Wilson Baptista Junior / Wilson Baptista - "L'Essence de l'Ennui" |
Wilson Baptista Junior
A fotografia que abre este post tem uma história.
Esse bocejo hierático, essa pelagem de tigre branco, tem um título
bonito – “L’Essence de l’Ennui” (A Essência do Tédio) que, espero, transmita o
seu espírito, e no seu tempo ganhou entrada em três ou quatro salões de
fotografia aqui e lá fora.
E muita gente quis conhecer o gato magnífico que foi seu modelo. Cujo
nome – “César” – combinava com sua altanaria.
Só que... Como muitas vezes na vida, as aparências enganam.
Esse gato imperial da fotografia era uma gatinha vira lata, gatinha de
rua cuja mãe um dia entrou por um basculante e se escondeu, para parir a
ninhada, no fundo de um armário no laboratório de fotografia da nossa casa mãe.
Depois da família felina devidamente expulsa (bons tempos de ruas calmas
com árvores, gramados e sombras e casas com jardins e quintais abertos e ratos
e pássaros onde os gatos viviam sem se apertar), a gatinha depois de crescida voltava
de vez em quando lá para casa. Acabou sendo mais ou menos adotada e ganhou o
nome de César, dado, sei lá por que razão, por um de meus irmãos ou irmãs
menores, e só depois descobrimos que era uma gata e não um gato, aí já era
tarde para mudar...
Era uma gatinha cinzenta, rajada, pequena, sem nada que a distinguisse
de todos os outros gatos de rua. Gostava de tomar sol nos degraus de pedra também
cinzenta da escada do jardim de entrada de nossa casa.
Um dia qualquer eu estava sentado no murinho baixo que separava o jardim
da rua, não me lembro se sozinho ou conversando com alguém, com uma máquina
fotográfica na mão, o César dormitando num dos degraus, quando ele acordou e se
espreguiçou. Eu virei a máquina para lá e esperei o bocejo que inevitavelmente
viria.
Uma fotografia bonitinha, como milhões de fotografias bonitinhas de
gatinhos que foram e são tiradas todo dia por esse mundo afora. Mas depois,
quando fui revelar o filme, enquadrei no ampliador só a cabeça do gato, e
mostrei para o meu pai. Ele olhou para a foto e disse – Se conseguíssemos isolar só esse bocejo ficaria interessante...
Resolvemos fazer um processo que se chamava “compressão de tons”, para
enfatizar a boca e clarear o resto. Sem retoque nem manipulação externa, porque
o resultado para uma fotografia de salão deveria ser exclusivamente
fotográfico.
Naquele tempo não existia o Photoshop, que hoje torna tão fácil fazer o
que se quer com uma imagem. A compressão de tons era feita copiando-se o
negativo original num filme de alto contraste, depois o positivo resultante
novamente no filme de alto contraste, produzindo outro negativo que seria por
sua vez copiado de novo e assim sucessivamente, cada vez diminuindo a gama de
tons que separavam o branco do preto até chegar ao ponto desejado. Com
negativos grandes, essas cópias eram feitas por contato, colocando-se o
negativo encostado no outro filme debaixo de uma placa de cristal e expondo-se
à luz. Mas o negativo dessa fotografia era um pedacinho de filme do tamanho de
um selo de correio, e a parte que interessava era um pedacinho menor ainda lá
no meio dele. Se tentássemos usar este processo, qualquer imperfeição no vidro
ou o menor grão de poeira seria ampliado mais de trinta vezes no resultado
final. E como teríamos de repetir o processo várias vezes, nenhuma chance de
conseguir um bom resultado.
Para copiar negativos deste tamanho usava-se um aparelho colocado à
frente de uma lente especial na máquina fotográfica, que segurava o negativo na
distância correta para ser fotografado através da lente macro, capaz de gerar
uma imagem do mesmo tamanho do que estava sendo fotografado. Fácil. Mas, claro,
não tínhamos nem o aparelho nem a objetiva macro...
Nossa oficina ficava ao lado do laboratório. Papai fez um aparelhinho,
uma verdadeira joia de metal e borracha cinzenta, que ajustava um negativo 35mm
em cima de um pedaço de filme também de 35mm, e conservava os dois bem planos,
com uma pressão de molinhas minúsculas sobre uma moldura de metal sem usar
vidro.
Voltamos para o laboratório. Fizemos oito cópias sucessivas em filme de
alto contraste, revelando negativo por negativo por inspeção, até conseguir uma
separação boa. Depois, uma ampliação cuidadíssima num papel Agfa Brovira, onde
depois dos primeiros segundos de exposição uma máscara com um corte no formato
aproximado da boca da gatinha foi segura na mão entre a lente do ampliador e o
papel fotográfico, permitindo “queimar” mais a boca do que o resto.
Fácil e rápido, como vocês veem, gastamos pouco menos de um fim de
semana inteiro para chegar ao resultado final...
Esta fotografia, por justiça, deveria concorrer sob o nome de dois
autores, bem mais o dele, até, do que o meu, mas como isso não era permitido e
o costume era o de colocar o nome de quem apertou o obturador, foi rodar por aí
só no meu nome.
Depois de ir e voltar algumas vezes, foi guardada junto com uma
quantidade de outras veteranas de exposições, protegidas da luz, e aí ficou por
mais de quarenta anos. Depois papai a mandou para mim e eu mandei emoldurá-la e
a Ana a pendurou na parede do meu escritório cá em casa.
Quando fiz um comentário sobre um belo post do Heraldo sobre o gato
dele, escrevi que um dia ia escrever sobre esta fotografia. Mas havia um
problema: não existia em arquivo digital; não podia escaneá-la por duas razões –
era maior do que o meu scanner e, mais importante, não deve mais ser retirada
de trás do vidro que a protege porque nessa altura, exposta ao ar, o processo
de degradação que qualquer cópia em papel acaba por experimentar iria fazer esmaecerem-se
mais rapidamente ainda os tons originais. O negativo, aquele pedacinho
minúsculo de filme, se perdeu há muitos anos; não há mais como refazer essa
velha amiga.
Aí pensei em fotografar o quadro. Só que o vidro da moldura funciona
como um espelho, e a fotografia saia um composto do gato bocejando, do
fotógrafo com sua máquina e das estantes de livro na parede oposta...
Um pano preto pendurado tampando a estante de livros, uma roupa escura
para o fotógrafo e um filtro polarizador na objetiva conseguiram atenuar e
quase fazer desaparecer os reflexos. E aí está ela. Pelo menos reconhecível...
Bom, contei uma história de gatos. A segunda, para os leitores que não
leram meu comentário para o Heraldo, vai agora.
Eu fui criado com cachorros, de diversos tipos, passando pelo primeiro
pastor alemão de meu pai, o Prinz, por um bravíssimo cachorro boiadeiro, o Kim,
que vivia na corrente, e por fox terriers diversos e brincalhões em casa e nas
casas de parentes, até, depois de grande, os vários pastores belgas que meu pai
criou. Gatos só os gatinhos de rua que entravam pelo basculante e se abrigavam
nos desvãos do subsolo no laboratório de fotografia, e que a gente tinha que
por para fora (todos menos um, o César, que estabeleceu conosco uma espécie de
paz armada e que virou essa fotografia pendurada na parede à minha frente de
que eu contei no começo).
Bastante tempo depois de casado veio para cá o gato da Ana, um persa
himalaia com um nome de duas linhas de comprimento e um pedigree de duas
páginas, mas que aqui virou simplesmente o Bartoca.
Claro que não nos demos bem, um gato de modos imperiais aos olhos de
quem eu era obviamente um usurpador tentando posar de dono da casa dele, e um
homem que pensava que era o dono da casa, criado no velho sistema patriarcal
mineiro. Além disso o gato, como todo bom persa, era um dispensador ambulante
de pelos, tão finos que flutuavam no ar e conseguiam entrar por todas as
frestas dos meus computadores, que tinham que ser frequentemente abertos e
aspirados, adorava explorar os numerosos cabos, estabilizadores e, pior,
interruptores debaixo das mesas do escritório e ainda tinha como lugar
predileto para afiar as garras o estofamento de couro de nossas poltronas Mole.
Quem cuidava dele, claro, era a dona. Quem brincava com ele eram nossos
filhos. E eu e ele nos olhávamos de longe.
Até que um dia a dona teve que viajar sem mim. E deixou os dois em casa
para conviverem do jeito que pudessem.
E aí, uma noite eu estava lendo sentado no sofá quando ele veio
chegando, chegando, farejou a perna de minha calça e de repente se aboletou ao
meu lado. E eu compreendi que ele procurava, nas minhas roupas, o cheiro da
dona ausente. E ficamos ali, juntos, dividindo a mesma saudade.
E quando a dona chegou, dias depois, nos encontrou almoçando juntos,
compartilhando, ele no seu pratinho e eu num sanduíche, a mesma lata de atum em
pedaços...
1) Belo artigo e enigmática foto. Eu diria uma foto Zen...
ResponderExcluir2) Mano, seu texto me fez lembrar: quando solteiro, morei um tempo em um Templo budista, bela madrugada, por volta das 5 horas, fui acordado por uma gatinha que também morava lá e estava grávida... miando ela me indicou um canto... e foi ali, na minha presença que ela deu a Luz...
3) Como não entendo nada de "partos" me limitei a acompanhar a Natureza que fazia um belo papel enquanto eu recitava os mantras e as orações precisas para a ocasião...
Obrigado, Mestre Antonio.
ExcluirDepois nos conte sobre o tempo em que você morou no templo, tenho certeza de que vai ser interessante!
Wilson,
ResponderExcluirEu sou capaz de imaginar o quanto deve ser complicado editar, ilustrar e moderar um blog, mas permita-me lamentar serem tão raros os seus belos "editoriais". A foto dessa Cesar bocejante bem mereceu cada minuto de trabalho naquele final de semana distante. Deve ter sido muito bom ser filho e parceiro do senhor seu pai nas andanças do laboratório para a oficina para driblar as dificuldades técnicas e poder retirar de um diminuto pedacinho de negativo "do tamanho de um selo" essa maravilha que correu mundo e foi exposta nos “salões” por boniteza e merecimento.
Dizem que quem sai aos seus não degenera. Está aí explicado porque, noutra trabalheira em final de semana mais recente, profissionalmente você colocou seus livros e a si mesmo de luto, para poder minimizar os reflexos da casa de vidro da Cesar e convencê-la a ilustrar o post (rsrs) Obrigado.
Sim esse "bocejo hierático" nos comunica o seu sentido e muito mais, senão não seria a obra de arte que é (rsrs) Não sei se ao rebatizar a gatinha o seu criador lembrou do escritor e educador americano George Leonard, que jurava de pés juntos que a "essência do tédio" mora na procura obsessiva por "novidades" enquanto que o seu oposto, a satisfação, reside “na repetição consciente e na descoberta da riqueza infinita de temas familiares, em variações sutis". O fato é que essa imagem nos provoca o efeito contrário do tédio, nos inspira a perseguir a adrenalina da criação, que depois de iluminar os pensamentos vai direto para as veias e nos empurra para a frente.
Quanto ao seu texto ele tem a mesma qualidade da foto faunística. Suas representações de Cesar e Bartô são grandes porque epítomes da espécie. Ambas nos contam histórias de bichos não exatamente domesticados, de comportamentos não tão distantes dos de seus antepassados selvagens, que nos encaram sem piscar, se esfregam em nós ronronando, requisitam comida, colo, fios, teclado e atenção antes de sair indiferentes para suas caminhadas de vários dias durante as quais parecem repensar as suas castradoras relações com os humanos (rsrs) Tanto a foto quanto o texto são quintessencialmente felinos e não poderiam retratar melhor esses oportunistas que se aproveitam das vantagens civilizatórias se espreguiçando em murinhos, degraus, poltronas e peitoris de janela, examinando as apetitosas paisagens sem donos lá fora, carnívoros dóceis equilibrados na fronteira dos lares humanos, sozinhos e contentes, mas com todos os seus sentidos sintonizados no mundo além.
Bravos para o fotógrafo, o autor e os bichanos.
Moacir,
Excluirobrigado pelo comentário tão generoso e que tão bem descreve os gatos. Eu fui o filho homem mais velho, e por isso comecei mais cedo a ser companheiro de meu pai em tantas coisas interessantes ao longo de quase setenta anos. Quando ele publicou, pouco depois de completar cem anos, o seu segundo livro, o exemplar que me deu traz escrito "Para o Mano, o 'Júnior', companheiro de tantas aventuras".
Ele tinha uma confiança muito grande em todos nós filhos e filhas, punha em nossas mãos, desde pequenos, seu precioso equipamento fotográfico (que conosco e sem ele viajou para lugares os mais inesperados), sua oficina, seus equipamentos de desenho, seus livros, seus discos (aqueles antigos, 78, que se quebravam com tanta facilidade). E fazia o que podia para nos ajudar a aprender a usar isso tudo. Com ele e Mamãe sempre foi assim. Nós oito temos muito a agradecer por isso.
Não conhecia a definição do George Leonard. Mas pelo visto ele sabia do que estava falando :)
Um abraço.
Muito lindo ! Uma bela História !Digna de um Baptista ! ( Dois )
ResponderExcluirAnna Paula
Obrigado, Tia Paula!
ExcluirPerfeito, Mano, com algumas ressalvas: César era um(a) gatinho(a) que eu achei na rua voltando do Pandiá e trouxe pra casa, quando mamãe perguntou que gato era esse eu disse: é o César, meu gatinho. Depois de desfeito o equívoco do sexo, Cesar teve várias ninhadas, das quais ficaram um tempo conosco o Coramina, o Veramon e o Cardiazol, nomes que Papai dava aos gatos. César levou um tombo e ficou com um problema na coluna, e quando morreu, talvez devido a isso, eu parava sempre no lugar que a achei, esperando que ela aparecesse ali, de novo. Foi assim que entendi que a morte era pra sempre.
ResponderExcluirZia, meu irmão, sessenta anos depois a memória nos prega peças de vez em quando... Claro que me lembro da descendência farmacêutica de César, mas podia jurar que ela própria) era daquela primeira família que Papai e eu tivemos que vstir máscaras de esgrima para expulsar da câmara :)
ExcluirMas que bom que você completou a história dela, ainda mais com esse final.
Um abração.
Bichanos à parte, Wilson, impressionante como tu e o senhor teu pai se esmeraram e conseguiram uma foto extraordinariamente bem feita do bocejar de um gato!
ResponderExcluirSem exageros, mas é uma legítima obra de arte.
Confesso que não identifiquei imediatamente do que se tratava, porém quando me dei conta que era uma felino talvez se espreguiçando, considerei inicialmente como desenho, jamais eu iria imaginar que fosse uma fotografia, Wilson, então os meus rasgados elogios à técnica implantada para realizar um trabalho digno de méritos, e de constar na sala de estar em uma refinada e bela moldura.
Sabe, momentos como este, depois pela segunda história de gato que relatas, e diante da lembrança da cadelinha que eu e a mulher tivemos, uma pequinês, de nome Mimo, penso que o nosso amigo em comum, o Rocha, budista, tem a sua razão, ao difundir que na sua filosofia podemos reencarnar qualquer forma de vida.
Quem poderia contestar que, lá pelas tantas, esses animais que surgem repentinamente em nossas vidas não teriam sido próximos de nós em vidas pregressas?!
Indiscutivelmente quando estamos diante de artigos que abordam animais e, como este, muito bem feito e demonstrando o trabalho que tiveste em fotografar o momento que o gato abria a sua boca, o meu aplauso, a minha admiração, em face do texto excelente e escrito de forma irrepreensível.
Um forte abraço.
Saúde e paz, Mano.
Que bom que você gostou da fotografia, Chicão. Sim, às vezes penso que, se não estiveram próximos de nós em outras vidas ou voltarão depois, os animais que amamos possam também estar nos esperando quando passarmos para o andar de cima, ou então felizes num Valhalla só deles...
ExcluirQuem sabe?