fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
A primeira coisa que eu faço sempre que visito esse delírio de um gênio
é subir pelas escadas em caracol para o topo das torres da Sagrada Família.
Sinto a necessidade de adquirir a perspectiva dos olhos de um gárgula sobre a
cidade aos meus pés versus essa igreja mutante e crescente, maior do que a
vida.
Note que nas torres, assim como nos pórticos e colunas e vitrais que
veremos em outras conversas, se encontram palavras e expressões da liturgia
católica – como “Excelsis” e “Sanctus” – e trechos inteiros do Credo dos
Apóstolos.
Lá nas alturas onde de lê “Hosana” se pode acompanhar as multidões
saindo do metrô e avançando como um rio humano na direção do templo, ansiosas
para ver de perto todos os detalhes da sua mitologia: as torres que parecem
cones de sorvete invertidos, as renomadas cachoeiras de estalactites, os
orgulhosos barcos, os soldados romanos saídos da Guerra das Estrelas, as
colunas primas legítimas dos castanheiros, as cavernas povoadas pela galera
divina e por anjos tocando guitarra ou de trombetas em punho todos esculpidos
em pedra, grande parte há mais de um século, alguns mais recentemente.
Contemplando a cidade das janelas e frestas das torres de pedra
inventadas por Gaudí – a colina de Montjuic de um lado e as construções
modernosas se estendendo até o mar do outro – a gente se encanta por essa
cidade de passado ilustre - de colônia romana a potência marítima do século XIV
– e entende o orgulho que Gaudí sentia pelo seu chão e tem vontade de dizer como
os nativos:
“Visca Catalunya!”
fotografias Moacir Pimentel |
Em Barcelona ninguém tem que se preocupar com o caminho a tomar para
chegar ao Templo Expiatório da Sagrada Família: Gaudí concebeu uma igreja de
grande verticalidade, para que fosse visível a partir de qualquer ponto da
cidade e se destacasse no horizonte. Além disso por todos os lugares da cidade
há placas indicando a direção certa para a igreja que, mais cedo ou mais tarde,
termina sendo o destino imperdível de cada um de seus visitantes.
É impossível permanecer indiferente à obra monumental e não imaginar
como será a Sagrada Família quando finalmente for concluída com as suas dezoito
torres, sendo que quatro em cada uma das três entradas representando os doze
apóstolos, outras quatro homenageando os evangelistas em torno das duas torres
mais importantes e mais centrais: uma dedicada à Virgem Maria e a derradeira e
mais alta a Jesus Cristo.
Como se pode ver no vídeo as torres não são simples elementos
arquitetônicos mas têm e terão simbolismo cristão hierarquicamente organizado
e, portanto, diferentes alturas: as torres exteriores são mais baixas e as
demais, gradativamente, sobem cada vez mais altas até a mais central, aquela
que será dedicada ao Cristo e terá cento e setenta metros, incluindo uma
gigantesca cruz tridimensional.
De onde quer que venham a ser
contempladas, uma vez terminadas, estas dezoito torres serão uma visão
extraordinária e sempre farão as miradas se erguerem para o céu. As
emblemáticas torres que parecem se fundir com o céu são o mais importante dos
recursos escolhidos por Gaudí para simbolizar a elevação em direção a Deus.
A intenção arquitetônica foi obtida magistralmente através das torres
que são, de quebra, uma das abordagens mais revolucionárias de Gaudí. Elas são
cônicas e circulares, perfuradas por múltiplas janelas - que formam elas
próprias desenhos em espiral! - e vão se estreitando à medida que sobem,
dotando o templo com uma verticalidade realmente espiritual.
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Elas apresentam diferentes soluções arquitetônicas: as torres pequeninas
e pontiagudas que circundam o templo parecem ter sido decoradas com balas
coloridas e tampadas por um cruzamento de morangos com framboesas; as torres
mais altas são decoradas por palavras como “Oració”- oração em catalão - as dos
apóstolos são acabadas por pináculos de mosaico policromado formando escudos
com cruzes e esferas em relevo. Além disso cada torre exibe a escultura e o
nome do apóstolo que representa. Tem mais.
As quatro futuras torres dos evangelistas serão encimadas pelas suas
figuras alegóricas na iconografia cristã: a águia na de São João, o leão na de
São Marcos, um ser alado na de São Mateus e o touro na de São Lucas. A torre de
Maria será construída sobre a abside e finalizada por uma estrela da manhã de
doze pontas.
Finalmente no topo da torre central, a de Jesus, será posicionada uma
imensa cruz de quinze metros em cuja parte central figurará um cordeiro e a
inscrição Tu solus Sanctus, Tu solus Dominus, Tu solus Altissimus e as palavras
Amén e Aleluya. Cada um dos quatro braços da cruz terá potentes feixes de luz
que serão visíveis a grandes distâncias.
Todas as torres, é claro, são campanários e abrigarão, conjuntamente,
cerca de sessenta sinos, comuns e também tubulares.
A Igreja Católica parece estar a caminho de canonizar Antoni Gaudí, não
por causa de sua magnífica criação - embora, é claro, a Sagrada Família não
possa ser separada da sua fé - mas por causa das evidências de uma vida voltada
para Deus.
Dizem os defensores da sua candidatura que, ao contrário de outros
gênios como Picasso - que detestava Gaudí por razões ideológicas mas era
devedor de sua arte - ou de Mozart, Gaudí nunca deixou o seu talento subir-lhe
à cabeça. Ele entendeu que o seu gênio artístico era um dom poderoso que
poderia resultar em um ego imprudente e compensou ativamente esse dom através
da penitência e expiação, auto-sacrifício e doação.
Convencido de que Deus se revela principalmente através de sua criação,
sua fé conduziu seus gênio e maestria técnica cada vez mais profundamente para
a beleza da natureza. Numa época em que o progresso tecnológico levava à
arrogância, Gaudí ofereceu ao mundo folhas e lagartos, ovos e ramos, e nos
pediu para olhar novamente.
É por isso que Gaudí e sua grande Basílica são os sinais perfeitos para
a Igreja colocar no caminho dos ateus e agnósticos
contemporâneos.
Numa época em que a arte "moderna" se esforça para rejeitar e
desconcertar por si mesma, a originalidade de Gaudí se destaca como muito mais
radical e autêntica. Concentrando-se intensamente nas formas da natureza, ele
lutou para demonstrar que a verdadeira beleza reside em descobrir e ser fiel às
formas naturais em vez daquelas artificiais.
No topo da Sagrada Família a gente respira fundo e olha para o mar e o
horizonte e bem de perto para cada minúsculo e trabalhado e colorido pedaço
daquelas torres de sonho e então percebe que para o arquiteto Antoni Gaudí, a
Sagrada Família era um hino de louvor a Deus, no qual cada pedra era uma
estrofe.
Escutaremos mais dessa música numa outra conversa...
ResponderExcluirA igreja é impressionante, Moacir. Não tem como discutir. O vídeo então é de cair o queixo. Como é que Gaudi ia conseguir levantar a igreja sem a tecnologia moderna? Eu compreendo que ela é um dos pontos turísticos imperdíveis da cidade que vale muito a pena visitar. Mas continuo achando que a arquitetura da Sagrada Família é esquisita. Como você sabe muito fico me sentindo errada de não gostar do que você gosta kkk Tomara que você me faça mudar de opinião nos próximos artigos. Obrigada por mais um passeio panorâmico!
Mônica,
ExcluirQuer saber? Colocar um “não” diante do verbo gostar é bom demais: só diz “não” quem é livre. Nenhuma outra opinião é mais importante do que a sua honesta opinião. E a Sagrada Família é sim “esquisita” mesmo porque não há outra igreja, catedral ou basílica nesse mundo como ela. O seu exterior – não esqueça que ele está incompleto! – talvez não possa ser descrito como “lindo” e, sem dúvida, ali tem um bocado de informação a mais. Porém diante da construção me sinto um anão e dela não consigo afastar os olhos mesmerizados. Agora o interior da Basílica realmente me deixa mudo, incapaz de pensamentos coerentes enquanto caminho para cima e para baixo em círculos, com a boca aberta, fotografando tudo e tendo que ser convencido a ir embora (rsrs)
Vamos combinar? Que tal visitarmos os próximos capítulos da “franquia” antes de você formar a sua bem-vinda opinião?
Abração
Moacir,
ResponderExcluirAdorei o artigo. Quando visitei a Sagrada Família não prestei atenção nas palavras escritas nas torres. Hosana quer dizer 'salva-nos'. As Hosanas me fizeram pensar na Procissão de Ramos, o prelúdio da Paixão de Cristo. Não sei se você lembra da liturgia do Domingo de Ramos que celebra a entrada de Jesus Cristo em Jerusalém montado em um jumentinho sendo aclamado pelo povo com os ramos da vitória. Destaco Mateus 21:9
‘E as multidões, tanto as que iam adiante como as que o seguiam, clamavam, dizendo: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!’
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirConfesso que pensava que "Hosana" fosse uma saudação do tipo : Salve, Galera Santíssima! Também não me surpreende que algumas das tantíssimas palavras gravadas em latim e catalão por todos os lados da Sagrada Família tenham lhe passado batidas. Creio que é humanamente impossível, enquanto visitamos esse edifício, registrar todos os detalhes e significados da ambição quixotesca de Gaudi, da sua devoção religiosa ilimitada e da sensualidade do seu design. As minúcias ficam para depois quando, com calma, curtimos as fotos (rsrs) Na livraria do Templo nós compramos um livro, da lavra de Jose Maria Carandell , que versa sobre os detalhes, as figuras e os símbolos utilizados por Gaudi. Ele me foi de grande valia para rascunhar esses artigos que espero você continue apreciando.
Outro abraço para você
1)Fotos maravilhosas. Texto idem !
ResponderExcluir2) Escrevo pouco, contemplando a grandiosidade da Fé em Gaudi !
3)Parabéns Moacir.
Antonio,
ExcluirA fé inquebrantável pode conduzir quem a experimenta para o bem ou para o mal. Seria uma maravilha se todas as crenças fossem tão inspiradoras e transformadoras quanto a de Gaudí.
“Gratidão”
Visca Catalunya!
ResponderExcluir
ExcluirMárcio,
Pois é. Você disse tudo. Mas torçamos para que a bela Catalunha permaneça onde sempre esteve: dentro da Espanha.
Pimentel complementa o artigo anterior sobre a Sagrada Família, e com a competência de sempre.
ResponderExcluirMais um texto de qualidade e detalhado sobre esta obra grandiosa.
Um abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirMuito obrigado pelo comentário generoso.
Outro abraço
Pimentel,
ResponderExcluirA descrição que você faz das torres desta Igreja e da cidade ao seu redor é nota dez. Mas o vídeo é didático e as suas fotos essenciais para a compreensão do tamanho da mente de Gaudi. Um post perfeito.
Sampaio,
ExcluirConcordo com você. Sem as fotos e o vídeo eu não seria capaz de comunicar nem de longe o que é essa construção que há quase um século e meio vem desafiando altaneira as críticas, os desafios contábeis, os urbanistas conservadores, os devotos do modernismo, sobrevivendo a duas guerras mundiais, aos estragos da Guerra Civil Espanhola, encantando os cidadãos de Barcelona que realmente cultuam Gaudí. Obrigado pelas suas leitura e opinião.
Olá Moacir,
ResponderExcluirCom seus escritos apaixonados que me fazem conhecer esse templo de criação e genialidade começo a admirá-lo cada vez mais. E percebo porque quem passa por lá não passa incólume, seja com admiração, surpresa, estranhamento ou deslumbramento. Tudo que uma obra de arte pode e deve despertar.
Temo pela sua preservação, que as ameaças nunca sejam realizadas. Seria um dano imensurável para a humanidade.
Belo domingo com sol e sal, e copos coloridos.
Até mais
Caríssima Donana,
ExcluirA senhora tem razão: ninguém consegue ficar indiferente à Sagrada Família e nós ainda nem entramos no baile.
Também compartilho dos seus temores pois desta vez o alvo foi Las Ramblas – poucos lugares são mais turísticos que elas. Mas note que há motivos para não se desesperar. O uso de carros em vez de bombas demonstra que o controle de armas na Europa tem sido bem sucedido. A dura lição é que apesar dos esforços gerais o terror ainda tem conseguido passar.
Mas meio milhão de catalães – homens e mulheres , pais e filhos, avós e netos, jovens e velhos – e turistas estrangeiros marcharam pelo Paseo de Gracia para exibir seu repúdio à violência e declarar ao mundo que não têm medo:
"No tinc por".
“Até mais”
Prezado Autor Sr. MOACIR PIMENTEL,
ResponderExcluirÉ sempre fascinante ler um Artigo seu, descrevendo uma Obra de Arte como essa incrível Catedral da Sagrada Família do genial ANTONI GAUDÍ em Barcelona - Espanha. A história descritiva toda que a acompanha, junto as Fotos e o link do filme You Tube, forma um todo harmônico.
Ficamos sabendo que as duas maiores torres, a 2ª maior ( N.S. MARIA ), e a 1ª maior de todas ( N. S. JESUS), ainda não começaram.
O Conjunto completo das 18 torres, ficará ainda mais imponente.
E essa fantástica e incrível Catedral, está sendo construída numa das regiões mais Anti-Clericais de Espanha, a Catalunha, bastião do Esquerdismo na Guerra Civil Espanhola (1936 -1939), vencida pelo Conservador Gen. FRANCISCO FRANCO.
Muito Obrigado Sr. MOACIR PIMENTEL.
Prezado Sr. Flávio José Bortolotto
ResponderExcluirÉ sempre uma grande honra merecer um comentário seu. Fico muito satisfeito que tenha apreciado o artigo. A Sagrada Família é tão imensa que não coube em um só post tanto outros rascunhos e fotos já se encontram na gaveta do nosso Editor. Muito obrigado lhe digo eu pela leitura e boas palavras.