Modigliani - The Boy (Wikimedia Commons - Google Art Project) |
Moacir Pimentel
Modigliani foi um pintor profundamente italiano e claramente interessado
na linguagem do corpo, a língua da arte italiana. A pintura que inaugura o post
torna uma coisa óbvia: o interesse do pintor retratista não era apenas pelo
retrato em si, mas pelas as formas criadas dentro da composição.
Nessa tela o ângulo reto da mesa sobre a qual o menino descansa o braço
é contrabalançado pelo ombro inclinado e pelo braço esticado do outro lado. As
perspectivas servem para empurrar a figura para a frente, reivindicando a
atenção do observador.
Parece fácil, mas não é.
Um dos personagens definitivos da Escola de Paris, Modigliani modernizou
dois dos temas mais ancestrais da história da arte: o nu e o retrato. E os seus
retratos se caracterizam por uma sensação de melancolia, proporções alongadas e
rostos que mais parecem máscaras. São retratos altamente estilizados, que
revelam sim a vida interior dos modelos mas, ao mesmo tempo, são totalmente -
como direi? - modiglianizados.
Como já vimos Modigliani fez nus modernos de franca sensualidade,
desprovidos da modéstia e do subtexto mitológico presente em muitas
representações anteriores da nudez . Mas, entre as mais de duzentas e cinquenta
telas do artista, apenas vinte e seis abordaram a figura feminina despida.
Todas as demais foram retratos.
O trabalho do escultor romeno Constantin Brancusi foi talvez a
influência mais importante na arte de Modigliani. Graças a Brancusi, Modi ficou
fascinado pela escultura primitiva, em particular a africana. E, embora
Modigliani seja mais conhecido como pintor, dedicou-se à escultura cedo em sua
carreira e pode sim ser considerado um verdadeiro escultor.
As vinte e cinco esculturas de Modigliani - criadas entre 1909 e 1914 -
tiveram grande influência em seu trabalho como pintor, ajudando-o a chegar ao
vocabulário abstraído e linear de sua pintura, essa combinação única de
especificidade e generalização.
O DNA estilístico de Modigliani é óbvio: primeiro, o trabalho de
Brancusi - o amigo escultor que aconselhava-o técnica e moralmente - em seguida,
os elementos da arte exótica e arcaica e negra e por fim o traço renascentista.
Embora fosse pobre demais para comprar mármore ou mesmo pedra calcária -
às vezes ele usava blocos das demolições de Paris - ele esculpiu com graça, sem
imitar ninguém, de uma maneira precocemente sua. Embora o pó da pedra talhada
enfraquecesse seus frágeis pulmões, Modigliani esculpiu uma série de grandes
cabeças altamente estilizadas. Com seus narizes impossivelmente longos e
minúsculas bocas franzidas, as obras maciças combinavam a serenidade da
escultura tumular do Renascimento com o exotismo dos monólitos da Ilha de
Páscoa.
Ele também desenhou muitas cariátides - figuras arquitetônicas que
transportam carga - quase obsessivamente. Talvez a aguda consciência que Modigliani
tinha de si mesmo como um judeu e portanto um estranho o tenham voltado para a
riqueza da arte não-ocidental, para essa influência da arte tribal que a gente
percebe em suas esculturas.
Na sua arte tridimensional também moram reminiscências dos deuses Khmer
e da arte da Grécia arcaica e bizantina e do antigo Egito e de Roma.
Infelizmente, as cabeças esculpidas de Modigliani, que ele usava como suporte
para velas, como candelabros nos estúdios caindo aos pedaços que alugava para
dormir e trabalhar, eram simplesmente muito estranhas para atrair compradores.
Mas o artista realmente se jogou inteiro na escultura e ela o ajudou a
simplificar as formas, o ensinou a mostrar a essência de algo usando a forma e
o meio mais simples possíveis.
Digo mais: talvez a escultura de Modigliani seja a área mais inspirada
de sua obra. São realmente fora de série a imponente austeridade e o
distanciamento que as esculturas sugerem, como se fossem oriundas de remotas
eras e de ignotas culturas.
Modigliani - Cabeça (coleção privada, imagem www.sothebys.com)) |
Ele pintou a mulher Jeanne de perfil, muito parecida com tais esculturas
no rosto estreito, estilizado e simplificado, nos olhos em branco e alargados, no
semblante sereno como o de uma deidade.
Os retratos de Modigliani estão entre as imagens mais memoráveis e
icônicas do início do século passado. Gostemos deles ou não, apreciemos ou não
a estilização e o uso de seus motivos recorrentes como as cabeças inclinadas e
ovais, os pescoços longos e curvos, os olhos amendoados e sem visão - que
quando tinham cílios pareciam ter sido costurados nas telas (rsrs) - as faces planas
e alongadas, as bocas amuadas de lábios pequenos e franzidos e os narizes
compridos, essas imagens conferem aos retratos uma uniformidade que agora é
percebida como o estilo e a assinatura do artista.
O certo é que os retratos de Modigliani possuem uma qualidade
arquetípica, que os diferencia da arte de seus contemporâneos e que, como os
nus do artista, dão testemunho do fascínio que Modigliani tinha pelas forma e
fisionomia humanas. O que caracteriza um retrato de Modigliani é sua capacidade
de conservar a personalidade essencial de seus modelos enquanto a expressa
dentro do seu próprio vocabulário limitado de formas.
Eles se baseiam na tradição enquanto que, ao mesmo tempo, a contestam.
Embora aceitando a premissa de que um retrato deve se assemelhar ao tema, ele
se apropriava dos modelos em conformidade com uma rígida linguagem pessoal, de
modo que a pintura é reconhecível à primeira vista não como fulano ou sicrana
mas como um Modigliani.
E o aspecto mais surpreendente de um Modigliani, seja ele um retrato ou
um nu, o que o torna imediatamente identificável, é a estilização. Um
Modigliani não precisa morar no rosto ou no corpo de seus temas: é
instantaneamente reconhecido.
Muita gente boa jura de pés juntos que ao retratar Modigliani trata os
rostos de seus modelos como meras máscaras sem nada por trás, comunicando
principalmente uma impressão de monotonia, de rostos uniformemente pintados e resignados
no mesmo estado de espírito e humor. Eu discordo, embora as diferenças sejam
mesmo insignificantes entre alguns dos retratos porque o artista não se
preocupava apenas em reconhecer o caráter e menos ainda em analisar o ser vivo
que se sentava diante dele.
É como se ele se importasse menos com a personalidade individual e mais
com a imposição do seu esquema pictórico. De certa forma e na sua maioria, os
retratos se parecem uns com os outros pelo mesmo motivo que as banhistas de
Renoir são quase todas iguais: cada modelo se parece com a seguinte porque
todas se conectam a um estereótipo interno de seu criador.
O problema é que a máscara pode ser repetida indefinidamente, mas não se
torna um bom retrato e acontece que a maior parte da produção de Modigliani foi
de retratos. É isso o que faz com que os seus menos inspirados e mais exaltados
retratos pareçam repetitivos e chatos. Mas não podemos generalizar.
Os retratos do artista além de terem muito valor em si também servem
como um registro histórico dos primórdios do século XX, compreendendo uma fila
de figuras proeminentes do círculo das artes em Paris. Mas é um grave equívoco
entender os retratos de Modigliani como meras caricaturas ou afirmar que ele
foi um pintor de tipos: as mulheres da vida dele e os amigos de copo e de
tintas, os marchands e colecionadores de arte de Paris todos bem vestidos e
sentados implacáveis, de mãos cruzadas.
Nada disso!
Se compreendemos que o objetivo principal do artista jamais foi exaltar
os seus modelos nem muito menos registrá-los para a posteridade, mas sim
capturar a imagem de um indivíduo não em um momento específico na vida dele,
mas da carreira do próprio artista Modigliani, percebemos que alguns dos seus
retratos são fora de série.
Por exemplo, o único retrato de corpo inteiro feito durante a temporada
que Modigliani passou no sul da França feliz ao lado da mulher amada, tem uma
quietude e uma presença inesperada A terna representação de uma menina sem nome
vestida de azul tem a dignidade dos melhores Cézannes.
Modigliani - Menina em Azul (wikiart.org) |
Essa garotinha de oito a dez anos é mostrada quase em tamanho natural. O
vestido e a parede nos oferecem um estudo sutil em azul que é iluminado pelos
olhos e a grande gola branca. Embora a cena seja toda doçura e inocência, não
há nada de raso nela. A composição do canto combina-se com a sombra e a
cerâmica escura do piso para adicionar uma sensação de profundidade, enquanto a
conversa das botas e dos cabelos negros da figura transmite um ritmo sublinhado
pela fita vermelha que domestica-lhe os cachos.
Dizem que essa criança de aspecto desconfortável e vulnerável que remexe
suas mãos nervosamente, de fato acabara de ser repreendida pelo artista que a
mandara trazer-lhe uma garrafa de vinho e, em vez, recebera dela uma limonada
(rsrs)
Talvez o desconforto da menina também refletisse o de Modigliani, o peso
da sua própria pobreza. Ele foi despejado de uma série de quartos em Montmartre
e Montparnasse e chegou mesmo a dormir em estações de trem e edifícios
abandonados. Às vezes, diante dos retratos do artista, dos seus temas
melancólicos, se tem a impressão que neles mora algo de muito frágil do próprio
artista, pois são como crianças feridas, como se o mundo fosse para Modigliani
um enorme jardim de infância administrado por adultos muito desagradáveis
(rsrs)
A verdade é que Modi foi sempre mais generoso com as senhoras. O retrato
duplo de Jacques Lipchitz e sua esposa, Berthe, exemplifica o talento de
Modigliani para provocar a vida interior de seus modelos. Embora ambas as
figuras tenham as tais “faces-máscaras”, Berthe tem um rosto aberto e uma
espécie de bondade, transmitida pelo brilho da pintura e pelos olhos inclinados
para baixo enquanto que Jacques, com seus traços pequenos e comprimidos, parece
calculista e suspeito.
Porém Jacques era um bom sujeito pois havia acertado com o amigo
Modigliani pagar-lhe pelo quadro por semana. Querendo ajudar o pintor e
pagar-lhe tanto quanto possível pelo seu trabalho, Jacques Lipchitz exigiu
tantas mudanças na pintura que ela demorou quase três semanas semanas para ser
concluída e o artista comeu decentemente pelos três meses seguintes (rsrs)
Modigliani - Lipchitz )imagem china.fineart-china.com) |
É fato que nas telas do artista as mulheres geralmente são muito mais
lisonjeadas do que os homens que muito frequentemente são quase caricaturados
ou satirizados, como é o caso de Jean Cocteau e Juan Gris. Porém aqueles
modelos mais próximos a ele, como por exemplo Max Jacob e o pintor Chaim
Soutine, foram interpretados com simpatia.
Dizem as más línguas que Modigliani detestava Jean Cocteau, o poeta,
romancista, cineasta, designer, dramaturgo e ator francês por ele pintado em
1916, no auge do sucesso. Seu retrato – a primeira tela em sentido horário na
montagem abaixo – é um conjunto nervoso e elegante de triângulos interligados,
a cabeça equilibrada sobre a haste de um pescoço, no qual cada elemento da
gravata-borboleta até os dedos longos e trêmulos indicam um imenso fastio.
O fato é que em 1959, uns quarenta anos depois dos dois terem se
conhecido e se estranhado nos cafés de Montparnasse, o poeta Cocteau descreveu
Modigliani como “o gênio mais simples e mais nobre de uma época heroica.”
O segundo retrato na montagem é o do pintor Chaim Soutine, um expatriado
judeu cuja arte excêntrica muito interessava a Modigliani. Soutine alça-se da
composição como uma pilastra desajeitada. O nariz tem uma largura abrutalhada,
os olhos são assimétricos e os cabelos uma bagunça desgrenhada.
O pathos do jovem artista, ainda não reconhecido como tal, é enfatizado
pela expressão do olhar, a rebeldia da cabeleira e os traços pesados e
avermelhados. O contraste entre os tons dominantes e tristes do fundo
intensificam a aflição do modelo. Aqui vê-se tristeza mas determinação: os
lábios estão firmemente cerrados.
Toda essa aspereza é contrabalançada pelos pulsos e mãos esguias, pela
impressão que temos de um sujeito ansioso por uma pátria para chamar de sua e,
na ausência dela, disposto a formar uma aliança inquebrantável com si mesmo. As
afinidades entre os dois homens são claras neste retrato.
Já o retrato do poeta judeu Max Jacob - a quem Modigliani respeitava -
também é expressivo com seu grande nariz e olhos curiosamente diferentes - um
olhando para fora e o outro aparentemente olhando para dentro - elaborado como
uma reverente homenagem ao Deus dos retratistas na opinião de Modigliani : o
grande Cézanne.
Como os trabalhos italianos do renascimento que ele admirava tanto, os
retratos de Modigliani têm o tipo de efeito de distanciamento que convida o
observador a penetrar além da superfície da imagem a fim descobrir seus
segredos. Mas raramente Modigliani aproveita-se da tradição de séculos e
incorpora pistas sobre a identidade do seu tema. Nada no último quadro da
montagem nos indica que se trata do pintor Juan Gris.
Os modelos raramente eram nomeados e esta prática é uma indicação
adicional de que o artista ao retratar estava principalmente preocupado com a
figura e a variedade da forma humana como tal, e não com as especificidades de
um determinado modelo.
Mesmo assim e dentro do contexto, e apesar de cada retrato mais parecer
uma tentativa de fornecer o mínimo de informação que leve à identificação do
modelo, alguns dos retratos são reconhecíveis - a misteriosa Hélène Joséphine
Bernier Povolozky, a magnífica modelo polonesa Anna Zborowska, o ríspido
escultor russo Oscar Miestchaninoff, o arrogante marchand Paul Guillaume.
Modigliani - Retratos (imagens wikimedia, www.secretmodigliani.com e www.musee-orangerie.fr) |
Os retratos que Modigliani fez de Paul Guillaume, o seu primeiro
marchand verdadeiramente profissional, são muito reveladores. Nesse à direita
inferior da montagem acima, Guillaume aparece elegante e confiante, com o
bigode agitado e a mão enluvada segurando um cigarro. Note que no canto
inferior esquerdo o artista escreveu as palavras “Novo Pilota” como se
vislumbrasse no comerciante de arte alguém experiente que iria alavancar sua
carreira. Mas também é visível na composição uma ponta de desconfiança sentida
desse cosmopolita metido a besta na forma como ele enfatizou a inclinação da
cabeça, o terno extravagante, o cigarro, quase como se Guillaume fosse um
proxeneta que vendesse o trabalho dos heroicos artistas.
Outra das anedotas famosas sobre o Modi escrita pelo pintor Maurice de
Vlaminck fala de como certa vez Modigliani mostrava em seu estúdio alguns
desenhos para um interessado negociante de arte, que caiu na besteira de
pedir-lhe um desconto. Em seguida o artista, sem dizer uma palavra, pegou a
pilha de papéis e os endireitou com cuidado, fez um buraco bem no centro e
através da pilha inteira, enfiou um barbante no lote e pendurou-o no banheiro.
Impulsivo e argumentativo, Modigliani não tinha a menor inclinação ou
paciência para “o comércio” das próprias obras nem as habilidades sociais
necessárias para ser um retratista de encomendas. Diz Dona Lenda que ao pintar
uma nobre francesa vestida a rigor para a caça às raposas, ele mudou o
tradicional casaco de caça da senhora de escarlate para amarelo canário e que a
baronesa, é claro, se recusou a pagar pela pintura.
Embora Modigliani estivesse evidentemente mais interessado na fisionomia
per se do que na psicologia ou na análise de caráter, ele insinua seus próprios
sentimentos em relação a seus temas pela maneira como ele usa as expressões
faciais ou a posição das mãos para capturar algo da personalidade. Apesar das
sutis alusões à localização - uma lareira, cadeira, porta - os fundos
geralmente consistem em áreas de cor pura, abstrata, reminiscente das pinturas
de Matisse.
Em contraste com a energia nervosa característica dos retratos do início
do século XX, alguns trabalhos de Modigliani irradiam intensidade emocional
controlada, são "visões da humanidade", com o artista os explicava,
cheias de melancolia e de uma calma que contrasta com a vida pessoal caótica do
artista, da qual ainda conversaremos na próxima conversa.
Trocaram os quadros?
ResponderExcluirBom dia,Tita. Por favor, que quadros exatamente lhe parecem ter sido trocados? É que acabo de checar as imagens postadas e confrontá-las com o texto e não fui capaz de localizar a falha que gostaria de poder sanar. Obrigado.
ExcluirEu queria por na minha sala o quadro da linda menininha vestida de azul com olhos normais em vez de buracos ‘que quando tinham cílios pareciam ter sido costurados nas telas’ kkk Acho que dispensava os outros mesmo tão bem embrulhados neste seu ótimo artigo. Não entendo por que ele fazia retratos se só queria pintar o que tinha na cabeça. Não seria melhor pintar paisagens? Bom final de semana!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirOlha que eu escolhi os retratos a dedo para não ilustar o post com caras de paisagem (rsrs) Pois da paleta do pintor alguns retratos saíram , sim, bem inexpressivos.
Acho que Modigliani, em vez de quebrar as suas figuras como fizeram os cubistas, tentou apenas “repaginar”, como diz a juventude, o retrato clássico que estudara desde os quatorze anos nas melhores escolas da sua Itália natal.
A sua pergunta é interessante porque, embora as possa ter pintado, eu não conheço nenhuma paisagem ou natureza morta assinada por Modigliani. O engraçado é que um dos ídolos do Modi foi Cézanne, para ele o mestre dos retratistas modernos, que muito influenciou , inclusive, a sua obra. No entanto e diferentemente do seu fã, Cézanne também pintou paisagens e naturezas mortas absolutamente modernas e capazes de expressar bem demais o que o pintor tinha n'alma e “na cabeça”
Abração
Após eu ler com muita atenção os excelentes artigos de Pimentel sobre pintores e escultores ou pintor e também escultor, pergunto-me se havia entre eles algum artista cuja vida seria feliz, alegre, sem maiores problemas!?
ResponderExcluirOs gênios nesses dois tipos de arte são um poço de situações pessoais dramáticas, confusas, de amores impossíveis ou difíceis, de confusões mentais intensas, razão pela qual transformaram suas existências em exemplos de pessoas complicadas, a ponto de muitos terem se suicidado, como nesta postagem de Modigliani, onde anteriormente o Pimentel relatou a forma como este artista morreu – doente e alcoólatra -, levando consigo a sua esposa, que se suicidou no dia seguinte à morte do pintor/escultor!
Não discuto a arte desses notáveis pintores e escultores, verdadeiramente maravilhosa, apesar de ser para um público restrito e refinado em seus gostos neste particular, mas a carga emotiva que cada peça reúne em si mesma, a maneira até mesmo doentia com que foi criada, acarretando as angústias, frustrações, decepções, anseios e desapontamentos do autor.
Teriam sido por esses infortúnios que depois as obras valorizaram tanto?
Estaria o sofrimento do autor, de acordo com a sua intensidade, cotado para que suas obras valessem mais ou menos posteriormente?!
Parabéns, Pimentel, por nos trazeres os teus profundos conhecimentos sobre pinturas e esculturas, e seus criadores, lógico, seus artistas renomados internacionalmente, para que conheçamos os talentos humanos em seus apogeus, ao mesmo tempo que devemos anexar a essas qualidades artísticas o sofrimento indescritível de seus autores, que me leva a concluir – e admito opiniões em contrário – que, a arte está ligada diretamente à dor, uma espécie de “incentivo” à criação, à concentração, à imaginação.
Logo, a felicidade seria um empecilho poderoso para termos um artista com qualidades reconhecidas e admiradas?!
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirPenso que a felicidade é algo relativo, pessoal e muito frequentemente interrompido. É que tem dia que é de noite e tem noite que é cumprida, mas tudo passa. Só são felizes ou infelizes “em seguidinho” ou para sempre, os mocinhos e os bandidos nos finais dos contos de fada (rsrs)
Porém, admito, esse Modigliani tuberculoso, alcóolatra e viciado em drogas, ou um van Gogh suicida, ou um Munch alucinado gritando a angústia do homem moderno à beira do fiorde de Oslo, podem sim nos fazer pensar que os artistas são todos uns pobres miseráveis muito estranhos. E estranhos eles são sim, não pelas infelicidades comuns a todos os mortais, mas pela inconformidade, a vontade de desafiar as convenções, de nadar contra a correnteza, a eterna insatisfação com seus trabalhos.
Tudo bem que todo criador pensa, que pensar dói e que arte de primeira foi muitas vezes feita por pessoas com vidas profundamente insatisfatórias, mas é impossível afirmar que a tristeza é uma condição necessária à arte. Longe disso.
Vejo todos esses gênios não como infelizes mas como homens apaixonados por suas ideias e visões. Criar uma obra-prima exige além de talento, trabalho duro. Para deprimidos e infelizes tal façanha me parece improvável pois a depressão é aquela coisa que nos diz : fique na cama, nada que você faça dará certo, você está se iludindo, você não tem talento, você não tem nada a dizer, o seu esforço é inútil. Os grandes artistas são aqueles que encontram uma maneira de driblar a tristeza, de empurrar para longe o desespero, de acreditar que suas obras podem ser vistas, escutadas, sentidas, que tocarão as vidas dos outros, que farão a diferença. Se alguém tem um talento, me parece que usá-lo seja uma felicidade.
A energia e a visão necessárias para criar, seja lá o que for, não vem do desespero, mas dessa alegria, de uma aproximação do mundo com os olhos e o coração abertos. Penso que a arte brota da vida, nasce nas bordas cruas da experiência humana e que, tanto quanto a infelicidade, a alegria, o amor, a paixão, ou mesmo o medo levam a esses extremos criativos. Um artista é aquele que responde ao mistério da existência com fascínio, não com desespero. É o cara que reconhece suas próprias deficiências e sente a dor dos próprios limites e a do mundo mas que, apesar de tudo, continua trabalhando neles e apostando em si mesmo até que, eventualmente, inventa a magia. Com a palavra o Ludwig que, aliás, é apenas mais um na lista por ordem alfabética dos famosos artistas deprimidos da Wikipedia com a sua Ode à Alegria que, se é que ele não tinha soube nos dar.
https://www.youtube.com/watch?v=a23945btJYw
Abração e muito obrigado pelo interessante comentário
Modigliani infelizmente não teve tempo para se livrar da influência clássica nem para desenvolver um trabalho realmente inovador. A verdade é que ele se foi quando estava apenas começando a fazer arte
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirMeu amigo, convenhamos, não é moleza se libertar do traço renascentista (rsrs) Não, ele não teve tempo mas bem que tentou perseguir sua visão artística embora pisando na bola.
O problema é que diferentemente da obra de Modigliani – que ficou toda à mostra com seus altos e baixos - dos grandes artistas geralmente conhecemos apenas os produtos acabados, abotoados, polidos e não os fracassos, as esculturas feitas em pedaços por pura frustração, as várias mediocridades abortadas, os cadáveres que alimentaram o solo do qual brotaram finalmente as derradeiras obra-primas. É uma grande pena que o Modi tenha se despedido com tanto ainda por experimentar e expressar e que nunca saberemos o que ele teria pintado por cima.
Abraço
Moacir,
ResponderExcluirParabéns pela sensibilidade. Você descreve muito bem estes retratos. Gostando ou não há elegância e originalidade na pintura do artista. As crianças são encantadoras e no retrato do casal você mostrou como o artista conseguia pintar as personalidades diferentes. Modigliani era um menino grande e irresponsável tentando pintar o mundo como via. Destaco : ‘Um enorme jardim de infância administrado por adultos muito desagradáveis’.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirAs minhas observações são pura poesia, pois muito pouco se sabe sobre o homem Modigliani, o cara real, tragado que ele foi por seu próprio mito – o Maldito! - e transformado em um dos seus personagem coloridos. O Modi emerge de vários relatos de terceiros como uma espécie de caricatura - orgulhoso, apaixonado, Don Juan, boêmio, maluco, exibicionista, bufão, furioso, um meninão cultivado por uma mãe erudita etc, etc - mas o verdadeiro Modigliani permanece desconhecido e silencioso e a dificuldade resultante é uma sensação de divisão entre o sujeito e a obra. Como se a gente estivesse assistindo um ator cômico tentando representar Macbeth. Faltam peças nesses quebra-cabeça.
Por fim, você tem toda razão quanto a elegância tão natural em Modigliani. Talvez o pintor simplesmente não tenha sido o selvagem do mito apesar de tanto ter investido nele. Talvez ele tivesse sido mais feliz se tivesse admitido que pertencia a um mundo diferente daquele que escolheu para pintar e morrer. A sua tragédia pode ter sido desperdiçar sua vida na tentativa de viver à altura de um apelido que realmente jamais o descreveu.
Outro abraço para você
Pimentel,
ResponderExcluirUm post interessante e bem escrito. A escultura me agrada muito mas é difícil opinar sobre os retratos sem conhecer os retratados. Sobre Modigliani o que mais me intriga é a tranquilidade da obra em contraste com a vida tumultuada.
Sampaio,
ExcluirConcordo com você. As esculturas são estupendas e sim, há algo muito sereno na obra de Modigliani que muitas vezes expressa também uma melancolia discreta, uma ternura requintada, mas nunca nada de mórbido ou turbulento. Um mistério.
Obrigado pelo comentário.
1) Nossa aula semanal de artes plásticas vai muito bem.
ResponderExcluir2)O autor do texto permite que o leitor aprenda por vários ângulos, pois assim é a liberdade da arte.
3)Claro que me fixei na arte khmer, do antigo Camboja, século 12, uma arte budista.
4)Que tal nosso bom Pimentel, mais adiante, falar da arte khmer ?
5)Abraços de bom domingo !
Antonio.
ExcluirVou escrever sim sobre a bela arte Khmer, só não sei quando, mas aproveito para comentar que só recentemente, com a publicação de uma monografia - que não li ! - reproduzindo centenas de desenhos obras de Modigliani, se soube de uma sua suposta “espiritualidade”. Dizem que ele teria sido atraído pelas coisas budistas, indianas, gregas, etruscas, egípcias, africanas etc porque as desenhou à exaustão além de ter escrito as seguintes palavras:
“O que estou procurando não é o real nem o irreal, mas o subconsciente. É o mistério do que é instintivo na raça humana”.
Pronto! Foi o bastante para que, na web, Dona Lenda passasse a jurar de pés juntos que Modigliani procurara por algo profundo e universal, que, é claro, não era apenas uma questão de pintura, mas também de poesia, de literatura, de tudo, do significado filosófico da vida, de deus.O problema é que não há provas dessa busca espiritual a não ser essas cabeças de pedra alongadas de olhos inescrutáveis, uma arte atávica , quase tribal, que Modigliani cometeu com a elegância de sempre.
O tal primitivismo de Modigliani, por trás das esculturas, dos seus retratos de pessoas transformadas em totens, da esposa pintada de perfil como as deidades, de alguns rostos redondos de olhos orientais, têm sim muito a ver com as estátuas indianas e as esculturas dos templos cambojanos, mas sua sensibilidade visual é completamente ocidental. Modigliani muito deve tanto ao sorriso do Senhor Buda quanto ao da Mona Lisa, aos longos pescoços de Parmigianino e aos daquelas mulheres tailandesas (rsrs)
"Gratidão" e boa semana de trabalho
Olá Moacir,
ResponderExcluirVocê me deixa um pouco desorientada, mais um pouco, porque fico ansiosa para ler sobre a Sagrada Família, a sobremesa, e fico doidinha quando chega um Modigliani. Fazer o que, ler e desfrutar e ansiar.
Nunca havia visto uma escultura dele e gostei muito. Para mim é como se ele imprimisse suas "digitais" numa peça egípcia ou africana. E, não ria, por favor, mas alguns retratos me lembraram Egon Schiele. Por exemplo no Mãe e Filho, e Par Sentado. Apesar de Schiele ser extremamente expressivo. O que não acontece com Modigliani, mas que mesmo assim consegue se expressar. Que bagunça eu fiz, hem?
Gosto muito de Modigliani. E continuo vasculhando os fundos das telas, que mesmo quando não sofrem influência de Cèzanne trazem uma materialidade fantástica.
Assim como seu texto.
Mais de tudo, por favor.
Caríssima Donana,
ExcluirConfesso que os seus comentários me fazem rir, sim senhora, porque gosto muito deles e, – quem sabe? – por compartilhar dessa sua “desorientação” diante de tantos vastos mundos e neles de tanta gente boa fazendo artes melhores ainda. É tanta coisa para ver e perceber e tanta bobice para escrever e tão curto o tempo!
Quanto ao link que a senhora faz entre Modigliani e Schiele dê uma olhada nos olhos e no ângulo do rosto do Juan Gris (rsrs) Creio que os nus de Modigliani são donos de si enquanto que os de Schiele, embora possuam uma espécie de erotismo descarado, são mais cheios de contradições e ambiguidades combinadas com o olhar infalível dele para as imperfeições físicas e com a sua inquietação agônica. Porém, de vez em quando, nas coisas do Modi – notadamente nas telas que cometeu no Midi em 1918 - eu também identifico uma parecença com algumas figuras austríacas de sensualidade mais melífula. Um exemplo? Essa garota:
https://uploads8.wikiart.org/images/amedeo-modigliani/girl-in-the-shirt-red-haired-girl-1918.jpg
Note como os nus reclináveis do Modi produzem uma impressão muito diferente, de abandono sem obstáculos. Essa menina rechonchuda, de tranças ruivas, em vez, é muito mais interessante que as "peladecas". E veja como a figura apesar de moderna e prima em terceiro grau de algumas das Frauen mais recatadas, é descendente direta das antigas beldades mediterrâneas repetindo um gesto clássico nosso velho conhecido, eternizado no mármore pela Vênus dos Médicis e nas tintas por Botticelli no Nascimento de Vênus.
http://images.zeno.org/Kunstwerke/I/big/1730042a.jpg
Finalmente, creio que a senhora poderia jogar “na boa” e num só pacote Cézanne, Schiele, Modigliani e Morandi porque embora eles tenham brincado diferentemente – Schiele mais focado nos humores, Morandi na magia do básico, Cézanne na redução geométrica e Modigliani numa figuração suave e fluida e arcaica - todos eles reinventaram a forma em linguagens visuais inovadoras.
Obrigado pela “conversa” e “até mais”.