August Macke - Quatro meninas (1912) |
Heraldo Palmeira
As meninas francesas deviam ter entre treze e quinze anos. Aguardavam o
embarque. Eram quatro. Eram quatro livros. Abertos, sendo devorados.
Os smartphones e outros cacarecos digitais estavam lá, displicentes,
espalhados sobre a mesa da lanchonete. Milagrosamente esquecidos, até pouco
vigiados.
As meninas francesas destoavam de tudo e todos ao redor, pois não eram
ilhas teclando seus individualismos, como ficou comum de se ver. Apenas liam.
E, fosse pouco, também conversavam como nos velhos tempos. Ainda por cima,
naquele idioma lindo! Comentavam entre elas alguns pontos das próprias
leituras, rabiscando as páginas com anotações. Como nos velhos tempos. Eram
lindas as meninas daquele jeito!
Sim, elas conversavam animadamente e isso parecia algo estranhíssimo.
Senti um sopro suave no coração. As letras pareciam flutuar formando palavras,
como um éter que a gente quase consegue ver antes de evaporar.
Aquelas francesinhas não eram ninfetas, não eram lolitas, não pareciam
parte desse jogo de sedução. Não tinham sabor de frutas forçadas a amadurecer
antes da hora. Não pareciam vítimas da vida cheia de modismos e imposições.
Eram apenas meninas embaladas em jeans, camisetas e tênis. Sem batom, sem
glamour. Duas delas usando óculos de grau sem qualquer complexo. Sem antecipar
o tempo de suas vidas. Apenas liam e conversavam, como sabíamos fazer antes de
fingir ter esquecido. Eram lindas! Talvez por isso.
Ao anúncio de voo iminente, juntaram tudo em suas mochilas, mas
permaneceram sentadas, entregues aos seus livros. Deixaram para seguir no fim,
quando praticamente todos já haviam atravessado o portão rumo à pista. Foram as
últimas a entrar no avião, logo depois dos seus adultos de estimação. Lendo,
lendo, lendo, lendo. Caminharam pelo corredor até seus assentos e seguiram
lendo a viagem inteira.
Na revista de bordo, li a respeito de uma espécie de clube do livro por
assinatura. Pensei nas meninas francesas e seus livros, e na leitura como tábua
de salvação para a ignorância generalizada que nos mostra seus dentes afiados o
tempo inteiro. E que, muito mais do que amedrontar, entristece.
Lembrei do menino no jantar da noite anterior, no restaurante do hotel.
Manteve-se cabisbaixo, vidrado no smartphone, enquanto todos os presentes
aderiram ao Parabéns pra você a
partir da chegada do bolo de aniversário que seus (envergonhados) pais e avós
caprichosamente encomendaram.
Para quebrar o constrangimento, fiz um gracejo e convoquei o rapazinho a
apagar a velinha. Usei o velho truque de dizer que, se vacilasse, eu mesmo
apagaria. O desprezo no olhar que mereci foi tamanho que pensei em soprar e
sair à francesa. Imagino que tradução ele encontrou para mim.
O sopro tíbio não teve força para trazer junto o sorriso cobrado pelos
parentes para as fotos. Ele apenas apagou, como se apagasse todos os chatos que
lhe cercavam fora do seu mundo virtual. Como quem cumpre um compromisso
indesejado, sopra um incômodo para longe. Lacônico, distante, quase imantado
por aquela telinha maldita.
Pena que eu não tivesse bola de cristal para antecipar o dia seguinte e
me sentir salvo pelas meninas francesas e seus livros abertos, sendo devorados.
Voltei à realidade com o anúncio do pouso. Saí apressado, mas deu tempo vê-las
indo no rumo do embarque internacional.
Imagino que as meninas francesas vararam a noite voando a caminho de
casa, lendo, sendo felizes, descobrindo o mundo escondido nas letras que quase
flutuavam como um éter que a gente quase vê, antes de virarem palavras para
contar histórias. Senti um sopro suave apagando aquela velinha que por pouco
não queimou meu coração.
Ainda estou me perguntando se aquilo tudo foi mesmo real, ou se terei
sido enganado por alguma holografia no meio da mesmice que nos encerra neste
berço esplêndido de coisa nenhuma.
Refiz minhas caminhadas pelas margens do Sena manuseando livros naquelas
famosas caixas verdes, sebos quase camelôs onde os buquinistas,
especializadíssimos, comercializam raridades impressas, livros, gravuras e
cartazes de uma Paris que já não existe, mas parece viva.
Esses comerciantes – simpáticos ou antipáticos como só os parisienses
antipáticos conseguem ser – estão lá compondo um dos circuitos mais importantes
da cidade. Na margem esquerda, entre Ilha de Saint Louis e Ponte do Carrossel.
Na margem direita, entre Hôtel de Ville e Louvre.
Eles que são história em tempo real. Que fazem circular a palavra
escrita surrada, já lida, que maravilhou, que foi tocada por tantos. Páginas
marcadas a lápis e borracha, rabiscadas, copiadas, roubadas, vivas.
Páginas que passarão pela vida das quatro meninas francesas que passaram
como poesia, me dando alento, me olhando por dentro, velando por mim. Sem
pressa, como devem ser as verdadeiras meninas. Lindas como o som de um acordeão
francês. Lidas como as palavras espalhadas pelas margens do Sena. Vividas no
tempo certo, como um sonho bom.
Olá Heraldo,
ResponderExcluir"Lindo como o som de um acordeão francês".
Onde você compra a sua Bic? Queria ter uma dessas,
Vou desejá-la. Já disseram:"Devemos desejar o impossível. Vai que passa um Anjo e diz amém?"
Até sempre mais.
Ana,
ExcluirEssa Bic já me acompanha há tanto tempo que nem sei dizer. Você tem a sua, especial. A minha está sempre à mão, reles. Acredite, os anjos estão muito acima, cuidado deste Conversas, isso sim!
No mais, este foi um dos comentários mais lindos e delicados que já mereci. As minhas meninas francesas agradecem por mim. Lendo. Até mais.
Hey Heraldo. Excelente texto. De fato a maioria das mulheres de hoje perde para as de 20 anos atrás em termos de conversação e inteligência emocional. Muitas monossilabicas. Como muitos de nós homens também. Mas pelo texto consegui rever a alegria que tinha de cortejar mulheres interessantes e bonitas. Além de obviamente relembrar do charme de Paris.
ResponderExcluirJone,
ExcluirObrigado pela leitura. Hoje vemos que não há conversação e a inteligência é pouco explorada. Não se iluda, as meninas, moças e mulheres não estão tendo vida fácil com esses homens que (ainda) andam à solta.
Talvez seja um capricho da vida, impor a todos - homens e mulheres - garimpar para achar os diamantes que também continuam disponíveis. É só procurar direito. Quem sabe, em Paris?
Meu velho, texto maravilhoso que nos leva ao passado, cujo presente briga para replicar no futuro. Que as meninas francesas sempre façam parte desse futuro!
ResponderExcluirChico,
ExcluirBelo jogo de palavras com o tempo, que traduz o que a gente deseja para um mundo que ora parece confuso. Que essas meninas francesas se repliquem nos nossos meninos e meninas, como já foi um dia. Abraço.
Heraldo, suas meninas "passaram como poesia" por nossa manhã de sábado. Mais uma bela história que revela, mais uma vez, sua alma de cronista.
ResponderExcluirMano,
ExcluirQue essa poesia das meninas siga passando em nossas vidas todos os dias, ainda mais começando por uma manhã de sábado - "Porque hoje é sábado", já repetimos com fervor.
Poesia que, oxalá, siga tendo lugar neste recanto digital que tem corpo e alma de letras que gostamos todos de rabiscar e ler. Abração.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirMeu mestre "em operar velhos motores para que não parem de gerar energia", chego atrasado porque queria lhe mandar Notícias do Fronte, mas parei em uma certa Moça da Livraria, em uma certa página 47 (rsrs) e fui fazendo longas escalas até chegar aqui. Hoje me pego assim...viajando ... nas suas páginas, em Paris, onde muitos outros escritores do seu calibre e leitores vorazes como eu , já passaram muitas horas, no decorrer de séculos, pelas margens do rio, pescando livros de segunda mão em caixas de ferro.
Às vezes, pode nos parecer que a literatura deixou de inventar maravilhas e perdeu o rumo. Na verdade não acredito nisso, não com os seus 30 Contos de Réis à minha beira. A escrita continuará, graças às bics talentosas como a sua, rumo ao desconhecido, mesmo que o capítulo no qual nos encontramos ainda não esteja pronto para a leitura. Da mesma forma acho que as essas suas francesinhas absolutamente lindas, que como aconteceu como as nossas filhas fizeram irão crescer depressa demais, se encontram exiladas em esquinas insuspeitas por todo vasto mundo, nós é que não lhes lemos os sinais.
Mas eu muito me orgulho de ter visto na página de abertura do tal do "Orkut" de um dos meus garotos, então com dezesseis anos, a poesia de nome Ítaca de Konstantin Kaváfis que, sem que ele soubesse, desde os vinte anos eu guardava bem dobrada, com uma dedicatória secreta na carteira (rsrs) Psiu! E teclo de boca cheia ter sido "roubado" da obra completa da Sophia de Mello Breyner, poetisa maior das terras lusitanas e desconhecida por cá, pela minha filha caçula já adulta. Por favor, nunca desista de garimpar diamantes e de nos consolar com Dona Poesia: “Para atravessar o deserto do mundo/ Para enfrentarmos o terror da morte/ Para ver a verdade/ Para perder o medo/ Ao lado dos seus passos/ Caminhemos!”.
Muito obrigado
Abração
Caríssimo,
ExcluirObrigado pelas Notícias do Fronte, que me deixam profundamente feliz sabendo-o à porta da livraria da moça. Que não está na sempre sedutora Paris das livrarias, mas já impressa e isso é uma grande alguma coisa. Tantas cifras para manter a linguagem de agradecimento à leitura dos 30 Contos, que espero interessante.
O fato é que, enquanto tivermos francesinhas à solta, valerá a pena gastar tinta para juntar palavras. E elas brotarão das "esquinas insuspeitas" com sinais fortes prontos para serem lidos. E seguiremos garimpando diamantes e poesia sempre que houver o menor sinal de vida. Obrigado, abração.
1)Dizia o anúncio: "Escreve com bic" e eu lembro disso pois em tempos idos, trabalhei em agência de publicidade, então é natural que grave muitas peças publicitárias...
ResponderExcluir2) Heraldo escreve muito bem com Bic = Belas, ilustres, crônicas...
3) É um abismo cultural/educacional que separa essas quatro beldades francesas com as nossas multiligadas em tecnologias várias.
4)Abraços de boa semana.
Obrigado, Antonio.
ExcluirHá um trabalho longo e difícil para aterrar esse abismo. Ele está por fazer e "vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois", como dizia o poeta mineiro. Pelo menos, as meninas já eram quatro!
Amigo Heraldo, você expõe a triste realidade de muitos jovens atuais, ao mesmo tempo com poesia e crueza!!! Senti-me preocupado com o futuro de minhas netas. Vou continuar incentivando-as a ler. Faço isso em toda data especial: junto com os presentinhos normais, sempre dou pelo menos um livro. Que das quatro netas e um neto eu tenha pelo menos uma "francesa", ou "francês" ...
ResponderExcluirCaro Emerson,
ExcluirSim, temos uma realidade triste aí fora, terreno fértil para uma ignorância vai se generalizando e que assusta. Mas o antídoto é exatamente esse que você está inserindo, por debaixo do pano, no meio dos presentes da sua meninada. Eu acredito que, mantendo essa escrita, sua família nos dará cinco leitores, brasileirinhos dos bons. Abraço.