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19/09/2017

Gatos

O personagem (fotografia Bruno Schmidt, acervo Heraldo Palmeira)

Heraldo Palmeira
Os gatos são bichos detestáveis para quem não gosta e adoráveis para quem gosta deles.
Ariscos, carinhosos, individualistas, companheiros, elegantes, astuciosos, brincalhões, temperamentais, silenciosos, curiosíssimos, ágeis, preguiçosos, indóceis, felinos por natureza – com tudo que isso significa. Não sei se gostam de gente ou da casa. É discussão antiga na qual não me meto.
Há quem diga que o encher e secar de suas pupilas segue o movimento das marés. Se é preto e cruza a estrada... Deveriam ser todos inimigos mortais dos cães, mas há defecções, diversos são amigos de vida inteira. Parece que até alguns pássaros e ratos estão ficando diplomatas o suficiente para entrar na roda e permanecer vivos. Novos tempos.
O gato da casa chegou novinho, adotado, depois de um abandono. Estava no interior, numa dessas instituições que acolhem animais que sofrem maus tratos. Mediante uma pequena taxa, vieram trazer já vacinado e tudo.
No princípio pensou-se que era gata, pois tinha três cores no pelo. Em pouco tempo revelou-se macho. Por precaução, mandaram castrar logo. A rua – mesmo aquela fechada com portão, em condomínio – era uma tentação para quem veio dela. Foi vivendo mezzo caseiro mezzo mundano.
Vira-latas com boa dose de genes angorás, foi se espalhando pela casa inteira, dominando espaços, aconchegando em cantinhos, no colo das pessoas. Mimoso seria uma boa palavra para definir o sujeito.
Na hora de comer, mesmo que houvesse ração no prato, esperava que colocássemos uma porção nova sobre a antiga, senão não comia. E queria serviço completo, que enchêssemos a tina da água de beber. Um folgado profissional.
Não podia ver um computador ligado, ficava ali ao lado, sobre a mesa, tentando entender aquele jogo de teclas, digitação, sons e coisas se mexendo na tela iluminada. Virava uma espécie de assistente compulsório de quem estivesse trabalhando, ensaiando aqui e ali uma tentativa de tocar algo mais buliçoso.
Belo dia, o vizinho trouxe uma gata para sua casa. Branquinha, com bons traços persas enfeitados de pedaços pretos no pelo liso. Também chegada a perambular pela rua segura e, em pouco tempo, visita sem qualquer cerimônia na casa do gato.
Vinha fazer as refeições como se fosse a coisa mais natural do mundo. Logo estava montado um cenário de casamento por interesse. Não sabíamos se tinha nome, passamos a chamá-la de Branquinha mesmo.
Virou agregada da casa, entrando e saindo quando bem entendia. Claro, com o amparo do rapazinho garboso. E nós fazíamos farra dizendo que aquele sujeito, mesmo castrado, conseguiu arranjar uma pensão alimentícia para pagar.
Não demorou, o amor brotou entre aqueles dois animais. Algo superior, nobre. A gata, mesmo sem estar no cio, permitia as investidas gravadas no instinto, mas totalmente infrutíferas do gato – que já não tinha o equipamento necessário para aquela ação. E fazia seu papel de fêmea com uma altivez rara.
De vez em quando protagonizavam o belíssimo ritual de acasalamento da espécie, faltando apenas a gritaria, por razões óbvias. Até que ele se enfezava pela sua própria incapacidade e saia aborrecido para outro lugar – imagino que esbravejando na linguagem dos gatos. Ela o seguia, miando carinhosa com aquele tom de ronronar, compreensiva, cúmplice. Dando a ele a certeza de que havia algo mais importante entre eles do que aquele não sexo consentido.
Havia telhados, toldos, árvores e postes pelos quais qualquer gato poderia entrar e sair da casa. Mas aquele sujeitinho tinha lá sua porção nobre e metida a besta. Quando resolvia sair para a rua ou voltar para dentro, miava diante do portão até que um de nós lhe fosse dar passagem. Se não houvesse ninguém em casa, aguardava pacientemente a chegada de alguém.
Abusado, começou a chamar às seis da manhã, de madrugada... Fomos fingindo a surdez conveniente e didática e o malandro alinhou os horários dos seus compromissos com os nossos, absorveu um pouco da etiqueta necessária para uma boa convivência interesseira.
Cínico, sem-vergonha, vivia trepado em árvores, matutando para se tornar adulto, caçar seu primeiro passarinho. Mas pedia ajuda para entrar e sair de casa!
Ainda continuava levando uma sova vergonhosa dos voadores, não obtivera nenhum troféu para se vangloriar. Era apenas um jovem aprendiz de feiticeiro.
Também eram hilárias suas tentativas desajeitadas de caçar borboletas e outros insetos que circulavam pela rua muito arborizada. Diante dos dribles de quem sabe voar, talvez tivesse mais resultado nos saltos ornamentais, enormes e engraçadíssimos, naquela sem-cerimônia dos inocentes que não temem o ridículo.
Um dia, foi até quase o limite do portão da avenida, se esgueirando naquele movimento mortal dos felinos. Ia atacar um pombo pelas costas e, na hora do bote, um carro passou e provocou o voo da presa. Ele ainda deu um belo voo de goleiro, com as patas abertas – unhas afiadas à mostra – mas caiu de maduro, com a sensação da rede balançando atrás de si. Essa foi por pouco. Estava claro que o mecanismo da caça estava quase no ponto.
Um desafio o aborrecia particularmente: enfrentar o gato amarelo, vagabundo profissional, forte, violento, desabusado, mundano com diploma, que invadia a região e tinha natural interesse por Branquinha. Até ali, o estranho contava com a antipatia de todos os moradores.
Era ainda uma briga desigual, mas nosso rapazola estava se especializando. Não demoraria a demonstrar que era o dono do pedaço para o invasor. O diabo é que Branquinha dificilmente iria resistir aos encantos plenos do outro quando chegasse a hora de acasalar, até para cumprir a lei da natureza.
Não raro passava o dia sumido, certamente resolvendo questões particulares, construindo sua vida no ambiente onde não cabem humanos. Ora, claro, os gatos são interesseiros, autossuficientes, egoístas! Só nos procuram quando precisam de alguma coisa.
De vez em quando, ele sentia solidão na casa enorme. Vinha de mansinho e miava com delicadeza diante da porta do quarto. Queria entrar, queria apenas companhia. E se acomodava no seu cantinho ou no parapeito da janela, vigiando o mundo lá em baixo, com a visão panorâmica que tínhamos do alto da colina.
Às vezes olhava para mim com aquela cara de mané que todo gato tem. E eu me perguntava o que um bichano pensa – se é que pensa. Como será que eles nos enxergam? Gostaria de poder entrar na cabeça de um deles e ter outra visão do mundo.
Gostaria de ter a vida que ele tinha. Era um gato feliz, tenho certeza. E todos nós da casa fazíamos um pouquinho para compor essa felicidade, exatamente por que ele devolvia na mesma moeda.
Bichos sabidos são os gatos. Nunca miam à toa. Conhecem o valor do silêncio. E dormem muito para, no seu escuro particular, passar a vida com menos estresse. Basta ver como se esfregam em nossas pernas.


19 comentários:

  1. Olá Heraldo, se eu tinha pretensão de escrever sobre gatos ela foi diminuindo, diminuindo enquanto lia seu texto. De tão bom que ele é.
    Sempre gostei de gatos. O último foi um persa himalaia que comprei para minha mãe usando todo o dinheiro que tinha. E ela me devolveu em pânico porque morava em casa e, no bairro, corriam boatos de churrasquinho de gato! Fiquei com ele, o Bartolomeu, Bartoca para os íntimos. E fomos felizes e muito companheiros por quatorze anos. Sofri demais quando ele morreu. Estava fazendo Belas Artes e fiz gravuras aos montes. Era gato na madeira, no cobre, no aço, na serigrafia. Estudos em lápis, nanquim, pastel. Quase esgotei o tema...
    Estou lendo um livro de escritora japonesa, sobre um dono de gato que empreende viagens para se desfazer do seu bichano. O interessante no livro é que o gato também narra a estória, do seu ponto de vista. Como o Flush, cachorro descrito por Virginia Woolf. Estou gostando muito. Imperdível se você gosta de gatos: Relatos de um gato viajante, de Hiro Arikawa.
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 18:36

      Ana,
      Obrigado pelo comentário. Claro que estamos todos aguardando seu texto, até porque foi "patroa" de um bichano tantos anos, o que lhe dá todas as credenciais para gastar tinta.

      Imagino a dor da perda de Bartoca, a mesma que eu sentia pelos meus cães pastores - nos velhos tempos da casa materna. ainda bem que você transformou em arte. Até mais.

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  2. 1)Bela crônica Heraldo.

    2)Me fez lembrar de uma amiga, quando eu era solteiro, ela tinha um gato e ele, algumas vezes, me atacava, pois percebia meu olhares, digamos libidinosos para a dona...

    3)Com extrema sensibilidade, o gato era médium e lia meus pensamentos ...

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 18:46

      Antonio,
      Obrigado. Sim, os gatos não são simples.

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  3. Wilson Baptista Junior19/09/2017, 10:31

    Eu fui criado com cachorros, de diversos tipos, passando pelo primeiro pastor alemão de meu pai, o Prinz, por um bravíssimo cachorro boiadeiro, o Kim, que vivia na corrente, e por fox terriers diversos e brincalhões em casa e nas casas de parentes, até, depois de grande, os vários pastores belgas que meu pai criou. Gatos só os gatinhos de rua que entravam pelo basculante e se abrigavam nos desvãos do subsolo no laboratório de fotografia, e que a gente tinha que por para fora (todos menos um, o César, que estabeleceu conosco uma espécie de paz armada e que virou uma fotografia pendurada na parede à minha frente e sobre a qual ainda vou escrever um dia).
    Bastante tempo depois de casado veio para cá o gato de que a Ana falou aí atrás, um persa himalaia com um nome de duas linhas de comprimento e um pedigree de duas páginas, mas que aqui virou simplesmente o Bartoca.
    Claro que não nos demos bem, um gato de modos imperiais aos olhos de quem eu era obviamente um usurpador tentando posar de dono da casa dele, e um homem que pensava que era o dono da casa, criado no velho sistema patriarcal mineiro. Além disso o gato, como todo bom persa, era um dispensador ambulante de pelos, tão finos que flutuavam no ar e conseguiam entrar por todas as frestas dos meus computadores, que tinham que ser frequentemente abertos e aspirados, adorava explorar os numerosos cabos, estabilizadores e, pior, interruptores debaixo das mesas do escritório e ainda tinha como lugar predileto para afiar as garras o estofamento de couro de nossas poltronas Mole.
    Quem cuidava dele, claro, era a dona. Eu e ele nos olhávamos de longe.
    Até que um dia a dona teve que viajar sem mim. E deixou os dois em casa para conviverem do jeito que pudessem.
    E aí, uma noite eu estava lendo sentado no sofá quando ele veio chegando, chegando, farejou a perna de minha calça e de repente se aboletou ao meu lado. E eu compreendi que ele procurava, nas minhas roupas, o cheiro da dona ausente. E ficamos ali, juntos, dividindo a mesma saudade.
    E quando a dona chegou, dias depois, nos encontrou almoçando juntos, compartilhando, ele no seu pratinho e eu num sanduíche, a mesma lata de atum em pedaços...

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 18:48

      Mano,
      Como escrevi, são interesseiros. Bastou precisar de você, aproximou-se. Imagino a cena de vocês dois "dividindo a mesa e o atum".

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  4. Dalcineide Alves19/09/2017, 14:34

    Belíssimo, eu gosto de gatos.

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  5. Dalcineide Alves19/09/2017, 14:35

    Belíssimo, eu gosto de gatos.

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  6. Francisco Bendl19/09/2017, 16:59

    Palmeira,

    A minha mulher gostou em demasia deste teu artigo, pois ela tem paixões pelos gatos.

    Eu não tenho nada contra os felinos, mas a minha preferência é por cachorros.

    Os gatos simplesmente eram sagrados no Antigo Egito pela sua independência, ainda mais com a pelagem preta.

    Basta observarmos a quantidade de felinos adestrados em circos, menos o gato, que não tem essa de dar a pata, de sentar quando é mandado ... nada. O gato faz o que quer, e digo mais:
    Estudos recentes dizem que esta espécie mais se aproxima das mulheres do que dos homens, pela simples razão que eles as consideram "mais interessante", olha só a petulância do bichano!

    Enfim, se se tata de um animal domesticado não há como adestrá-lo, treiná-lo, dada a sua personalidade e independência, que lhe configuram uma natural sedução sobre o ser humano, afora as mais variadas raças existentes, e cada uma com as suas características.

    Agora, detesto quando castram tanto o macho quanto a fêmea. Considero uma violência contra o animal, mas a sua excessiva e rápida reprodução obriga seus donos a tomarem essas medidas, lamentavelmente.

    Mas, eis um tipo de bicho que ainda causa interesse e curiosidade, aliadas à beleza incontestável de um gato angorá, por exemplo, cuja pelagem é estupenda ou, então, os persas, cujo olhar lembra os clássicos da Disney, quando após uma travessura ambos trançavam seus rabos!

    Excelente postagem Palmeira.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz.

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 18:51

      Bendl,
      A paixão pelos gatos é algo universal mesmo. E sempre me causou curiosidade o fato de ninguém conseguir adestrar gatos. Quanto à castração, é compreensível nas áreas urbanas: eles ficam muito devastados pelas disputas sexuais, os machos principalmente. Isso significa tempo e gastos com tratamentos.

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  7. Ei Heraldo, muito bom o seu texto.Seu relato é bem consistente com a vida de um bom gato e olha você não contou nem a metade do que estes lindos felinos fazem. tenho um pequeno persa preto que ainda é filhote , a cada dia é uma novidade diferente !!!!! Não tem pedigree nenhum e ainda foi comprado no Rio de Janeiro em Bangu 2.
    Anna Paula

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 18:54

      Anna,
      Sim, os bichanos são inesgotáveis. Imagino que se alguém conseguisse contar tudo, amanhã eles inventariam mais uma novidade.

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  8. Moacir Pimentel19/09/2017, 20:28

    Mestre Heraldo,
    Um belo post teclado com o coração na ponta da Bic que provocou coentários idem.Parabéns! Para começo de conversa permita-me colocar que essa falta de "equipamento" para a consumação do amor do seu casal de protagonistas é uma enorme maldade. Coitados! Confesso que tive pouca experiência com bichanos pois embora nas casas da minha infância eles sempre tenham marcado território, jamais tive um bicho desses para chamar de meu. Mas lembro que à noite, diante das suas janelas e portas de estimação fechadas, eles miavam exatamente como você descreve e que tinha que dar-lhes passagem para que pudessem ocupar seus costumeiros parapeitos da vida. Eles então avançavam pela varanda contentes da vida , abanando o rabos depois de, com a sem-cerimônia típica dos gatos, se esfregarem em mim pedindo um chamego. E pronto , me esqueciam, não me davam mais a menor bola , curtindo a paisagem noturna ou cochilando, para variar.
    Gosto de fotografar os peraltas que encontro pela estrada e em algumas dessas fotos os olhos felinos impressionam. Você já reparou como os gatos têm retinas oblíquas e absolutamente insondáveis que diante das luzes se contraem e se expandem como se tivessem vida própria e profundidade suficiente para receber e acomodar calmamente qualquer brilho? Trata-se de uma mirada que nos faz entender perfeitamente o significado da expressão "pulo do gato".
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 18:59

      Caríssimo,
      Os gatos provocam isso.
      Não censuro os donos do nosso personagem, pelos motivos que expus em outra resposta acima.

      Você ressaltou qualidades e disse tudo: não é à toa que o pulo é do gato. Abração.

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  9. Wagner Monteiro20/09/2017, 22:39

    Mais um texto da série "SENSACIONAIS".
    Parabéns, HP..!!

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    1. Heraldo Palmeira20/09/2017, 23:04

      WM,
      Ora, obrigado, meu caro.
      Sensacionais são os gatos, que permitem o texto só sendo quem são.

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  10. Emerson Medeiros23/09/2017, 07:46

    Meu amigo Heraldo!!!! Ao prazer poético das leituras anteriores, você acrescentou o sorriso maroto descrevendo a malandragem do bichano, nos induzindo a torcer por seu sucesso.
    Abraços de seu admirador curitibano!!

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    1. Heraldo Palmeira23/09/2017, 11:49

      Caro Emerson,
      Sim, ele merece mesmo nossa torcida. Um abraço.

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