Ana Nunes - Feminino Masculino |
Ana Nunes
Tive muitos trabalhos interessantes, às
vezes perigosos. Pelos quais me apaixonei e me entreguei de corpo e alma.
Um deles foi numa clínica psiquiátrica
como coordenadora das oficinas de arte. Com os médicos fiz cursos, reuniões e
conheci diagnósticos.
Com os pacientes fiz minha terapia, a
única que conheci. E descobri muitas coisas.
Aprendi a errar e rir dos meus erros e
sabê-los como coisa boa.
Descobri a precariedade do nosso
equilíbrio, nós, ditos “normais”. Que essa linha que divide nossos mundos é bem
tênue. Que a diferença ente nós e eles é questão de pés: nós os temos do lado
de cá e eles do lado de lá. Mas basta um susto, um medo, uma dor maior e
colocamos um pé do lado de lá. E haja luta e trabalho para tirá-lo de volta e
arrumar a “casinha”.
Descobri o tamanho da força do impulso
sexual. Como é a base de tudo que fazemos e pensamos. Na clínica ele era
exposto. E mostrado. Perguntado e discutido. Uns mais surtados ficavam mais à
mercê do que outros. Sem escolha dirigida atacava senhores e senhoras, donas de
casa e mães, solteiros e casados e jovens.
Uma senhora, muito séria e calada, chique
em suas saias midi e tênis esportivos, tinha “enormes” sonhos eróticos. E
padecia deles.
Outra jovem senhora, mãe e profissional,
chegava perto de mim e bem baixinho num cochicho ao pé do ouvido perguntava: - depois posso ver sua bundinha? Aí
algum sininho tocava no seu íntimo porque ela se afastava sem mais dizer.
Um paciente, senhor também já na curva do
caminho, que cantava as balalaikas em russo, apaixonou-se pela senhora
professora de música. E com ela sonhava nas noites de internado. E chamava por
seu nome.
Outra tinha medo que seu sangue no banho
saísse pelo ralo e se misturasse a outras águas, atraindo bichos pré-históricos.
Com um barulho maior vindo da construção ao lado, se assustava e acreditava que
a cola em seus dedos era a pele que se desfazia.
Uma jovem mulher, em seus delírios, só
pintava em vermelho. Flores okeeffenianas e tudo mais. Pintava o papel e um
pouco da mesa branca de mármore. Depois o quadro de avisos. Seu desejo era a
parede e seu limite, o mundo.
Outra mulher-mãe, grande, pesada,
adentrava como um navio singrando águas calmas. Um turbilhão ia dentro de si.
Todas as suas pinturas se pareciam consigo.
Um moreno forte de olhos verdes trabalhava
de segurança e tocava violão clássico. Delícia ouvi-lo. Quando surtava esmagava
lâmpadas com as mãos e punha fogo nos colchões de casa.
Escolheu seu fim trágico. Que pena! Uma
vez, colocou-se em conversa a sós comigo, sentados frente à frente, joelho com
joelho. E me perguntou, afirmando: Só existe Batman porque tem crime, certo?
Então só existe Deus porque tem Diabo?
Senti medo.
A vizinha, casada e mãe, enamorada do
vizinho de cima, acreditava que o barulho do banheiro dele era mensagem para
ela. E as folhinhas que se soltavam da árvore junto à janela e paravam em sua
cama eram recados de amor.
Um adolescente obcecado queria ver os pés
das moças e pedia se podia tocá-los. Não sei se alguém deixou.
Havia pacientes-dia. Iam só para as
oficinas e a terapia de grupo.
Um desses, grande, bonitão, articulado,
falante, que chamava sua mãe de “aquela senhora” e tinha delírios de
perseguição, um dia na oficina de arte deu de conversar política com a
oficineira, que tinha uma pontinha de pé, uns dedinhos do outro lado da linha.
E eu da outra sala ouvindo aquilo tomar corpo e calor, esperando a hora de
intervir. E eis que chega o paciente e me pergunta: - Ana, quem é o paciente aqui, eu ou ela?
Rio até hoje.
Essa mesma oficineira, senhora de seus
sessenta e muitos, artista plástica, fez numa sexta-feira, com os pacientes,
uma teia de Ariadne. Em tiras de retalhos de pano amarrados em nós a teia ia,
presa nas pilastras, a meia altura, da mesa de trabalho até perto da piscina,
estreitando a passagem. Assim ficou todo o fim de semana. Na segunda, desfiz
com os pacientes nó por nó. Foi tão terapêutico quanto faze-los. No outro dia
chegou a oficineira. E ao ver sua teia desfeita virou bicho. Espumava pela
boca, riscos vermelhos enfeitavam seu pescoço, me chamou de nazista e mais. Um
paciente foi me consolar se desculpando por ela, outro subiu para a enfermaria
e outros quiseram ir para casa.
Foi punk!
Um engenheiro obsessivo, por isso
alcoólatra, mediu a piscina oval com uma régua de trinta centímetros para
controlar sua natação. E nadava em curva, ao redor da borda, lógico.
Outras pacientes vieram de amor abandono. Ninhos
vazios, marido fugido, solidão, desesperança. E escolheram seus finais tristes.
Nessas ocasiões o silêncio entre os pacientes era enorme e a tristeza e o
sofrimento assombravam seus olhos.
Talvez a ideia desse final já tivesse
perambulado por seus pensamentos. E trazia medo. E os mais inteiros cuidavam
dos mais mutilados.
Todos esses casos enchiam minha alma de
carinho e compaixão. E, às vezes, tão perturbada, voltando a pé para casa,
atravessava as avenidas com cuidado mas sem me aperceber do que fazia. E depois
em casa, envolta em pensamentos, me perdia na leitura ou no filme como uma
sonâmbula.
Esteve por lá um jovem paciente de nome
Messias que precisava de aula particular. Meu filho, de nome português,
linhagem direta do meu Vô Américo vindo d'Além Mar, se ofereceu. Em lá
chegando, na secretaria, disse que estava “procurando
o Messias”. Quase ficaram com ele... e pulsa veia lusitana!
E quando fomos mudar de endereço as
paredes e pilastras do nosso espaço foram liberadas. Desenho! Pintura!
Pacientes, oficineiros e enfermeiros lado a lado numa farra democrática.
Freud explica. Explica?
1) Belo e humano depoimento, parabéns Ana !
ResponderExcluir2)Lembrei que, em tempos idos, fiz análise de grupo, individual... já falei isso aqui...acho que também já falei aqui do meu tempo como participante dos grupos de ajuda mútua:
3) Neuróticos Anônimos, Alcoólicos Anônimos (eu não era, mas tinha parentes e amigos alcoólicos) e Alanon = familiares e amigos dos AA.
4)Aprendi muito !
Olá Antonio,
ExcluirBom você ter participado desses grupos. A gente vai ajudar e acaba enriquecido de experiências humanas. Gente como a gente.
Obrigada pelo comentário e elogio.
Até mais.
Ana
ResponderExcluirvc surpreende sempre ! Quanta coisa guardada nestas lembranças
Eu leio sempre com prazer seus textos e quero mais
São surpreendentes !!
Grande abraço com muito carinho e amizade
Obrigada prima querida!
ExcluirBj
Ana,
ResponderExcluirAgora sou eu quem quer comprar essa Bic. Você toca numa área humana que todos evitam, até mesmo quem tem pessoas próximas que estão com os pés "do lado de lá". Tabus e preconceitos chegam como se achassem pouco a carga de sofrimento.
Ainda somos quase selvagens na hora de tratar dos nossos labirintos internos, das emoções, da sexualidade. Nos fechamos em silêncios e pudores que quase sempre explodem em gritos e desesperos quando o equilíbrio desequilibra e a solução parece quase impossível. Sorte a desses que puderam contar com sua alma generosa por perto. Até mais.
Olá Heraldo, obrigada pela Bic. Acho que elas estão em alta!!
ExcluirCom esse trabalho virei mais gente, mais simples e mais tolerante. Voce sabe, sou ariana, geniozinho terrível mas muito leal e responsável. Aprendi muito, como disse nosso Budista.
Feliz com "a alma generosa"!
Até mais.
Um artigo tão contundente, tão extraordinariamente informativo sobre a mente humana, esta ainda imperscrutável, enigmática, uma poderosa fortaleza que guarda os maiores segredos possíveis e imagináveis, somente poderia resultar de uma pessoa que escreve como ninguém, pois, em primeiro lugar, mulher, então sensível, inteligente, culta, experiente, mãe de filhos, bem casada, logo, capaz de transcrever os seus sentimentos com relação ao seu trabalho de forma impressionante, admirável.
ResponderExcluirOs casos relatados pela sua mão prodigiosa em escrever detalhes dão conta de duas modalidades de seres humanos, conforme indiscutível definição:
“Os de lá e os de cá.”
Não quer dizer que os de cá são os certos, pois às vezes eles se misturam, e vigora na sociedade os de lá, que nos levam a conflitos que exterminam com parte da humanidade a cada período.
Mas, a Ana ter escrito a respeito dessa miscelânea de personalidades que não sabemos as suas verdadeiras causas de seus desequilíbrios, trata-se de um texto que precisa ser repetido, necessita que a autora o desdobre em mais apresentações, pois este, em tela, clama à contemplação, que pensemos e raciocinemos - enquanto podemos – sobre como nos comportamos diante das frustrações, decepções, das adversidades, e quando nos defrontamos com aqueles cujas ideias são diferentes das nossas.
O texto desta senhora, da Ana, que muito a admiro – naturalmente dissidente! -, revela as inconstâncias e conflitos da mente com o mundo externo, digamos assim, aquele que não consta nos pensamentos de gente que não consegue dele fazer parte, então imagina que o agride quando, na verdade, agride a si mesma!
Irrepreensível, absolutamente digno, contundente, repito, uma postagem incomparável desde o tempo que escrevo para este blog extraordinário, que hoje justifica mais do que nunca o adjetivo que lhe agrego merecidamente!
Um forte abraço, Ana.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Olá amigo Francisco,
ExcluirQue bom que você gostou do post. Hesitei um pouco antes de fazê-lo.
Sei que somos amigos e nos gostamos, mas para de elogiar tanto. Estou ficando impossível, "cheia de si". Mais um pouco e o Sr Redator me tira de circulação.
Esse mundo do qual tive a oportunidade de participa é fascinante, triste e pesado. Lá nao se pode usar levianamente a palavra loucura, ou louco, como "você está louco, cara" ou " foi uma loucura". Porque, para eles, essas palavras têm uma conotação realista e sofrida.
Mas resultados positivos são sempre celebrados.
Obrigada pelo comentário.
"Saúde e paz"!
Caríssima Donana,
ResponderExcluirA senhora descreve qualquer universo lindamente, com grande sensibilidade e senso de humor - começando pelos Feminino e Masculino aí em cima (rsrs). Sem dúvida são emocionantes esses seus mundos de sonhos, bundinhas e balalaikas, metáforas do paradoxo epicuriano e folhas-bilhetes, bichos pré-históricos e peles de cobra, flores okeeffenianas e auto retratos e uma oficineira limítrofe presa em sua própria teia neural. Mas o que fazer quando alguém resolve sair voando pela janela e sobra nas asas alheias toneladas de penas e culpa?
Devo confessar que a loucura me assusta porque ou mora ou dorme dentro de nós já que a tênue fronteira desses dois mundos se chama química cerebral. Não tem como negar, por exemplo, que a depressão, essa doença nefasta para a qual tantos de nós ainda damos colo, mata mais que o câncer.
Não, Freud não explicou tudo, Donana, mas bem que falou dessa dualidade/bipolaridade, ao abordar o que nos move e que nos paralisa, as pulsões humanas, rebatizando os ancestrais Eros e Tanatos com outros nomes: os instintos de vida - aqueles que operam a sobrevivência básica, o sexo, o prazer, a reprodução, a sede, a fome - e os instintos de morte por acreditar que ela é o objetivo da vida.
Certa vez li que os psicanalistas são chamados de Orfeu porque, da mesma forma que o mito não podia olhar para Eurídice antes da hora, eles também são proibidos de articular para o paciente os seus traumas e neuroses antes de os fortalecer para encarar a verdade. Pensando bem, talvez o mito grego desenhe os instintos de morte freudianos, as práticas auto destrutivas, a violência, a agressão, as compulsões. A pergunta é: porque cargas d'água Orfeu olhou para trás sabendo que se destruiria e à mulher amada? Muitos acham que aquele olhar foi o resultado de suas impaciência e desejo. Mas e se, em vez, Orfeu não quisesse apenas ver Eurídice à luz, em sua verdade diurna, mas precisasse vê-la nas sombras, em sua obscuridade, na sua noite, do distanciamento da loucura ?
Penso que toda essa libido avassaladora pincelada no seu post por um coração caridoso tem muito a ver com os prezados Id ou Superego dominando o filme e fazendo o pobre Ego entrar em parafuso. Mas também já conheci muita gente "normal", doida de pedra, do tanto que se tenta – Dona Religião então! - normatizar o que é instinto, patrulhar a sexualidade humana, limitando-a, penalizando e dominando o indivíduo pela culpa, já que quem domina o que alguém tem de mais íntimo e privado, domina o conjunto da obra, é claro.
Parabéns pela arte, pelo post, pelo trabalho nas oficinas e pela alma funda.
"Até mais"
Olá Moacir,
ExcluirE o senhor completa o post com grande sensibilidade e sabedoria!
A loucura também me assusta. Como você bem disse, ela mora dentro de nós e é fácil cruzar a linha. Temos que preservar nossa sanidade procurando o próprio equilíbrio em liberdade, usando tempo e conhecimento. E nos livrando dessas patrulhas sonegantes, algumas até do berço.
Adorei a oficineira em "sua teia neural". Você precisava conhecer a peça!
Obrigada pelos elogios.
Até mais, sabichão.