava dele, claro, era a dona. Quem brincava com ele eram nossos filhos. E eu e ele nos olhávamos de longe.
Até que um dia a dona teve que viajar sem mim. E deixou os dois em casa para conviverem do jeito que pudessem.
E aí, uma noite eu estava lendo sentado no sofá quando ele veio chegando, chegando, farejou a perna de minha calça e de repente se aboletou ao meu lado. E eu compreendi que ele procurava, nas minhas roupas, o cheiro da dona ausente. E ficamos ali, juntos, dividindo a mesma saudade.
E quando a dona chegou, dias depois, nos encontrou almoçando juntos, compartilhando, ele no seu pratinho e eu num sanduíche, a mesma lata de atum em pedaços...


23/09/2017

Os retratos de Modi

Modigliani - The Boy (Wikimedia Commons - Google Art Project)

Moacir Pimentel
Modigliani foi um pintor profundamente italiano e claramente interessado na linguagem do corpo, a língua da arte italiana. A pintura que inaugura o post torna uma coisa óbvia: o interesse do pintor retratista não era apenas pelo retrato em si, mas pelas as formas criadas dentro da composição.
Nessa tela o ângulo reto da mesa sobre a qual o menino descansa o braço é contrabalançado pelo ombro inclinado e pelo braço esticado do outro lado. As perspectivas servem para empurrar a figura para a frente, reivindicando a atenção do observador.
Parece fácil, mas não é.
Um dos personagens definitivos da Escola de Paris, Modigliani modernizou dois dos temas mais ancestrais da história da arte: o nu e o retrato. E os seus retratos se caracterizam por uma sensação de melancolia, proporções alongadas e rostos que mais parecem máscaras. São retratos altamente estilizados, que revelam sim a vida interior dos modelos mas, ao mesmo tempo, são totalmente - como direi? - modiglianizados.
Como já vimos Modigliani fez nus modernos de franca sensualidade, desprovidos da modéstia e do subtexto mitológico presente em muitas representações anteriores da nudez . Mas, entre as mais de duzentas e cinquenta telas do artista, apenas vinte e seis abordaram a figura feminina despida. Todas as demais foram retratos.
O trabalho do escultor romeno Constantin Brancusi foi talvez a influência mais importante na arte de Modigliani. Graças a Brancusi, Modi ficou fascinado pela escultura primitiva, em particular a africana. E, embora Modigliani seja mais conhecido como pintor, dedicou-se à escultura cedo em sua carreira e pode sim ser considerado um verdadeiro escultor.
As vinte e cinco esculturas de Modigliani - criadas entre 1909 e 1914 - tiveram grande influência em seu trabalho como pintor, ajudando-o a chegar ao vocabulário abstraído e linear de sua pintura, essa combinação única de especificidade e generalização.
O DNA estilístico de Modigliani é óbvio: primeiro, o trabalho de Brancusi - o amigo escultor que aconselhava-o técnica e moralmente - em seguida, os elementos da arte exótica e arcaica e negra e por fim o traço renascentista.
Embora fosse pobre demais para comprar mármore ou mesmo pedra calcária - às vezes ele usava blocos das demolições de Paris - ele esculpiu com graça, sem imitar ninguém, de uma maneira precocemente sua. Embora o pó da pedra talhada enfraquecesse seus frágeis pulmões, Modigliani esculpiu uma série de grandes cabeças altamente estilizadas. Com seus narizes impossivelmente longos e minúsculas bocas franzidas, as obras maciças combinavam a serenidade da escultura tumular do Renascimento com o exotismo dos monólitos da Ilha de Páscoa.
Ele também desenhou muitas cariátides - figuras arquitetônicas que transportam carga - quase obsessivamente. Talvez a aguda consciência que Modigliani tinha de si mesmo como um judeu e portanto um estranho o tenham voltado para a riqueza da arte não-ocidental, para essa influência da arte tribal que a gente percebe em suas esculturas.
Na sua arte tridimensional também moram reminiscências dos deuses Khmer e da arte da Grécia arcaica e bizantina e do antigo Egito e de Roma. Infelizmente, as cabeças esculpidas de Modigliani, que ele usava como suporte para velas, como candelabros nos estúdios caindo aos pedaços que alugava para dormir e trabalhar, eram simplesmente muito estranhas para atrair compradores. Mas o artista realmente se jogou inteiro na escultura e ela o ajudou a simplificar as formas, o ensinou a mostrar a essência de algo usando a forma e o meio mais simples possíveis.
Digo mais: talvez a escultura de Modigliani seja a área mais inspirada de sua obra. São realmente fora de série a imponente austeridade e o distanciamento que as esculturas sugerem, como se fossem oriundas de remotas eras e de ignotas culturas.
Modigliani - Cabeça (coleção privada, imagem www.sothebys.com))

Ele pintou a mulher Jeanne de perfil, muito parecida com tais esculturas no rosto estreito, estilizado e simplificado, nos olhos em branco e alargados, no semblante sereno como o de uma deidade.
Os retratos de Modigliani estão entre as imagens mais memoráveis e icônicas do início do século passado. Gostemos deles ou não, apreciemos ou não a estilização e o uso de seus motivos recorrentes como as cabeças inclinadas e ovais, os pescoços longos e curvos, os olhos amendoados e sem visão - que quando tinham cílios pareciam ter sido costurados nas telas (rsrs) - as faces planas e alongadas, as bocas amuadas de lábios pequenos e franzidos e os narizes compridos, essas imagens conferem aos retratos uma uniformidade que agora é percebida como o estilo e a assinatura do artista.
O certo é que os retratos de Modigliani possuem uma qualidade arquetípica, que os diferencia da arte de seus contemporâneos e que, como os nus do artista, dão testemunho do fascínio que Modigliani tinha pelas forma e fisionomia humanas. O que caracteriza um retrato de Modigliani é sua capacidade de conservar a personalidade essencial de seus modelos enquanto a expressa dentro do seu próprio vocabulário limitado de formas.
Eles se baseiam na tradição enquanto que, ao mesmo tempo, a contestam. Embora aceitando a premissa de que um retrato deve se assemelhar ao tema, ele se apropriava dos modelos em conformidade com uma rígida linguagem pessoal, de modo que a pintura é reconhecível à primeira vista não como fulano ou sicrana mas como um Modigliani.
E o aspecto mais surpreendente de um Modigliani, seja ele um retrato ou um nu, o que o torna imediatamente identificável, é a estilização. Um Modigliani não precisa morar no rosto ou no corpo de seus temas: é instantaneamente reconhecido.
Muita gente boa jura de pés juntos que ao retratar Modigliani trata os rostos de seus modelos como meras máscaras sem nada por trás, comunicando principalmente uma impressão de monotonia, de rostos uniformemente pintados e resignados no mesmo estado de espírito e humor. Eu discordo, embora as diferenças sejam mesmo insignificantes entre alguns dos retratos porque o artista não se preocupava apenas em reconhecer o caráter e menos ainda em analisar o ser vivo que se sentava diante dele.
É como se ele se importasse menos com a personalidade individual e mais com a imposição do seu esquema pictórico. De certa forma e na sua maioria, os retratos se parecem uns com os outros pelo mesmo motivo que as banhistas de Renoir são quase todas iguais: cada modelo se parece com a seguinte porque todas se conectam a um estereótipo interno de seu criador.
O problema é que a máscara pode ser repetida indefinidamente, mas não se torna um bom retrato e acontece que a maior parte da produção de Modigliani foi de retratos. É isso o que faz com que os seus menos inspirados e mais exaltados retratos pareçam repetitivos e chatos. Mas não podemos generalizar.
Os retratos do artista além de terem muito valor em si também servem como um registro histórico dos primórdios do século XX, compreendendo uma fila de figuras proeminentes do círculo das artes em Paris. Mas é um grave equívoco entender os retratos de Modigliani como meras caricaturas ou afirmar que ele foi um pintor de tipos: as mulheres da vida dele e os amigos de copo e de tintas, os marchands e colecionadores de arte de Paris todos bem vestidos e sentados implacáveis, de mãos cruzadas.
Nada disso!
Se compreendemos que o objetivo principal do artista jamais foi exaltar os seus modelos nem muito menos registrá-los para a posteridade, mas sim capturar a imagem de um indivíduo não em um momento específico na vida dele, mas da carreira do próprio artista Modigliani, percebemos que alguns dos seus retratos são fora de série.
Por exemplo, o único retrato de corpo inteiro feito durante a temporada que Modigliani passou no sul da França feliz ao lado da mulher amada, tem uma quietude e uma presença inesperada A terna representação de uma menina sem nome vestida de azul tem a dignidade dos melhores Cézannes.
Modigliani - Menina em Azul (wikiart.org)

Essa garotinha de oito a dez anos é mostrada quase em tamanho natural. O vestido e a parede nos oferecem um estudo sutil em azul que é iluminado pelos olhos e a grande gola branca. Embora a cena seja toda doçura e inocência, não há nada de raso nela. A composição do canto combina-se com a sombra e a cerâmica escura do piso para adicionar uma sensação de profundidade, enquanto a conversa das botas e dos cabelos negros da figura transmite um ritmo sublinhado pela fita vermelha que domestica-lhe os cachos.
Dizem que essa criança de aspecto desconfortável e vulnerável que remexe suas mãos nervosamente, de fato acabara de ser repreendida pelo artista que a mandara trazer-lhe uma garrafa de vinho e, em vez, recebera dela uma limonada (rsrs)
Talvez o desconforto da menina também refletisse o de Modigliani, o peso da sua própria pobreza. Ele foi despejado de uma série de quartos em Montmartre e Montparnasse e chegou mesmo a dormir em estações de trem e edifícios abandonados. Às vezes, diante dos retratos do artista, dos seus temas melancólicos, se tem a impressão que neles mora algo de muito frágil do próprio artista, pois são como crianças feridas, como se o mundo fosse para Modigliani um enorme jardim de infância administrado por adultos muito desagradáveis (rsrs)
A verdade é que Modi foi sempre mais generoso com as senhoras. O retrato duplo de Jacques Lipchitz e sua esposa, Berthe, exemplifica o talento de Modigliani para provocar a vida interior de seus modelos. Embora ambas as figuras tenham as tais “faces-máscaras”, Berthe tem um rosto aberto e uma espécie de bondade, transmitida pelo brilho da pintura e pelos olhos inclinados para baixo enquanto que Jacques, com seus traços pequenos e comprimidos, parece calculista e suspeito.
Porém Jacques era um bom sujeito pois havia acertado com o amigo Modigliani pagar-lhe pelo quadro por semana. Querendo ajudar o pintor e pagar-lhe tanto quanto possível pelo seu trabalho, Jacques Lipchitz exigiu tantas mudanças na pintura que ela demorou quase três semanas semanas para ser concluída e o artista comeu decentemente pelos três meses seguintes (rsrs)
Modigliani - Lipchitz )imagem china.fineart-china.com)

É fato que nas telas do artista as mulheres geralmente são muito mais lisonjeadas do que os homens que muito frequentemente são quase caricaturados ou satirizados, como é o caso de Jean Cocteau e Juan Gris. Porém aqueles modelos mais próximos a ele, como por exemplo Max Jacob e o pintor Chaim Soutine, foram interpretados com simpatia.
Dizem as más línguas que Modigliani detestava Jean Cocteau, o poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo e ator francês por ele pintado em 1916, no auge do sucesso. Seu retrato – a primeira tela em sentido horário na montagem abaixo – é um conjunto nervoso e elegante de triângulos interligados, a cabeça equilibrada sobre a haste de um pescoço, no qual cada elemento da gravata-borboleta até os dedos longos e trêmulos indicam um imenso fastio.
O fato é que em 1959, uns quarenta anos depois dos dois terem se conhecido e se estranhado nos cafés de Montparnasse, o poeta Cocteau descreveu Modigliani como “o gênio mais simples e mais nobre de uma época heroica.”
 O segundo retrato na montagem é o do pintor Chaim Soutine, um expatriado judeu cuja arte excêntrica muito interessava a Modigliani. Soutine alça-se da composição como uma pilastra desajeitada. O nariz tem uma largura abrutalhada, os olhos são assimétricos e os cabelos uma bagunça desgrenhada.
O pathos do jovem artista, ainda não reconhecido como tal, é enfatizado pela expressão do olhar, a rebeldia da cabeleira e os traços pesados e avermelhados. O contraste entre os tons dominantes e tristes do fundo intensificam a aflição do modelo. Aqui vê-se tristeza mas determinação: os lábios estão firmemente cerrados.
Toda essa aspereza é contrabalançada pelos pulsos e mãos esguias, pela impressão que temos de um sujeito ansioso por uma pátria para chamar de sua e, na ausência dela, disposto a formar uma aliança inquebrantável com si mesmo. As afinidades entre os dois homens são claras neste retrato.
Já o retrato do poeta judeu Max Jacob - a quem Modigliani respeitava - também é expressivo com seu grande nariz e olhos curiosamente diferentes - um olhando para fora e o outro aparentemente olhando para dentro - elaborado como uma reverente homenagem ao Deus dos retratistas na opinião de Modigliani : o grande Cézanne.
Como os trabalhos italianos do renascimento que ele admirava tanto, os retratos de Modigliani têm o tipo de efeito de distanciamento que convida o observador a penetrar além da superfície da imagem a fim descobrir seus segredos. Mas raramente Modigliani aproveita-se da tradição de séculos e incorpora pistas sobre a identidade do seu tema. Nada no último quadro da montagem nos indica que se trata do pintor Juan Gris.
Os modelos raramente eram nomeados e esta prática é uma indicação adicional de que o artista ao retratar estava principalmente preocupado com a figura e a variedade da forma humana como tal, e não com as especificidades de um determinado modelo.
Mesmo assim e dentro do contexto, e apesar de cada retrato mais parecer uma tentativa de fornecer o mínimo de informação que leve à identificação do modelo, alguns dos retratos são reconhecíveis - a misteriosa Hélène Joséphine Bernier Povolozky, a magnífica modelo polonesa Anna Zborowska, o ríspido escultor russo Oscar Miestchaninoff, o arrogante marchand Paul Guillaume.
Modigliani - Retratos (imagens wikimedia, www.secretmodigliani.com e www.musee-orangerie.fr)


Os retratos que Modigliani fez de Paul Guillaume, o seu primeiro marchand verdadeiramente profissional, são muito reveladores. Nesse à direita inferior da montagem acima, Guillaume aparece elegante e confiante, com o bigode agitado e a mão enluvada segurando um cigarro. Note que no canto inferior esquerdo o artista escreveu as palavras “Novo Pilota” como se vislumbrasse no comerciante de arte alguém experiente que iria alavancar sua carreira. Mas também é visível na composição uma ponta de desconfiança sentida desse cosmopolita metido a besta na forma como ele enfatizou a inclinação da cabeça, o terno extravagante, o cigarro, quase como se Guillaume fosse um proxeneta que vendesse o trabalho dos heroicos artistas.
Outra das anedotas famosas sobre o Modi escrita pelo pintor Maurice de Vlaminck fala de como certa vez Modigliani mostrava em seu estúdio alguns desenhos para um interessado negociante de arte, que caiu na besteira de pedir-lhe um desconto. Em seguida o artista, sem dizer uma palavra, pegou a pilha de papéis e os endireitou com cuidado, fez um buraco bem no centro e através da pilha inteira, enfiou um barbante no lote e pendurou-o no banheiro.
Impulsivo e argumentativo, Modigliani não tinha a menor inclinação ou paciência para “o comércio” das próprias obras nem as habilidades sociais necessárias para ser um retratista de encomendas. Diz Dona Lenda que ao pintar uma nobre francesa vestida a rigor para a caça às raposas, ele mudou o tradicional casaco de caça da senhora de escarlate para amarelo canário e que a baronesa, é claro, se recusou a pagar pela pintura.
Embora Modigliani estivesse evidentemente mais interessado na fisionomia per se do que na psicologia ou na análise de caráter, ele insinua seus próprios sentimentos em relação a seus temas pela maneira como ele usa as expressões faciais ou a posição das mãos para capturar algo da personalidade. Apesar das sutis alusões à localização - uma lareira, cadeira, porta - os fundos geralmente consistem em áreas de cor pura, abstrata, reminiscente das pinturas de Matisse.
Em contraste com a energia nervosa característica dos retratos do início do século XX, alguns trabalhos de Modigliani irradiam intensidade emocional controlada, são "visões da humanidade", com o artista os explicava, cheias de melancolia e de uma calma que contrasta com a vida pessoal caótica do artista, da qual ainda conversaremos na próxima conversa.