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29/11/2017

O Zero e o Budismo

O número "605" em Khmer antigo, no templo de Sambor - a mais antiga escrita do "zero" como algarismo
(imagem Wikipedia)

Antonio Rocha
Pegue qualquer algarismo, por exemplo, o número 1, a unidade, e acrescente à esquerda um zero, depois dois zeros, três e assim sucessivamente. Chegaremos a quantidades ínfimas, medidas microscópicas, pesos quase inexistentes. Se continuarmos nessa escala, chegaremos quase que ao nada, ao vazio.
Agora, do mesmo modo utilize qualquer outro algarismo, de preferência o número 1 que já vimos. Coloque a sua direita um zero, depois dois, três, quatro cinco zeros etc. Chegaremos então a números astronômicos, infinitos, imensuráveis, impossíveis de serem medidos, pesados, quantificados.
Observe. Tudo por causa de um pequeno e simples símbolo, um círculo que sozinho não representa nada, mas junto com outros significa muito.
Assim somos nós. Sozinhos não somos nada, é em contato com os outros que crescemos. Em certo sentido valemos muito, mas este valor, esta importância não deve desenvolver o nosso ego. O ideal é que cresçamos de forma positiva, o zero à direita; enquanto que o nosso egoísmo, a nossa vaidade, as nossas mazelas, a nossa arrogância devem decrescer como os zeros à esquerda.
As nossas negatividades acabam no vazio. As nossas iluminações crescem, brilham no outro lado até o infinito e pós-infinito. Em um sentido, o vazio é o infinito e vice-versa.
Mas, o que pouca gente sabe é que o zero, a representação desse algarismo como uma “bolinha” vazia, tem sua origem no budismo. Tradicionalmente, aprendemos na escola que os algarismo arábicos são 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 0; o zero também está incluído, só que, a bem da verdade, o fato histórico é o seguinte:
Quando os árabes invadiram a Índia, eles só conheciam os algarismos de 1 a 9. A chegada da cultura árabe ao subcontinente indiano deparou-se com o apogeu da civilização budista, a explosão búdica nas artes, ciências, filosofias, religiões etc... os árabes ao entrarem em contato com esta rica tradição budista encontraram o conceito de vazio bem estabelecido.
“Sunya”, ou seja, um termo da língua sânscrita para caracterizar o vazio, que os budistas conheciam e praticavam desde o século VI antes de Cristo. Os budistas desenhavam uma bolinha vazia para explicar, caracterizar o conceito filosófico de vazio.
Eis aí uma importante contribuição do budismo para a humanidade, e como esta, existem outras colaborações também muito grandes, de que falaremos adiante.
Estas informações colhemos no excelente livro “Budismo, sua essência e desenvolvimento”, de Edward Conze, publicado pela Editora Civilização Brasileira, em 1973.
O autor (1904-1979), dedicou toda a sua vida à difusão do Darma (a Doutrina budista) na Inglaterra, o seu país natal, e por extensão em todo o Ocidente. Escreveu treze livros sobre o assunto, mas este referido é considerado como uma das melhores, senão a melhor exposição sobre o budismo já publicada em qualquer língua, pela sua clareza e objetividade.
Imagine agora, se o mundo de hoje, não conhecesse o zero? Impossível, não é?
Pois bem, à proporção que os séculos avançam, mais e mais pessoas vão se dando conta de que o budismo é, realmente, algo notável.


27/11/2017

Pinceladas de libido

Ana Nunes - Feminino Masculino


Ana Nunes
Tive muitos trabalhos interessantes, às vezes perigosos. Pelos quais me apaixonei e me entreguei de corpo e alma.
Um deles foi numa clínica psiquiátrica como coordenadora das oficinas de arte. Com os médicos fiz cursos, reuniões e conheci diagnósticos.
Com os pacientes fiz minha terapia, a única que conheci. E descobri muitas coisas.
Aprendi a errar e rir dos meus erros e sabê-los como coisa boa.

Descobri a precariedade do nosso equilíbrio, nós, ditos “normais”. Que essa linha que divide nossos mundos é bem tênue. Que a diferença ente nós e eles é questão de pés: nós os temos do lado de cá e eles do lado de lá. Mas basta um susto, um medo, uma dor maior e colocamos um pé do lado de lá. E haja luta e trabalho para tirá-lo de volta e arrumar a “casinha”.

Descobri o tamanho da força do impulso sexual. Como é a base de tudo que fazemos e pensamos. Na clínica ele era exposto. E mostrado. Perguntado e discutido. Uns mais surtados ficavam mais à mercê do que outros. Sem escolha dirigida atacava senhores e senhoras, donas de casa e mães, solteiros e casados e jovens.

Uma senhora, muito séria e calada, chique em suas saias midi e tênis esportivos, tinha “enormes” sonhos eróticos. E padecia deles.
Outra jovem senhora, mãe e profissional, chegava perto de mim e bem baixinho num cochicho ao pé do ouvido perguntava: - depois posso ver sua bundinha? Aí algum sininho tocava no seu íntimo porque ela se afastava sem mais dizer.
Um paciente, senhor também já na curva do caminho, que cantava as balalaikas em russo, apaixonou-se pela senhora professora de música. E com ela sonhava nas noites de internado. E chamava por seu nome.
Outra tinha medo que seu sangue no banho saísse pelo ralo e se misturasse a outras águas, atraindo bichos pré-históricos. Com um barulho maior vindo da construção ao lado, se assustava e acreditava que a cola em seus dedos era a pele que se desfazia.
Uma jovem mulher, em seus delírios, só pintava em vermelho. Flores okeeffenianas e tudo mais. Pintava o papel e um pouco da mesa branca de mármore. Depois o quadro de avisos. Seu desejo era a parede e seu limite, o mundo.
Outra mulher-mãe, grande, pesada, adentrava como um navio singrando águas calmas. Um turbilhão ia dentro de si. Todas as suas pinturas se pareciam consigo.

Um moreno forte de olhos verdes trabalhava de segurança e tocava violão clássico. Delícia ouvi-lo. Quando surtava esmagava lâmpadas com as mãos e punha fogo nos colchões de casa.
Escolheu seu fim trágico. Que pena! Uma vez, colocou-se em conversa a sós comigo, sentados frente à frente, joelho com joelho. E me perguntou, afirmando: Só existe Batman porque tem crime, certo? Então só existe Deus porque tem Diabo?
Senti medo.
A vizinha, casada e mãe, enamorada do vizinho de cima, acreditava que o barulho do banheiro dele era mensagem para ela. E as folhinhas que se soltavam da árvore junto à janela e paravam em sua cama eram recados de amor.
Um adolescente obcecado queria ver os pés das moças e pedia se podia tocá-los. Não sei se alguém deixou.

Havia pacientes-dia. Iam só para as oficinas e a terapia de grupo.
Um desses, grande, bonitão, articulado, falante, que chamava sua mãe de “aquela senhora” e tinha delírios de perseguição, um dia na oficina de arte deu de conversar política com a oficineira, que tinha uma pontinha de pé, uns dedinhos do outro lado da linha. E eu da outra sala ouvindo aquilo tomar corpo e calor, esperando a hora de intervir. E eis que chega o paciente e me pergunta: - Ana, quem é o paciente aqui, eu ou ela?
Rio até hoje.

Essa mesma oficineira, senhora de seus sessenta e muitos, artista plástica, fez numa sexta-feira, com os pacientes, uma teia de Ariadne. Em tiras de retalhos de pano amarrados em nós a teia ia, presa nas pilastras, a meia altura, da mesa de trabalho até perto da piscina, estreitando a passagem. Assim ficou todo o fim de semana. Na segunda, desfiz com os pacientes nó por nó. Foi tão terapêutico quanto faze-los. No outro dia chegou a oficineira. E ao ver sua teia desfeita virou bicho. Espumava pela boca, riscos vermelhos enfeitavam seu pescoço, me chamou de nazista e mais. Um paciente foi me consolar se desculpando por ela, outro subiu para a enfermaria e outros quiseram ir para casa.
Foi punk!

Um engenheiro obsessivo, por isso alcoólatra, mediu a piscina oval com uma régua de trinta centímetros para controlar sua natação. E nadava em curva, ao redor da borda, lógico.

Outras pacientes vieram de amor abandono. Ninhos vazios, marido fugido, solidão, desesperança. E escolheram seus finais tristes. Nessas ocasiões o silêncio entre os pacientes era enorme e a tristeza e o sofrimento assombravam seus olhos.
Talvez a ideia desse final já tivesse perambulado por seus pensamentos. E trazia medo. E os mais inteiros cuidavam dos mais mutilados.

Todos esses casos enchiam minha alma de carinho e compaixão. E, às vezes, tão perturbada, voltando a pé para casa, atravessava as avenidas com cuidado mas sem me aperceber do que fazia. E depois em casa, envolta em pensamentos, me perdia na leitura ou no filme como uma sonâmbula.

Esteve por lá um jovem paciente de nome Messias que precisava de aula particular. Meu filho, de nome português, linhagem direta do meu Vô Américo vindo d'Além Mar, se ofereceu. Em lá chegando, na secretaria, disse que estava “procurando o Messias”. Quase ficaram com ele... e pulsa veia lusitana!

E quando fomos mudar de endereço as paredes e pilastras do nosso espaço foram liberadas. Desenho! Pintura! Pacientes, oficineiros e enfermeiros lado a lado numa farra democrática.


Freud explica. Explica?

25/11/2017

As meninas francesas

August Macke - Quatro meninas (1912)

Heraldo Palmeira
As meninas francesas deviam ter entre treze e quinze anos. Aguardavam o embarque. Eram quatro. Eram quatro livros. Abertos, sendo devorados.
Os smartphones e outros cacarecos digitais estavam lá, displicentes, espalhados sobre a mesa da lanchonete. Milagrosamente esquecidos, até pouco vigiados.
As meninas francesas destoavam de tudo e todos ao redor, pois não eram ilhas teclando seus individualismos, como ficou comum de se ver. Apenas liam. E, fosse pouco, também conversavam como nos velhos tempos. Ainda por cima, naquele idioma lindo! Comentavam entre elas alguns pontos das próprias leituras, rabiscando as páginas com anotações. Como nos velhos tempos. Eram lindas as meninas daquele jeito!
Sim, elas conversavam animadamente e isso parecia algo estranhíssimo. Senti um sopro suave no coração. As letras pareciam flutuar formando palavras, como um éter que a gente quase consegue ver antes de evaporar.
Aquelas francesinhas não eram ninfetas, não eram lolitas, não pareciam parte desse jogo de sedução. Não tinham sabor de frutas forçadas a amadurecer antes da hora. Não pareciam vítimas da vida cheia de modismos e imposições. Eram apenas meninas embaladas em jeans, camisetas e tênis. Sem batom, sem glamour. Duas delas usando óculos de grau sem qualquer complexo. Sem antecipar o tempo de suas vidas. Apenas liam e conversavam, como sabíamos fazer antes de fingir ter esquecido. Eram lindas! Talvez por isso.
Ao anúncio de voo iminente, juntaram tudo em suas mochilas, mas permaneceram sentadas, entregues aos seus livros. Deixaram para seguir no fim, quando praticamente todos já haviam atravessado o portão rumo à pista. Foram as últimas a entrar no avião, logo depois dos seus adultos de estimação. Lendo, lendo, lendo, lendo. Caminharam pelo corredor até seus assentos e seguiram lendo a viagem inteira.
Na revista de bordo, li a respeito de uma espécie de clube do livro por assinatura. Pensei nas meninas francesas e seus livros, e na leitura como tábua de salvação para a ignorância generalizada que nos mostra seus dentes afiados o tempo inteiro. E que, muito mais do que amedrontar, entristece.
Lembrei do menino no jantar da noite anterior, no restaurante do hotel. Manteve-se cabisbaixo, vidrado no smartphone, enquanto todos os presentes aderiram ao Parabéns pra você a partir da chegada do bolo de aniversário que seus (envergonhados) pais e avós caprichosamente encomendaram.
Para quebrar o constrangimento, fiz um gracejo e convoquei o rapazinho a apagar a velinha. Usei o velho truque de dizer que, se vacilasse, eu mesmo apagaria. O desprezo no olhar que mereci foi tamanho que pensei em soprar e sair à francesa. Imagino que tradução ele encontrou para mim.
O sopro tíbio não teve força para trazer junto o sorriso cobrado pelos parentes para as fotos. Ele apenas apagou, como se apagasse todos os chatos que lhe cercavam fora do seu mundo virtual. Como quem cumpre um compromisso indesejado, sopra um incômodo para longe. Lacônico, distante, quase imantado por aquela telinha maldita.
Pena que eu não tivesse bola de cristal para antecipar o dia seguinte e me sentir salvo pelas meninas francesas e seus livros abertos, sendo devorados. Voltei à realidade com o anúncio do pouso. Saí apressado, mas deu tempo vê-las indo no rumo do embarque internacional.
Imagino que as meninas francesas vararam a noite voando a caminho de casa, lendo, sendo felizes, descobrindo o mundo escondido nas letras que quase flutuavam como um éter que a gente quase vê, antes de virarem palavras para contar histórias. Senti um sopro suave apagando aquela velinha que por pouco não queimou meu coração.
Ainda estou me perguntando se aquilo tudo foi mesmo real, ou se terei sido enganado por alguma holografia no meio da mesmice que nos encerra neste berço esplêndido de coisa nenhuma.
Refiz minhas caminhadas pelas margens do Sena manuseando livros naquelas famosas caixas verdes, sebos quase camelôs onde os buquinistas, especializadíssimos, comercializam raridades impressas, livros, gravuras e cartazes de uma Paris que já não existe, mas parece viva.
Esses comerciantes – simpáticos ou antipáticos como só os parisienses antipáticos conseguem ser – estão lá compondo um dos circuitos mais importantes da cidade. Na margem esquerda, entre Ilha de Saint Louis e Ponte do Carrossel. Na margem direita, entre Hôtel de Ville e Louvre.
Eles que são história em tempo real. Que fazem circular a palavra escrita surrada, já lida, que maravilhou, que foi tocada por tantos. Páginas marcadas a lápis e borracha, rabiscadas, copiadas, roubadas, vivas.
Páginas que passarão pela vida das quatro meninas francesas que passaram como poesia, me dando alento, me olhando por dentro, velando por mim. Sem pressa, como devem ser as verdadeiras meninas. Lindas como o som de um acordeão francês. Lidas como as palavras espalhadas pelas margens do Sena. Vividas no tempo certo, como um sonho bom.


23/11/2017

Os personagens de Philomena

imagem do filme

 Moacir Pimentel
Alguns dias depois de Philomena ter aberto o coração e revelado o seu segredo à família, rolou um encontro casual, em uma festa de Réveillon, entre Jane, a filha e confidente da velha senhora, com o jornalista Martin Sixsmith a quem ela contou a história da mãe e perguntou se estaria interessado em ajudá-las a descobrir o que acontecera com Anthony, o seu irmão desaparecido. E então começa a ação.
Sim, porque é a parceria entre esses dois seres humanos tão diferentes, Philomena e Martin, aquilo que o filme nos oferece de melhor. Aliás a história nos é narrada exatamente através das diferenças do estranho casal enquanto viajam juntos pelo interior da Irlanda e através dos Estados Unidos rastreando o filho dela, sempre se desconcertando e se surpreendendo, mas construindo um improvável laço de amizade ao perseguir implacavelmente a verdade.
Pensando bem, essa amizade entre dois contrários não é um jeito novo de se contar uma boa história, tanto que Dom Quixote e Sancho Pança não me deixam mentir. Não tem como não rir alto das bem-vindas arestas e arengas dos personagens de Cervantes nem das do casal nesse filme. Elas se transformam em nosso GPS pela estrada afora e deixam a foto da jornada imprevisível. O fato é que, não fora o mal humorado Martin - com quem, diga-se de passagem, a gente se identifica de cara - não enxergaríamos Philomena nas suas paradoxais simplicidade e grandeza.
A convivência atribulada de Philomena e Martin - e a química entre os dois! - é um golpe de gênio, pois o estranho par fornece não só a faísca cômica necessária, mas cria a atmosfera e as bases para as explorações religiosas, filosóficas e morais da história.
Em primeiro lugar, Martin e Philomena estão presos em estações diversas do tempo. Ele se preocupa com seu futuro depois de perder o emprego enquanto ela, já aposentada, se senta na igrejinha mais próxima, reza à luz de velas e pensa no passado.
No entanto, “Philomena” é um filme tão lindamente executado que vai muito além dos estereótipos e, como Martin descobre rapidamente - e o prezado público idem! - no caso da criança desaparecida há tanta conspiração, drama e complexidade como em qualquer uma das “grandes” histórias políticas que o jornalista costumava escrever.
Esse filme, que a verdadeira Philomena assistiu ao lado do Papa Francisco no Vaticano e que pode assistir sem constrangimentos com os paroquianos seus companheiros de fé, é sim sobre como a Igreja comercializava vidas humanas mas também é sobre muitos outros temas, inclusive uma espécie de redenção pessoal de Martin Sixsmith, um ex-católico e ex-correspondente da BBC que dera uma guinada na bem sucedida carreira jornalística ao abandonar o território da mídia para ocupar uma elevada posição no Partido e no governo Trabalhista e tornar-se assessor político de Tony Blair. Para em seguida, do mundo sujo e amoral da política, sair chutado e chamuscado ao ser demitido injustamente sob vagas alegações de “vazamento de informações” devido a uma indiscrição verbal politicamente incorreta.
Mesmo desempregado e deprimido e realmente em busca de algo para preencher seus dias, no começo da trama é evidente que Martin se acredita muito acima da pequena história humana de Philomena, uma mulher simplória e sem muito senso de humor que não ri, por exemplo, das piadas eruditas do “sabichão”. Já na primeira troca de amenidades entre os dois fica evidente o abismo social que os separa.
Quando ela fala entusiamada do seu novo quadril de titânio que “não enferruja” Martin faz um chiste felicitando-a por não precisar passar óleo como o “Homem de Lata”. E ela simplesmente nada sabe sobre Os Livros de Oz, jamais assistira o filme do Mágico de Oz e, portanto desconhecia o citado personagem, aquele que queria porque queria ter um coração de verdade para chamar de seu, sem saber “o quão sortudo era por não ter um”. Sim, Philomena não entendeu a piada mas nós captamos a mensagem: a Martin faltava coração e a ela faltou coragem.
Philomena e Martin são opostos em praticamente todos os sentidos. Pessoalmente ela é gentil e compreensiva enquanto ele é lúcido e duro. Socialmente ela é filha legítima de uma classe média baixa trabalhadora enquanto ele pertence à mais alta, àquela dos carros de luxo, educação e acomodações de primeira classe.
A Martin desagrada a idéia de empregar suas sofisticadas habilidades jornalísticas para narrar algo tão humilde quanto a vidinha suburbana de Philomena e só aceita a missão e sobe a bordo primeiro porque não é idiota e percebe que a história promete, segundo porque um grande veículo se interessara pela matéria, oferecendo-lhe, além de uma boa grana, uma chance de redenção profissional.
Uma das primeiras falas de Martin no filme, quando Jane lhe pede ajuda, é curta e grossa:
“Eu não escrevo histórias de interesse humano”
Mas é claro que não. Ele torce o nariz aristocrata para tais histórias, que pertencem aos chorosos semanários femininos. A história de dor, perda e saudade de Philomena nada tinha a ver com a abordagem objetiva e factual que, segundo Martin, o jornalismo deveria fazer.
O cínico jornalista ao dizer rudemente à moça que “as histórias de interesse humano são sobre pessoas vulneráveis, de mente fraca e ignorantes e escritas para pessoas fracas, vulneráveis e ignorantes”, deixa claro que estava acima do comum dos mortais, era um especialista em pesos pesados, tinha sido o cara da BBC e não teria se rebaixado a uma tarefa tão medíocre e trivial, apesar do seu potencial, se não estivesse desempregado e, o que é pior, vendo a própria carreira descendo ladeira abaixo.
E a gente agradece pelas dificuldades financeiras que o fizeram assinar o tal contrato para escrever a triste história de Philomena que resultou no filme em pauta, que nada tem de hollywoodiano apesar das suas ondas em um tsunami de emoções intencionalmente planejadas.
Nele o ator dá show de bola representando o suprassumo do jornalista investigativo britânico esnobe e ateísta, oxfordiano e polêmico, desagradável e entediado, cansado do mundo cruel e da imbecilidade humana e forçado pela vida a rascunhar bobagens menores em vez de escrever um belo livro sobre “a história russa” pelo qual ninguém se interessava.
O jornalista não consegue esconder uma pontinha do desprezo dos metidos a besta pelas maneiras pouco sofisticadas da senhora que, por exemplo, em vez de colocar alguns croutons na sua salada, come seus croutons com salada. (rsrs) Ele não perde a chance de alfinetá-la sem que ela perceba, zombando principalmente da profunda fé que Philomena manteve intocada, apesar de sua terrível provação.
Pudera!
Martin é um agnóstico de carteirinha que considera a religião o “ópio de povo”, uma grandessíssima farsa, especialmente aquela da pérfida Igreja Católica que explorava adolescentes e roubava seus bebês. Mas, apesar do que a Igreja fizera com ela, Philomena continua a ser uma católica devotada e até se permite pendurar uma medalhinha cafona de São Cristóvão no espelho retrovisor do BMW de Martin para “protegê-lo” (rsrs)
Entretanto apesar dos dois personagens baterem algumas vezes de frente - ela tão literal, calorosa e aberta, ele tão presunçoso, sarcástico e condescendente - a relação entre Martin e Philomena permanece estável e segura do começo ao fim desse filme que é um pouco engraçado e um pouco triste porque não depende de nenhum efeito especial mas simplesmente se concentra com carinho em seus personagens e nas suas emoções.
Embora o jornalista seja, muitas vezes, cortante quando se trata de suportar as crenças e superstições populares de Philomena, as suas homílias intermináveis, as cansativas sinopses que faz de romances bobóides recheados de finais felizes, ele usa apenas expressões faciais para registrar seu aborrecimento nesse memorável jogo de opostos psicológicos e, na verdade, é discretamente sarcástico e bem educado demais para revirar os olhos (rsrs)
Martin é o que é: arrogante, abrupto e frio, um homem habituado a esconder suas emoções por trás de um véu de ironia e de piadas inteligentes as quais, em se tratando de Philomena, são completamente inúteis, porque ela não tem a menor noção do que ele está falando e ele é, invariavelmente, o único que fica com cara de tolo.
Mas nada é capaz de suavizar as palavras ferinas de Martin nem as bordas ácidas da sua sagacidade cínica que Philomena ignora alegremente. Há tensão, frustração e lacunas geracionais nos seus pensamentos conflitantes sobre o mundo, mas também há diversão e momentos de conexão real.
Tudo isso apenas faz a gradual transformação de Martin em bravo cavaleiro e escudeiro da velha senhora mais credível. Pois é ele, e só ele que, por outro lado, consegue expressar as frustração e indignação e impotência que sentimos em face da história dolorosa dela.
“Philomena” simplesmente não seria a história que é sem os fortes sentimentos de raiva e revolta que Martin sente por três instituições que considera malignas: a Igreja, a Imprensa e o Governo (rsrs) E sobra para a doce Philomena que ele descreve para a esposa como:
“O resultado das leituras diárias do Daily Mail, da Seleções e de romances açucarados”.
Mas não se deixe enganar. Philomena é bem mais do que uma enfermeira aposentada e ingênua. Para ela a moral da sua história é clara: o que a Igreja fez com ela fora errado, mas ela não quer vingança, apenas a verdade. É uma mulher de fibra incomum, mesmo sendo a mais mediana e comum das irlandesas, do penteado matronal à ponta dos sapatos muito rodados, dos gostos modestos ao guarda-roupa utilitário, do alegre apetite para aqueles chocolates de brinde deixados nos travesseiros de hotel às suas inesgotáveis reservas de força e caráter.
Mas ao dar igual peso ao ceticismo de Martin e à fé de Philomena o filme acerta em cheio, mesmo quando, ocasionalmente, os sentimentos de Martin esquentam e fervem. Seu pessimismo e raiva - mais do que justificáveis! - são coisas com as quais sabemos nos relacionar, embora aprendamos, assim como ele, que essa atitude tem seu preço.
Tudo bem que os bate bocas do casal nos quais cada observação crítica é compensada com outra empática suavizam o impacto da crueldade filmada. Martin e Philomena articulam este equilíbrio literalmente: ele questiona a religião, ela a defende. Ele exige indignação, ela expressa perdão. E só essa maneira como as duas forças da natureza se conectam seria suficiente para amolecer o coração mais cínico e fazer valer a pena assistir o filme.
Mas, verdade seja dita, quem não se espanta com a passividade da boa senhorinha se agarrando desesperadamente a sua fé cega, apesar de todas as canalhices e sujeiras que as Irmãs sem caridade lhe aprontam? Será que ela não percebe que nada fez para merecer o inferno na terra?
Não é só Martin que se ressente dessa fé tão profundamente enraizada que se torna anestesiante e paralisante. Na verdade, a situação perversa na qual vimos a adolescente Philomena é quase tão extenuante quanto as daquelas personagens trágicas de Dickens e há aqui a mesma agonia, um aperto na garganta ao ver as pobrezinhas das mães adolescentes perderem seus filhos em nome de Maria Madalena, quem, no entanto, recebeu do Cristo uma compaixão e um respeito inexistentes no século XX.
Decerto que a história muitas vezes ameaça se render ao melodrama mas a direção do filme se recusa morder a isca, desafiando os clichês e ganhando honestamente cada risada e cada lágrima que provoca. Nós compartilhamos o carinho crescente e evidente de Martin por Philomena e, como ele, queremos tirá-la desse enredo cruel e levá-la para casa e oferecer-lhe uma xícara de chá, e, por um tempo, isso é mais do suficiente para segurar o filme.
Mas à medida que a história avança e compreendemos a extensão das injustiças cometidas contra todas as “meninas das Madalenas”, a raiva de Martin torna-se contagiosa e compartilhamos a santa ira do repórter que lentamente percebe que ainda não vira tudo depois de tudo.
Como o jornalista a gente não entende qual é a de Philomena, que até nos parece ter uma capacidade de perdão semelhante à do Cristo, e então seguimos o furioso Martin pelo filme afora permitindo que ele atue como uma vávula de escape, como uma porta de saída para a justa indignação que nos toma de assalto frente a tantos inequívocos e inflexíveis abusos cometidos em série e em nome de Deus.
Não é necessário se ter o cinismo e a desconfiança que Martin tem da Igreja - e que ele dispara à queima roupa - para sacar que as freiras estão escondendo segredos cabeludos relacionados ao filho da tolinha da Philomena que – pasme! - apesar de toda a sua “simplicidade” e de se vestir como a nossa vovó favorita, acaba por ser o personagem mais intrigante e complicado do filme, uma mulher de pouca educação e mundanismo que, no entanto, tem brilho e força e resiliência e é capaz de façanhas emocionais e espirituais que deixam Martin, com sua visão secular do mundo e sua insistente sede de justiça, confundido.
É quase como se eles formassem aquela clássica e manjada fórmula dos dois investigadores policiais, um mauzinho e o outro bonzinho, para descobrir os fatos que cercam o misterioso paradeiro do pequeno Anthony. Primeiro eles visitam a Abadia no interior irlandês, onde lhes é dito que todas as informações sobre a adoção do garoto tinham sido perdidas em um “incêndio” - que depois Martin descobre ter sido uma fogueira providenciada pelas boas irmãs no quintal.
Na Abadia Philomena quase fraqueja. Fora ali que os seus a abandonaram, que dera à luz o filho vendido pelas freiras por mil libras, que lavara roupas como escrava por vários anos infelizes convivendo com seu bebê em horas roubadas. Nós a seguimos através dos sombrios corredores da sua antiga prisão e podemos ver em seu rosto todas as memórias dolorosas que o lugar lhe traz. Por isso é tão difícil de engolir o cinismo da representante de Deus de plantão, que completamente indiferente ao desespero daquela mãe, tem o topete de segurar-lhe as mãos e declarar:
“Não podemos acabar com a sua dor, Philomena, mas podemos acompanhá-la através dela...”
Fala sério! Em seguida, claramente incomodada pelas perguntas pertinentes do jornalista prestes a descobrir toda a sujeira que as velhas freiras haviam varrido para debaixo do tapete, a nova mentirosa pede a Martin que se retire pois prefere conversar com Philomena “em particular”. Na ausência do repórter a irmã entrega a Philomena uma cópia do documento que ela fora forçada a assinar quando garota renunciando a todos os seus direitos sobre o filho.
Após a visita ela não se permite acreditar na má fé das freiras e Martin perde a paciência com tamanha e santa ingenuidade e, veementemente, argumenta o quanto fora conveniente para a galera santíssima a preservação no incêndio daquele único documento. Indignado o jornalista a questiona por quais cargas d’água todos os documentos que poderiam auxiliá-la em sua busca haviam virado cinzas enquanto que o único papel que poderia impedi-la de continuar fora miraculosamente salvo pela providência divina?
É muito bom apreciar como a protagonista sai inteiraça dessas batalhas nas quais esgrime como armas os saberes celtas, a empatia e a intuição. É divertido ver como, apesar de tudo, ela consegue derrubar as defesas e se conectar com o “cara de Oxbridge” – como Philomena zombeteiramente o chama misturando as universidades inglesas de Oxford e de Cambridge.
Por que esse filme funciona tão bem? Talvez pelas felicidade e facilidade com as quais Martin ocupa o banco do passageiro e se deixa guiar pelo carisma da atriz principal que nos faz rir e nos deixa de olhos mareados em um piscar de olhos. É simplesmente uma maravilha ver Philomena, essa mulher gentil de fé profunda que sofreu silenciosamente pelos pecados dos outros, aniquilando Martin verbalmente a cada dez segundos. (rsrs)
Philomena é a dona do filme. Ponto! E nele, Dona Direção não nos permite esquecer disso com inúmeras e longas tomadas de seu rosto, cada linha e ruga sublinhando sua beleza eterna e a capacidade ilimitada de nos emocionar profundamente, mesmo sem botox (rsrs) Enquanto isso Martin é sempre o cara contrariado, frustrado e prejudicado traduzindo para Philomena o mundo cruel que lhe escapa enquanto ela, distraída, declama feliz da vida os seus clichês universais.
A piada maior, é claro, e de muito mau gosto é que, nesse filme, é Philomena a pecadora, a acusada de “incontinência carnal”, a perdida a quem a Madre Superiora que recusara a dar qualquer alívio médico para a dor excruciante do parto...
“A dor é a sua penitência”
Por incrível que nos possa parecer e após cinquenta anos é Philomena quem ainda almeja perdão por sua vergonha enquanto Martin grita exasperado:
“É a Igreja que precisa se confessar, não você”
O que complica mais ainda o enredo é descobrir que a postura de Philomena em relação ao sexo é surpreendentemente relaxada. Ela se recorda, por exemplo, do encontro sexual do qual saiu grávida como uma experiência totalmente prazerosa (rsrs) É uma delícia ouvir na conversa de Philomena e Martin na cena aí abaixo - nesse belo descampado, manchado de sol, que dá o ar da graça dele na telona, sem nenhuma razão discernível além da beleza pictórica que oferece - a vovozinha contando ao jornalista o seu único encontro sexual fortuito com o pai do seu filho quando não possuía – digamos! – a menor compreensão da biologia de tais brincadeirinhas.
imagem do filme

Ela explica detalhadamente ao repórter que a coisa pecaminosa começara na feira do condado, mais precisamente no Salão dos Espelhos, passara por uma maçã caramelada e um primeiro e doce beijo e terminara atrás das barraquinhas, ao lado de um bucólico jumento comendo feno. E confessa que se sentira “flutuando no ar” nos braços do rapazola para concluir que estavam cobertas de razão as Irmãs, pois uma coisa tão gostosa daquelas só podia mesmo ser muito errada. (rsrs)
Martin ao saber que nem a família nem as freiras que a educaram jamais se deram ao trabalho de explicar à moça de onde vinham os bebês, fica indignado, amaldiçoa todos os católicos sexualmente mal resolvidos e pergunta à senhorinha por quais cargas d’água Deus teria dotado os humanos com o instinto e o prazer sexual se não quisesse que fossem gozados? Seria Ele sádico? Mas é inútil pois, como nós do sofá, Philomena não consegue esquecer o humilhante interrogatório ao qual fora submetida pelas curiosas irmãs de tão pouca caridade:
“Você abaixou a calcinha? Responda!”
Ela se sente culpada. E não tem como a gente deixar de pensar no Millôr Fernandes, que tinha toda a razão ao afirmar que:
“De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência”.
Talvez a essa altura do filme o jornalista que tanto menospreza as contradições e hipocrisias da religião já esteja desconfiado de que a capacidade de perdão de Philomena não é fé cega, mas um pragmatismo de olhos azuis muitos claros. E essa é a confusão que torna o filme tão atraente e imprevisível, brilhante e limpo na ética da narrativa, um daqueles filmes incomuns que não prega nem patrulha.
O diretor Stephen Frears equilibra bem a parte contemporânea da jornada de Philomena e Martin interrompendo-a pelos flashes pretéritos dos crimes cometidos contra ela e só depois de estabelecer as circunstâncias em torno do nascimento de Anthony é que o filme passa a resolver seus enigmas de sabor britânico quando o casal viaja para a América, onde a história cuidadosamente tece uma solução para o mistério de Anthony: outra retumbante tragédia pois qualquer outra coisa, digamos, mais intermediária, não seria suficiente.
Mas isso será outra conversa...


21/11/2017

Encontros com Vênus

Vênus sobre o Pacífico (imagem wiki/planets)

Domingos Ferreira
O planeta VÊNUS é o terceiro corpo celeste mais brilhante na abóboda celeste, após o Sol e a Lua. Além disso, ele é o segundo mais próximo do Sol, depois de Mercúrio e antes da Terra. Tal posicionamento faz com que ele, caprichosa e femininamente, apareça para nós, mortais terrestres, ora logo após o pôr do Sol, ora pouco antes do seu nascer.
Isso faz os homens que olham muito para o céu, como os marinheiros, terem grande familiaridade com o planeta, tratando-o, inclusive, no feminino, isto é a Vênus matutina, ao nascer do Sol, e a Vênus vespertina, após ele se pôr.
O Almirante Felipe, durante sua longa carreira, teve inúmeros encontros com Vênus, em diferentes mares e oceanos pelos quais navegou. Ao início, ainda jovem Guarda-Marinha, eles foram apresentados, um ao outro, durante as aulas de navegação astronômica para sua turma, em alto mar. Então, inexistiam computador, internet, GPS, satélites, etc...
Naquelas ocasiões, eram grupos de dezenas de alunos, no largo convés do Navio-Escola, vasculhando os céus ao mesmo tempo, em busca de estrelas fixas, cujas posições no firmamento, verificadas com uso de sextantes, possibilitavam calcular e registrar onde estava o navio na carta (mapa) de navegação. Nessa confusão, a observação de Vênus, em toda sua beleza, era puramente secundária, por curiosidade.
Alguns anos depois, o tenente Felipe era “ajudante de navegação” em um “NTrT-Navio Transporte de Tropa”, cruzando o Atlântico, com seiscentos soldados do “Batalhão Suez”, do Exército Brasileiro, com destino a Port Said, na entrada do Canal de Suez, no Egito. Essa tropa, em rodízio anual, era a colaboração brasileira para os esforços da ONU na manutenção da paz naquela região, onde ocorriam os primeiros embates mais sérios da Guerra Fria.
Esses fatos tinham origem na recente independência do Egito - até então colônia da Inglaterra - proclamada pelo notável coronel Gamal Abdel Nasser. Daí, surgira a nacionalização do Canal de Suez pelos egípcios, fato inaceitável para os ingleses e franceses e o recém-criado Estado de Israel. Este era, também, inaceitável para os palestinos expulsos de suas terras pelos judeus.
Além da tropa do Exército, o NTrT transportava mais quatrocentos homens que eram parte da tripulação do Navio Aeródromo “Minas Gerais”, adquirido da Marinha Inglesa pela Marinha do Brasil e passando por uma grande revisão em Rotterdam, Holanda. Isso fazia com que o NTrT estivesse com mais de mil homens embarcados, além de sua própria tripulação.
O tenente Felipe “dava serviço” no passadiço nos “quartos” de 16:00 às 20:00 e de 04:00 às 08:00. Sua tarefa principal era fazer as observações, com o sextante, de estrelas pré-selecionadas, cujos ângulos em relação ao horizonte se transformavam nos elementos dos cálculos que chegavam à posição geográfica do navio em alto-mar. Essa posição seria lançada na carta de navegação e mostrada ao Encarregado de Navegação, (um oficial superior) que conferia sua veracidade e a mostrava ao Comandante do navio, quando ele vinha ao “passadiço”(ponte de comando), após o café da manhã, ou antes de descer para o jantar.
Essa coreografia toda, aparentando complicada, era rotineira, naquela época, em qualquer navio navegando afastado da costa. Felipe, com muita prática, levava uma meia-hora para fazer os cálculos, com notável precisão. Isso agradava bastante seus superiores.
Contudo, sua concentração nas estrelas desagradava muito a ciumenta Vênus, que fazia de tudo para chamar sua atenção, mostrando-se exuberante desde o momento em que o jovem e belo oficial pegava no sextante e o apontava para o céu.
Até que, em uma linda madrugada, sem Lua, só com o timoneiro no passadiço vazio, quando Felipe ia conteirar seu instrumento para a primeira estrela, ele ouviu uma voz feminina, doce e firme, lhe dizendo:
“Felipe, Felipe!... olhe para mim, olhe para mim!”... “estou logo à direita desta estrela”... “e vou piscar três vezes para você”...
Dito e feito, Felipe, meio assustado, apontou o sextante naquela direção e viu a brilhante Vênus, enamorada, piscando para ele.
Aí, ela disse: “não precisa falar nada”... “basta você pensar em mim, olhando para cá, que eu entendo o que quiser dizer”... “e você entenderá o que eu lhe disser”... “sem problemas, desde que um aviste o outro”...
Funcionou!...entro de poucos minutos, eles estavam se entendendo, com Vênus dando o tom da conversa, feminina como era...
E Felipe, distraído, quase perdeu a oportunidade de observar as outras estrelas e marcar o ponto na carta, pois o céu clareara rapidamente, apagando-as sem dó...! A partir daquele dia, nas madrugadas, não tinha gente para atrapalhar... e eles conversavam como amigos, quase enamorados.
Isso valeu até entrarem no Mediterrâneo, pelo estreito de Gibraltar, e chegarem ao primeiro porto - no caso, Barcelona - onde o navio passou dois dias. Ali, Felipe reencontrou Mireja, uma catalã de longos cabelos negros e imensos olhos verdes, com a qual dançou um tórrido “pasodoble”, semelhante ao que tinham praticado alguns anos antes, quando ele ali passara em outro navio. Olé!...
Seguiu-se, uma curta travessia até Nápoles, com mais dois dias atracado. Mesmo assim, houve oportunidade de Felipe rever Annunziatta, uma italiana digna dos afrescos de Pompéia. Ela morava na ilha de Capri, ali perto, e ofereceu, ao nosso herói, uma autêntica pizza napolitana, no capricho, com vinho tinto, música de fundo, e todas as consequências.
Depois, o navio contornou a bota italiana e rumou direto para Port Said, no Egito, navegando com o uso de radar, sem necessidade de apoio das estrelas. Seriam oito dias no porto, para a troca dos Batalhões sediados na Faixa de Gaza. Felipe e mais dois colegas tiveram licença de quatro dias e alugaram um carro, com um motorista falante chamado Jamal (belo, bonito...) , para irem até o Cairo, visitar as pirâmides.
 
O NTrT Custódio de Melo (imagem Marinha do Brasil)

A distância entre as duas cidades é cerca de duzentos quilômetros e a estrada estreita corre ao longo do canal até cidade de Ismailia, onde toma direção para Oeste e penetra fundo no deserto. Eles saíram do navio à tarde, com a intenção de chegar ao Cairo no final do dia. O trecho, em pleno deserto, era uma sucessão de subidas e descidas em grandes dunas, aparentando navegar em mar grosso, onde a estrada se resumia a um traço escuro de uma caligrafia monótona. Até que enxergaram palmeiras ao longe.
Era um oásis, com casario baixo, pequeno lago, posto de gasolina e um arremedo de restaurante com placa dizendo “Hotel”. Ali, pararam para reabastecer, esticar as pernas e beber alguma coisa.
Os três amigos caminhavam distraídos pela pequena área do oásis, sob o olhar desconfiado dos poucos moradores, até que foram procurados pelo motorista Jamal, alarmado, com a má notícia de que o carro não estava “pegando”e a bateria ia arriar. Foi um desacerto. Os três colegas, ajudados por alguns moradores, empurraram o carro até cansar, e nada. Pararam um pouco, para respirar, e Felipe se afastou, instintivamente, do grupo, caminhando pela beira do pequeno lago.
De repente, ele percebeu que o Sol estava se pondo e Vênus brilhava na sua frente. Logo, ela puxou conversa e, ciumenta, deu-lhe a maior bronca com os encontros amorosos dele, falando sem parar. Chegou até a dizer que Mireja tinha celulite e que a pizza da Annunziatta estava mofada... Felipe, amuado, não sabia o que dizer.
Vendo seu embaraço, Vênus teve pena dele. Matreira, tentou consolá-lo dizendo que iria ajudá-lo com o carro. E, se escondendo atrás de uma nuvem, completou que ele poderia voltar para lá, pois o carro iria pegar. O que, de fato, aconteceu quando Felipe acionou a chave de partida, para grande surpresa de todos.
Alguns dias depois, tendo acomodado o Batalhão retirante, o navio desatracou de Port Said e aproou para o estreito de Gibraltar, cruzando-o em direção a Plymouth, no Sul da Inglaterra, onde atracou nove dias depois. Ali ficou quatro dias, recebendo material e equipamentos para o NAe“Minas Gerais”, em Rotterdam.
Nessa parada em Plymouth, foi possível assistir aos frenéticos preparativos da Marinha Inglesa visando à retomada do Canal de Suez, planejada para ocorrer junto com forças navais francesas, no menor tempo possível. Contudo, nada aconteceu devido à interferência da Rússia, enviando uma força naval para Alexandria, em apoio aos egípcios. E o célebre e caro Canal de Suez está em mãos dos descendentes dos faraós até hoje.
O tenente Felipe tinha, também, uma jovem inglesinha, chamada Wendy, esperando por ele em Plymouth. Ela fora avisada de sua chegada por uma carta gentil e perfumada, que ele, muito organizado, lhe enviara de Nápoles. O encontro foi em um belo jardim, ao longo do canal de acesso ao porto, chamado de “The Sailor’s Land”, com muitos esconderijos bem vigiados pela polícia, para que os amantes não fossem perturbados nos seus doces afãs. Para tanto, Wendy, uma lourinha “mignon” e afogueada, providenciou um kit completo de piquenique, incluindo uma pequena barraca de lona, sob a qual o casal matou todas as saudades.
O navio deixou o porto dois dias depois e, ao sair pelo canal, Felipe e alguns colegas e praças foram surpreendidos por Wendy e outras namoradas, tocando tambor e corneta na margem e acenando em despedida da “ Terra Dos Marinheiros”.
A permanência em Rotterdam foi a suficiente e necessária para desembarcar os tripulantes e descarregar o material e equipamentos do NAe“Minas Gerais”. De lá, o NTrT, sem mais escalas, cruzou o Atlântico em direção a Recife, onde chegou doze dias depois.
Nessa “pernada”, eles enfrentaram alguns dias de mau tempo, sem avistar estrelas. Mesmo assim, nas poucas madrugadas com céu limpo, Felipe e Vênus tiveram bastante tempo para conversar, com crescente intimidade e alegria. Ela, como sempre, reclamou da namorada da vez, dizendo ser uma “tampinha”, que “não tomava banho” como é “hábito das inglesas” e “comprovado pela inexistência de banheiro na barraca!?”.
A próxima parada do navio foi no Rio de Janeiro, por poucos dias. De lá, ele se movimentou para Porto Alegre, com o objetivo de desembarcar a tropa do Exército, pois aquele “Batalhão Suez” era todo integrado por “gaúchos”, fora de casa havia mais de um ano.
A recepção a seus “heróis” foi uma apoteose indescritível. O Governo do Estado e a Prefeitura de Porto Alegre decretaram feriado. Era uma bela manhã de outono. Ao se aproximar do porto, navegando na Lagoa dos Patos, o navio foi cercado por dezenas de lanchas, rebocadores, catamarãs, veleiros, jet-skis, barcos de pesca, canoas, etc... apitando, soltando foguetes, tocando tambores e cornetas. A multidão, com bandas de música, tomou conta do cais, até perder de vista.
O navio estava de pintura nova, retocada no dia anterior, com ele fundeado na Lagoa dos Patos, por algumas horas. A tripulação e a tropa formavam nos diferentes conveses, vestindo uniformes brancos e verdes impecáveis. Os mastros e vergas portavam bandeiras de sinais e no topo do mais alto drapejava o galhardete de “fim de comissão”, de acordo com centenária tradição naval.
O Governador e o Prefeito foram recebidos na “escada de portaló” pelo Almirante Comandante do 5° Distrito Naval, o Comandante do NTrT e o Coronel Comandante do “Batalhão Suez”. Uma banda de música atacou o Hino Nacional e foi de arrepiar participar daquela imensa multidão toda, cantando com uma vibração contagiante. Em seguida, a tropa desceu a prancha até o cais onde seus integrantes abraçaram as famílias, em uma cena também impactante.
A tripulação do navio, incluindo os oficiais, ainda permaneceu em formatura, de frente para o cais, assistindo aquele espetáculo. Então, começou o que foi chamada de “a caçada dos espelhos”. As moças mais próximas do navio aproveitavam o sol pelas costas deles e usavam seus espelhinhos para refleti-lo nos olhos de quem lhes interessava. Seguiram-se trocas de sinais, resultando em encontros no convés, quando foi aberta a visitação ao navio, logo depois. Daí, para um programa noturno foi um passo que muita gente deu, inclusive o tenente Felipe.
As festas duraram três dias e três noites, com Helena, uma linda gaúcha - um mulherão - morena de pele clara e cabelos negros. Foi uma explosão de vida e Felipe, desta vez, balançou. Em razão disso, no retorno do navio ao Rio, ele não fez navegação astronômica, evitando olhar para o céu e ser cobrado por Vênus.
Helena veio para o Rio, onde ficou com uma tia. Mas, passava quase todas as noites com Felipe, no apartamento dele. Isso durou algumas semanas, até que ele foi designado para embarcar em um dos dois submarinos, de origem americana, a serem recebidos pela Marinha do Brasil, em Pearl Harbour, Honolulu, no Havaí, no meio do Oceano Pacífico Norte. Seriam, no mínimo, seis meses de ausência. Helena queria ficar noiva, mas Felipe transferiu o assunto para a volta. Ele não pensava em casar tão cedo...
A viagem das tripulações dos S“Rio Grande do Sul” e S“Bahia” para o Havaí teve início por mar, a bordo de um “NtrT” brasileiro, do Rio até Nova York. De lá, voaram para São Francisco da Califórnia, onde ficaram em uma Base Naval, em treinamento para a operação dos novos submarinos. Na escassa bagagem de Felipe, havia dois pares de raquetes de “frescobol” e várias bolas. Era a grande novidade em Ipanema, onde ele morava...
“I Left my Heart in San Francisco”... Esta linda canção, premiada na voz de Tony Bennett, dominava a atmosfera na cidade, de muitas semelhanças com o Rio de Janeiro, tanto com os bondes e sua baía, com a famosa ponte Golden Gate, como a alegre “joie de vivre”. Apesar do pesado programa profissional na U.S.Navy, que se iniciava pontualmente às 08:00, houve muitas oportunidades de confraternização.
O bar do histórico “Sir Francis Drake Hotel” era o ponto de encontro dos oficiais onde Felipe sempre aparecia. Foi lá que ele conheceu Giselle, uma refinada francesa, fã da “Nouvelle Vague”. Ela era apaixonada por filmes brasileiros desde que assistira “O Pagador de Promessas”, Palma de Ouro, em Cannes, e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha, do “Cinema Novo”, em outro ano daquele famoso Festival.
Como a delicada Giselle morava em um “flat”próximo, Felipe, praticamente, se mudou para lá. Além disso, ela possuía um carro confortável, no qual o casal circulou pelos muitos pontos turísticos da cidade e áreas próximas, incluindo a famosa e bela região de Carmel. Foram muitas as boas lembranças desse doce período na memória do nosso tenente. Mas, a mais forte delas era o perfume Nº5 Chanel, dos lençóis da querida francesinha.
A praia de Waikiki, a mais badalada de Honolulu, leva um banho da nossa Ipanema. Ela tem ao final um morrinho achatado, com o pomposo nome de Diamond Head. Nada se compara à visão dos Dois Irmãos, aplaudidos ao pôr do Sol. Mesmo assim, os tripulantes brasileiros estavam muito motivados ao chegarem a esse ícone da propaganda turística americana.
A Base de Submarinos americana fica na Baía de Pearl Harbour, a cerca de vinte quilômetros do centro de Honolulu. É nela, também, que está o Comando da Esquadra do Pacífico, que foi atacada, de surpresa, pelos japoneses, na 2ª Guerra Mundial, em dezembro de 1942. Os futuros S“Rio Grande do Sul” e S“Bahia” estavam lá, esperando os brasileiros.
Os oficiais dos navios alugaram moradia na cidade e compraram carros usados baratos. Os praças ficaram morando a bordo, na sua maioria. Os tenentes Felipe e Geraldo foram morar juntos em um dos chalés do Moana Hotel, na primeira paralela à praia de Waikiki. Dessa forma, eles iam e voltavam, diariamente, para os submarinos. E aproveitavam os fins de semana para irem à praia bem perto.
A atividade a bordo era intensa e, já na terceira semana, os dois submarinos começaram a sair para o mar, ainda com tripulação americana, mergulhando em exercícios cada vez mais complexos. Em mais algumas semanas, os americanos desembarcaram e os Ss foram recebidos pela Marinha Brasileira, em cerimônia festiva. Houve, ainda, um período adicional em que os submarinos se exercitaram em lançamentos de torpedos. Finalmente, foram submetidos a uma inspeção operativa pelo Comando da Força de Submarinos americana, da qual saíram aprovados com excelente capacidade de combate. Estavam prontos para aproar em direção ao Brasil.
O S12 "Bahia" (imagem Marinha do Brasil)

Durante todo esse período, Felipe e Geraldo aproveitaram o pouco tempo que lhes sobrava para conhecer e se fazer conhecidos. Assim é que, no primeiro domingo, inauguraram o frescobol brasileiro na praia de Waikiki, em um evento histórico no arquipélago do Havaí. Foi um “desbunde”, como então se dizia. Juntava gente para ver e pedir para experimentar. As quatro raquetes que Felipe trouxera “trabalhavam” o tempo todo. Até quando apareceram as primeiras imitações, depois que um gringo soubera que elas não eram patenteadas e passou a vender cópias na praia.
As contrapartidas dessa célebre invenção brasileira deveriam ser as pranchas de “surf” havaianas. Entretanto, a tentativa não deu muito certo porque a praia de Waikiki era de arrebentação muito fraca e a ida a praias melhores levaria muito tempo. Além disso, a segunda e mais decisiva razão era o grande tamanho e peso das sólidas pranchas. Seria necessário um havaiano marombado para encarar...
Os dois tenentes também jogavam tênis e foi na quadra do hotel que conheceram Anne e Cynthia, uma americana e a outra canadense. Ambas, no início de seus trinta anos, eram gerentes em um “shopping” próximo e ocupavam um apartamento duplo em andar alto do edifício do Moana Hotel. Além disso, tinham um carro bem mais novo que o deles.
Anne, uma morena esbelta, “ficou” com Felipe e a loura Cynthia com Geraldo. Depois de algumas refeições em restaurantes, resolveram que elas preparariam a comida em casa e eles comprariam o material. Deu muito certo porque, durante as semanas, eles almoçavam a bordo e elas no emprego. Além disso, o apartamento delas abrigava bem os dois casais. Mesmo assim, de vez em quando, uma delas passava a noite com o parceiro no chalé, para se “soltarem mais”, o que era decidido na “porrinha”, em uma grande brincadeira.
Dentro desse esquema, nos fins de semana, eles faziam turismo nas ilhas do arquipélago ou iam dançar na “noite” havaiana. Também acontecia trazerem colegas dos navios para se divertirem no apartamento, onde conheciam amigas delas. Até os Comandantes dos submarinos vieram e gostaram muito...
A despedida, ao final de quase três meses, foi muito sentida por todos. O cais ficou cheio de namoradas dos brasileiros, oficiais e praças, incluindo várias crianças. Anne e Cynthia também estavam lá, chorosas. E uma delas segurava as chaves do carro deles que não fora vendido, apesar de várias tentativas. Ficou de presente...
Na primeira madrugada em alto mar, na vastidão do Pacífico, Felipe encontrou-se com uma Vênus ansiosa pelo grande período que não tinham se falado. Ela sabia de tudo, desde a “desenxabida” francesinha em São Francisco até a “mandona” americana em Honolulu. Mesmo assim, as conversas deles eram variadas e carinhosas, com um doce tom de pertencimento.
Além disso, sendo o mês de outubro, o Pacífico estava com vários furacões espalhados. Assim, era fundamental que os dois submarinos, navegando juntos, na superfície, rumo ao Canal do Panamá, procurassem evitá-los. Para tanto, Felipe recebia, de estações terrestres, informações sobre eles por telégrafo Morse. Além disso, ele era ajudado por Vênus nessa tarefa, a partir de sua situação como observadora privilegiada. Esses dados meteorológicos eram lançados nas cartas náuticas para decisões dos Comandantes. Felizmente, a dupla dos valorosos submarinos brasileiros teve a sorte de não ter de encarar um monstro daqueles.
Após cruzarem o Canal do Panamá, os dois Ss contornaram a costa norte da América do Sul e desceram em direção ao Sul, percorrendo a costa brasileira, sem olhar as estrelas, até o Rio de Janeiro, onde atracaram na BACS “Base Almirante Castro e Silva”, da nossa ForS - “Força de Submarinos”.
Foi uma ocasião de grande alegria para todos os presentes, em especial os familiares. O Tenente Felipe, por não ter parentes no Rio, ficou a bordo, com o “quarto de serviço”. Foi uma pena porque tinha sido recebido, com muito carinho, por uma antiga namorada. Era uma surpresa da Maria das Graças, ou melhor, a “Gracinha”, que estava muito linda, em um belo vestido branco, contrastando com sua pele morena. Além disso, era dela o mais bonito bikini da praia! Teriam que esperar até o dia seguinte...
O tenente Felipe fez várias viagens no S“Rio Grande do Sul”, indo a portos brasileiros. Promovido a um posto acima, “desembarcou” um ano depois, para “servir em terra”, pela primeira vez em uma função burocrática, após nove anos de embarque.  
Tudo mudou, completamente, quando conheceu a mulher de sua vida, com quem se casou e que lhe deu quatro filhos. Ele percorreu todas as etapas e labirintos profissionais; empenhou-se, com sucesso, nos diversos cursos que fez; colocou sua alma nos três comandos, de navios e de Força Naval, com que foi agraciado. Por mérito, teve várias comissões no estrangeiro, viajou mais ainda pelo mundo...
Enquanto isso ocorria, as tecnologias evoluíam dos sistemas eletromecânicos para os digitais. As comunicações se tornaram instantâneas. A navegação nos mares e nos ares passou a depender de sistemas de localização baseados em satélites. Até para dirigir um carro, hoje, o homem se guia por eles. Isto é um escândalo! Os marinheiros não estão mais olhando para os céus!!!...  
Apareceu a internet, virando a vida de ponta-cabeça, encolhendo o mundo para o quintal de nossas casas. A violência passou a entrar pelas janelas, sem pedir licença e é servida, diariamente, ao vivo e a cores, em qualquer lugar, vinda de qualquer parte, com detalhes mórbidos do sofrimento humano.
Transferido para a reserva, o Almirante Felipe teve a sorte de poder se dedicar ao Clube Naval, em diferentes setores, o que faz até hoje. Na vida civil, atuou em diferentes atividades, viveu e conviveu com inúmeras pessoas, amigos, indiferentes e até inimigos. Experimentou indevidos amores e desamores...
Um dos hábitos que Felipe manteve foi a prática de leves atividades físicas, essenciais para seu bem-estar. Dentre elas, deu prioridade a longas caminhadas no calçadão de Copacabana, próximo ao local onde nasceu, em uma casa a beiramar, quando o único prédio significativo era o Copacabana Palace.
Nesse caminhar, o Comandante Felipe fica acompanhando a entrada e saída dos navios pela barra da Guanabara. E, instintivamente, faz os cálculos de aproximação deles, como se estivesse efetivando um ataque torpédico através do periscópio de seu submarino. Às vezes com sucesso...
O melhor ainda ocorreu em uma caminhada ao pôr do sol, na direção do Arpoador, com o céu absolutamente límpido. Súbito, o Tenente Felipe deu de cara com a querida amiga Vênus, piscando para chamar sua atenção. Com grande alegria, restabeleceram as conversas há muito interrompidas. Os assuntos são os mais variados, desde a ciumeira com a vida de solteiro dele, passando pelo casamento, a mulher e os filhos, até suas atividades atuais. Agora, por incrível que pareça, estão discutindo até política, apesar de apoiarem o mesmo partido...
O mais importante dessas conversas foi o convite que Vênus fez a Felipe para que, quando tudo terminar por aqui, em breve, ela o estará esperando, a fim de continuá-las pessoalmente...