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01/10/2017

O Grito

Cabeça de homem gritando - Gravura a partir de desenho de Michelangelo - autor desconhecido (Wikimedia commons)
Heraldo Palmeira
A noite de início de primavera trazia os primeiros sinais da temporada de calor. A padaria de bairro – que a cidade gigante aprendeu a chamar de padoca – reencontrava os fregueses de todas as noites. Brincávamos entre nós, jogando no ar boas pilhérias amparadas em algumas características individuais, micos antigos, o de sempre. Qualquer motivo dando motivo.
Nenhum item do cardápio é tão saboroso quanto provocar os meninos atrás do balcão, jogar uns contra os outros, tirar onda! E falar das últimas e das penúltimas, ainda mais quando é noite de futebol ou seguinte à rodada dos diversos campeonatos.
Aí, brilha a verdadeira enciclopédia ambulante, um freguês que sabe tudo de números, resultados, prognósticos, nomes, análises, dados que vão surgindo enfeitados por aquele sotaque italiano radical de origem, cantado, belíssimo, Moóca legítimo.
Ali trabalha uma gente raçuda, que mora longe, que pega ônibus, que leva hora e meia e beira a madrugada para chegar em casa. Mas que não verga, volta no dia seguinte, alegria em punho, fraternidade na ponta da língua, bem-querer do melhor que existe.
Uma gente justa, com visão de mundo e práticas cotidianas que nos obrigam a seguir acreditando nessa tal de gente. Uma gente que vive o que faz porque faz pra valer, se gratifica na satisfação do cliente, tem orgulho de estar na boa luta.
Têm plena consciência de que preparam comidas deliciosas, tudo que sai da cozinha é ótimo. E, de sobremesa, criaram a receita de um adorável local de trabalho.
Uma gente que não esquece o que você gosta e capricha no preparo, mas sugere experimentar outras coisas, cuida dos que fazem dieta – impedem refrigerantes, açúcar, sal e o escambau. E que ouve sugestões e chama a patroa para ouvir também, sem medo de dizer que concorda com o freguês. Não raro, mandando um sonoro “Tá vendo, eu não disse” glorioso, de peito estufado!
Rabada com agrião deverá entrar no cardápio em breve. Votação unânime e rápida, encerrada minutos depois da sugestão e sem discursos intermináveis. Afinal, ali, o único supremo que se leva em conta é o de frango. O resto é piada.
A patroa, entre tantos afazeres, quer aprender a guiar moto e comprar uma. O filho tem uma belíssima Harley tinindo de nova, mas está desestimulando a mãe. Tem medo por ela, que anda animada com uma Triumph que eu sugeri, e vai tocando a vida com o sonho viajando na garupa.
Depois de um dia de trabalho, difícil pensar em ir para casa sem passar por lá, nem que seja para dar uma sacaneadinha básica na chatice da vida.
Gosto de ficar num canto de parede, colado no balcão, sentado confortavelmente. Posso ler as notícias do dia no celular, saber das novidades da região, prosear enquanto preparam meu pedido, tirar dúvidas de última hora – “posso colocar balsâmico na salada? Tempero logo aqui? Cebola crua ou refogada, doutor?”.
Nada melhor do que ouvi-los ralhando com o garçom matreiro que não tira o sorriso do canto da boca e dos olhos, que não para de lançar iscas para a fulerage começar. Ou continuar. Claro, eles sempre me pedindo opiniões cavilosas para provocar, para engrossar o caldo.
Uma gente que erra seu pedido – peixe ao invés do frango grelhado escolhido – e, com charme irresistível, diz que se desentendeu com o colega na hora da transmissão. Um jeito maravilhoso de não haver culpados, pois ali é um lugar do prazer da boa convivência. Para completar, o sem-vergonha ainda faz uma defesa firme das qualidades do pescado, ômega 3 e tal... E arremata para o gol: “Amanhã pode vir comer seu frango que eu faço no capricho”. Game over!
É claro que a algazarra é robusta, falamos alto, ainda mais quando tiramos sarro de uma das balconistas, que adora – de pura safadeza – jogar água na direção dos nossos pés quando chega a hora de lavar o chão para fechar a casa. “Bora, que eu moro longe!”.
Mas naquela noite de início de primavera uma voz soou mais alto. O homem dirigiu-se quase ameaçador à mulher, na mesa ao lado.
– Dá pra você deixar essa porra de telefone de lado?
– Mas eu preciso só dar uma olhada, porque o pessoal está terminando...
– Deixe o pessoal pra lá. Será possível?! A gente saiu com o nosso filho para ficar juntos, conversar, curtir em família. E você tem que ficar mexendo nessa porra?
O filho, um pós-bebê que ainda cambaleava testando os primeiros passos e não tinha se iniciado nas falas, começou a demonstrar aflição com a discussão dos pais. Impotente, sem saber como mandá-los parar, jogou o cardápio no meio do salão.
Retrato destes tempos de relações que começam, crescem e morrem pelas (e até por causa) redes sociais, ali estava um extrato do exagero digital, essa doença que avança silenciosa, covarde, cruel, criando viciados em fumaça, glutões desse éter que alimenta o individualismo, a ilusão, a solidão, a depressão e a negação do que não pode ser negado: o homem é um ser social e não um conjunto de bits que deve viver conectado feito um hardware periférico num mundo virtual.
O silêncio na padoca era gritante naquele momento, como na hora da cobrança de um pênalti. O garçom matreiro, aquele do sorriso no canto da boca e dos olhos, foi rápido no lance e jogou sua isca para virar o jogo:
– Pode deixar que o tio pega. O que você escolheu, menino lindo?
Um dos rapazes do balcão lançou em campo, de primeira sem segunda, o gol de mão que manteve o líder no topo da tabela. Eu não deixei quicar, de bate-pronto evoquei a inspiração no velho malandro Maradona e la mano de Dios.
Um senhor, na ponta-esquerda, lá perto da saída, recebeu meu passe, matou no peito e evocou o carioca Mário Vianna – o velho juiz que virou comentarista de rádio e que cravou o bordão “La mano, eu disse la mano”, quando algum espertalhão metia a mão na bola.
Soou o apito, o jogo parou, o casal baixou sua própria bola depois que a mulher aquiesceu, abandonou o celular, reconheceu que pisou na bola, pediu desculpas ao homem e fez um afago no pequenino falando palavras carinhosas, de mãe.
Depois do pênalti, o pai, nos desvãos da atenção da mãe ocupada na fila do caixa, se derretia para uma moça linda, encantada com a graça do pirralho.
Em pouco tempo, o menino estava orbitando no melhor espírito da nossa padoca, correndo pelo salão, distribuindo a todos um sorriso tão franco, que merecia nunca ter um celular precoce para fazer logoff do mundo analógico.
Ele continuava mais do que autorizado a correr pelo campo inteiro, rindo para todos. E ninguém ousaria marcar impedimento àquela felicidade pura. Afinal, ele já estava conectado com a alegria que a gente cultiva ali, noite a noite, com força, seja qual for a estação do ano, haja calor ou frio.


18 comentários:

  1. Francisco Bendl01/10/2017, 10:46

    Palmeira é um expert em narrar fatos da vida.

    Escreve fácil, e seus textos são excelentes, fáceis de ler, de se compreender a essência do artigo.

    Mas, o garçon que aponta na sua crônica, me fez lembrar um desses imprescindíveis profissionais que conheci quando eu estava no Exército, na Polícia do Exército, lá pelos idos de 69.

    Eu estava como Cabo da Patrulha e, eu, mais o sargento e três soldados fomos atender uma ocorrência no Mercado Público, onde um soldado havia criado encrenca com o garçon, que atendia em um dos variados restaurantes populares existentes naquele local.

    Queixava-se o militar, então a sua quase agressão ao servidor, que pedira uma sopa, e esta estava com uma mosca no prato.

    Ao reclamar para o garçon, que uma mosca se misturava à sopa, o garçom retrucou, alegando que pelo preço que pagara pela refeição que mais insetos seria mais caro!

    Pois o mesmo profissional, já conhecido como brincalhão, pelo menos para os frequentadores do Mercado, também certa feita criou outro problema, ao contestar um cliente que havia um "bicho" na comida.

    Respondeu que o tal bicho era o desenho do prato, rapidamente contestado pelo cliente que seria impossível porque este se mexia!!

    Foi quando o nosso herói se saiu com uma das mais brilhantes respostas que escrevi depois no meu relatório de ocorrências:
    - Então, está se mexendo porque o desenho do prato é animado!

    Parabéns, Palmeira, por mais um brilhante artigo.

    Um abraço.
    Saúde e paz.



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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 01:01

      Bendl,
      Obrigado. O cotidiano é muito rico para nos oferecer ótimas histórias, como a desse garçom que você nos ofereceu de bandeja. Abraço.

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  2. Querido amigo Heraldo
    Fiquei muito satisfeito em ler o seu texto. Leve, sem amargura, primoroso na construção dos personagens e no ritmo dos fatos.
    Reapareceu o contador de estórias a que estou acostumado.
    Precisamos conversar outra vez. Estou escrevendo memórias sobre a "nossa" Nau Capitânia, agora nomeada pela Marinha como "Nau do Descobrimento", mais adequado para o grande público que a visita no cais dos navios históricos.
    Aguardo sua vinda.
    Um abraço fraterno
    Domingos

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 01:04

      Caro mestre,
      O que dizer do seu comentário, grande contador de histórias?

      Imagino a alegria de tratar das memórias de Nau Capitânia> Claro que estou à disposição. Assim que for, avisarei. Abaço apertado.

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  3. Senti os cheiros da padoca e sem ter lá estado, senti como se fizesse parte e, de lá, jamais houvesse saído. Obrigada, doce e risonho Heraldo, por me revelar local num dos cantos esquecidos do meu eu, onde sou leve e simples como a criança pós-bebê, sem conceitos nem preconceitos.

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 01:08

      Ana,
      As padocas são esses pedaços comuns de todos nós, uma das grandes invenções humanas. Nelas reside a simplicidade da comida primordial, o pão. Por isso nos identificamos tanto.

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  4. 1) Boa crônica do Heraldo, tem bom domínio das palavras e coloca o sentimento das pessoas de forma certeira.

    2)Quanto ao comentarista Mário Vianna, lembro que, às vezes, ele falava "Vianna com dois n"

    3) No mais, só agradecer pela leitura bela que me proporcionou.

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 01:09

      Antonio,
      Obrigado pela leitura, comentário e memória do velho Vianna com dois enes. Abraço.

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  5. Moacir Pimentel02/10/2017, 07:27

    Mestre Heraldo,
    Teclar que você é fora de série descrevendo paisagens físicas e emocionais e mentais é chover no molhado. É preciso olhar bem de perto e de frente e usar a alma funda para perceber –enquanto se come rabada com agrião! - que sim nesses tempos escuros ainda existem “padocas” povoadas por gente “que não verga , volta no dia seguinte, alegria em punho, fraternidade na ponta da língua, bem querer do melhor que existe”. O problema é que “isso” não dá em jornal nem no éter.
    Porém a descrição que você faz do herói da crônica, do pirralho, daquele que pode não escutar quando os pais o mandam arrumar os brinquedos mas que é todo ouvidos quando eles berram um com o outro e que, se sentido ameaçado, ficou agressivo e jogou o cardápio no meio da roda para distrair os seus adultos preferidos da briga, é fora de série.
    É triste saber que o moleque para fazer estes dois ter juízo vai ter que tentar o método de novo e de novo. E que sem a presença da galera compassiva da “padoca” para ajudá-lo a matar no peito e marcar aos 48 minutos do segundo tempo, infelizmente pode não rolar um happy end da próxima vez que os ânimos se exaltarem. Afinal se esse sujeito grita com a mulher eternamente plugada na happy hour da padaria do bairro, baseados na lógica podemos imaginar os gritos - não do Leonardo mas do Munch! - que rolam entre as paredes desse lar e que ficam ecoando na cabecinha do garoto. E temer que , ao fim e ao cabo, ele venha a perder a partida da vida.
    Parabéns e abração

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 18:36

      Caríssimo,
      Sempre digo, eu apenas sou observador da cena urbana. É uma característica que trago desde a infância. E sou extremamente sensível aos bons afetos, moeda frequente nas transações da minha padoca.

      Sei que não dá em jornal nem no éter, mas estamos aqui exatamente para isso, para jogar no meio do mundo, para muitas pessoas ficarem sabendo e traçarem paralelos com suas próprias padocas, bodegas e afins - não foram poucas as pessoas que já me escreveram a respeito de suas próprias padocas.

      Ainda bem que temos esta parte bendita da tecnologia para nos ajudar a ampliar nossos tesouros particulares. Assim, as pessoas percebem que não estão sozinhas, que não ficaram fora de moda, que mais gente gosta das mesmas coisas que elas.

      Veja como o danado do pirralho era central: eu tenho essa padoca todas as noites (e alguns dias), mas precisou rolar o grito silencioso do danadinho para eu poder "colocar o time em campo", fazer aquela linha de passe e revelar a padoca por inteiro (e sua força afetiva) para quem nos lê por aí.

      Agora, temos de torcer para aquele menino ter a sorte de conseguir gente para jogar no time dele, como fizemos naquela noite. Afinal, a vida é um jogo e vamos seguir metendo o pé na bola. Ele vai descobrir isso loguinho. Abração.

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  6. Wagner Monteiro02/10/2017, 12:02

    Grande HP,
    Essas padocas também já fizeram parte da minha história. Creio que faz parte de qualquer um que tenha habitado a terra da garoa por algum tempo mesmo que mínimo. Impressionante com o desenrolar do texto como os cheiros e o ambiente voltam a nossa mente como se fosse ontem! Parabéns mais uma vez, meu jovem HP!!

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 18:39

      WM,
      Não tenha dúvida, as padocas paulistanas são um capítulo à parte na cidade, um relicário de sabores e da cultura do lugar.

      As músicas, filmes e escritos têm esse poder soberano de nos transportar para pontos da nossa memória e até para o lugar das cenas. Amém que temos isso! Obrigado, abraço.

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  7. Wilson Baptista Junior02/10/2017, 12:49

    Heraldo, você tem a capacidade de tomar um pequeno acontecimento perdido dentro da cidade e transforma-lo numa beleza de história como esta. É o DNA do verdadeiro cronista, uma espécie que se faz rara hoje. Parabéns.

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 18:53

      Mano,
      Apesar da trajetória que defini para mim, da correria urbana, do mundo que insiste em nos desanimar, eu escolhi me encantar até o fim e não abro mão.

      Já sonhamos muito e agora todos nós sabemos das coisas principais da vida. Nem sempre são boas, mas eu insisto mesmo assim.

      Por algum motivo que não decifro, aprendi a enxergar que as grandes razões da vida estão nessas pequenas coisas, nas cenas comuns, nos gestos quase imperceptíveis, nos movimentos silenciosos. E quando a gente os percebe, vê como são imensos. Se isso são crônicas, apenas tenho a sorte de fazer parte delas. Obrigado.

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  8. Olá Heraldo,
    Cada vez me encanto mais. Com o texto e seus comentários aos comentários.
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 19:45

      Ana,
      Ora, pois. O que dizer? Obrigado. Até mais.

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  9. Amigo Heraldo, lembra do filme Jornada nas Estrelas, em que os tripulantes entram numa espécie de elevador e logo após a porta se fechar e abrir são teletransportados para outro local?
    Pois é, esta é a sensação que tenho ao ler teus textos!!! Sinto-me transportado, agora para a Padoca tão bem descrita ...
    Abraços!!!

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    1. Heraldo Palmeira02/10/2017, 21:30

      Meu caro Emerson,
      Olha que responsabilidade! Agora preciso começar a ter cuidado para onde estou levando as pessoas (rsrs). Obigado pelo comentário generoso e pela leitura sempre honrosa. Abraço.

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