Heraldo Palmeira
Tudo está calado ao redor, chegamos ao meio do feriadão, as pessoas
viajaram.
Nos feriados, todos correm da cidade e se entregam animados às estradas
entupidas, onde se arrastam por horas em engarrafamentos monumentais até
cidadezinhas que entram em colapso com tanta gente chegando de fora. As pessoas
vivem trocando de estresses.
O tempo mudou de repente. O calor sufocante foi sendo afastado por uma
brisa refrescante que virou vento forte nas folhas das árvores, que virou garoa
e restou frio. Os prédios ao redor estão escuros, como se abrigassem apenas as
memórias dos seus moradores, que deixaram seus confortos em casa para descansar
em desconfortos diversos, improvisados.
Mais cedo, os gritos e as cantigas da torcida no estádio ao longe
denunciavam até o placar de um jogo de futebol. Apito final, a multidão
desfeita escorrendo por rampas de acesso, ruas, carros, ônibus, trens e metrô.
Tabela cumprida, cada qual em busca dos resultados da própria vida.
Os pássaros que fazem farra o dia inteiro estão calados em seu merecido
descanso. A festa que houve numa casa vizinha já virou lembrança, as visitas
foram embora deixando o silêncio depois do vozerio de uma dose a mais. Um gato
vadio cruzou comigo, indo embora quando eu estava chegando. Só me olhou de
longe, com os cuidados normais dos felinos, sem interromper sua caminhada de
rei dos becos.
Os ponteiros que viraram números e marcam as horas digitais nas
bugigangas eletrônicas acabaram de avançar uma hora por conta própria,
cumprindo o ritual do horário de verão. Peguei com carinho o velho Tissot dos
anos sessenta, adiantei e dei corda. Ele e eu não entendemos essa coisa de
mexer no tempo, apressar o passo para depois recuar lá na frente.
O velho Tissot (foto de Heraldo Palmeira) |
Ele e eu estamos juntos há tantos anos... Somos contemporâneos e já
temos tempo de sobra para saber que nada disso leva a lugar nenhum. Ninguém
reinventa a roda, os tempos precisos da natureza não carecem de reparos ou
melhorias humanas, até porque não temos nada além de presunção para tamanha
tarefa.
Afinal, quando começamos a aparecer por aqui, o planeta já girava ao
redor do Sol para mudar as horas e passar o tempo, para fazer dia nas horas
claras e noite nas horas escuras, e até humilhar inventando o espetáculo do Sol
da meia-noite.
Já se sabe que não há qualquer resultado prático nisso, a não ser
interferir na vida das pessoas, mexer nos relógios biológicos. É ruim se sentir
roubado no tempo de ficar acordado pela madrugada.
Há muitos anos, uma amiga me pediu para ir buscar o namorado inglês que
desembarcaria na manhã seguinte, vindo de Londres. Pura figura de linguagem! O
voo do cara chegou às cinco da madruga e estávamos em horário de verão. Ainda
escuro, e lá estava eu a postos, pois a querida saíra da cidade e só chegaria
no final da noite.
Chegamos em casa nem havia clareado, naquele mormaço do verão, e o
sujeito, com aspecto de que praticava a religião dos gatos no pouco culto ao
banho, foi logo me pedindo um uísque. Era boa praça e começamos a conversar,
misturando meu inglês ruim e o português mais para tupi-guarani dele.
Seguimos ao redor da mesa no nosso café, o meu à base de cafeína e o
dele no modelo caubói em velocidade estonteante. Lá pelas tantas, perguntei por
que tinham relação lendária com o tempo, a ponto de o mundo enxergar a
pontualidade britânica como valor social global. Ele foi direto: “Não temos o
direito de tomar o tempo de ninguém, pois o tempo perdido é a única coisa
impossível de devolver”.
Nunca mais esqueci e, confesso, passei a ser ainda mais pontual desde
então. Sempre que percebo que posso me envolver em algum atraso, lembro daquele
maldito inglês martelando no meu ouvido “...o tempo perdido é a única coisa
impossível de devolver”.
Gosto de lembrar da minha amiga reclamando de enfiar o sujeito debaixo
do chuveiro no terceiro dia de dribles e catimbas na entrada do boxe. Ela
ficava muito engraçada enfezada: “Tentei mostrar que ele estava nos trópicos e
que aqui se costuma tomar um banho por dia, pelo menos. Imagine, aquela porra
daquela calça jeans ficava em pé sozinha quando ele saía de dentro!”, ela
desabafou. E completou arrasadora: “Sonhei acordada com a chegada daquele cara
e terminei somente com uma memória olfativa. Imagine que ele teve coragem de me
dizer, quase se vangloriando, que fazia quinze dias que não trocava de calça!”.
Muitos anos depois, eu estava conhecendo Londres e, ao dobrar uma
esquina, me deparei com o Big Ben. Por alguma generosidade superior, exatamente
quando ele começou a badalar o meio-dia em ponto. Por isso, tive a chance de
chegar diante dele no momento maior de marcar o tempo, doze badaladas. Algo
simples, mas indescritível. E naquela hora, pontualmente, lembrei do inglês que
não gostava de tomar banho.
Engraçado como uma hora roubada do meu tempo desencadeou lembranças de
quase trinta anos com um súdito de sua majestade.
No dia seguinte, num estádio mais distante, um cavaleiro do mesmo
império, Paul McCartney, estava trilhando o fio condutor da lenda
extraordinária que consegue aparecer de vez em quando sem virar arroz de festa.
Infelizmente, esse som não chega até aqui, como aqueles gritos do futebol do
dia anterior.
Mais cedo, durante o café, um jovem casal hóspede da casa ultimava
detalhes para seguir direto para a fila, que já era enorme, dos que veriam o
show “na pista”, no gramado.
Vieram direto de Minas exclusivamente para isso e a menina deixou claro
o que um velho Beatle representa: “Faz dez anos que eu sonho com o dia de ver
esse cara. E olhe que eu só tenho dezenove”. Love me do, nada mais. A mineirada sempre foi chegada numa arte de
verdade!
Já virando a madrugada da segunda, o casalzinho chegou eufórico, a
menina beirando a Lua, quase levitando pelo sonho Beatle realizado. Imagine se
tivesse respirado os ares dos anos sessenta, quando tudo aconteceu de verdade!
Olhei para o meu velho Tissot e ele deu uma mexidinha no ponteiro dos minutos,
concordando.
O feriadão acabando gelado, não deu praia. Lá fora, uma garoa
insistente, criatura difícil de lidar, impossível de driblar – não dá para
passar entre um pingo e outro porque nem há pingos, a água cai nebulizando o
espaço, pulverizando o frio até os ossos.
Um trago de café sempre desce bem, acomodando as sensações térmicas
todas. É bom não ter rixa entre cafeína e sono. Um privilégio. Enquanto não
chegava a hora da minha escuridão particular, Ivan Lins desfilava na tela como
iguaria servida aos espanhóis no Festival Internacional de Jazz de San Javier.
Uma boa maneira de aguardar amanhã, onde tudo começa ou apenas começa de
novo. Ou ameaça para depois terminar. Um moto-contínuo do mesmo, de nós, de
sempre, da vida, do tempo.
Mesmo com o sobrenatural Paul McCartney àquela hora descansando num
hotel da cidade, não tive pudor de me banhar noutras águas: que coisa
espetacular é a música brasileira! Pena que o Brasil cada vez mais fale menos a
língua dela e o seu próprio idioma.
Nós
vivemos debaixo do pano
Entre
espadas e rodas de fogo
Entre
luzes e a dança das cores
Somos
todos iguais nesta noite
Pelo
ensaio diário de um drama
Pelo medo
da chuva e da lama
Pelo
truque malfeito dos magos
Pelo
chicote dos domadores
E o rufar
dos tambores
Olha nós
outra vez no picadeiro
Vamos entrar mais uma vez...
Tudo caminhava para sossegar a alma, quando caí na besteira de dar uma
olhadinha num encontro de Ivan Lins, João Bosco e Gonzalo Rubalcaba. A dinamite
estava com pavio aceso e jogou pelos ares meu projeto de sossego, rezas,
bênçãos dos seres da madrugada, as batidas do coração.
O momento final, Linha de passe,
entrou no quarto como um vendaval. E me tomei de emoção quando vi que esse
monumento musical teve direção artística de um amigo querido que já está lá por
cima.
Agora fazer o quê? Quando amanheceu e soou o toque de espalhar, já
começou com a hora roubada pelo horário de verão. O vai-da-valsa de sempre,
rolar a bola com o jogo de cintura que virou regra. Afinal, a vida só presta
por isso, pelo ronco da cuíca. E ela roncou, acredite! Sem raiva e sem fome
desta vez. Mas, roncou! Também, na mão de Marçalzinho, filho de mestre
Marçal...
Trechos de:
Somos
todos iguais nesta noite (Ivan Lins - VítorMartins)
1) O texto do bom cronista Heraldo me fez lembrar de algumas coisas:
ResponderExcluir2) do jornal A Noite que havia antigamente no RJ, eu sempre sofro qdo um jornal acaba, sou um leitor inveterado, se quiserem me chamar de invertebrado tudo bem ...
3)Depois a bela música do Ivan Lins "Pede a banda pra tocar um dobrado... olha nós outra vez no picadeiro..."
4)Do sujeito, culturalmente, pouco chegado ao banho, tenho uma ótima para contar, depois envio...
5)No mais, parabenizar esse construtor de parágrafos como se fossem prédios, edifícios das ideias e reflexões.
Obrigado, Antonio. Palavras gentis que animam a continuar gastando tinta dessa Bic Cristal azul para rascunhar papel.
ExcluirO balanço cibernético das horas reconciliado pela música.
ResponderExcluirOra se não, meu caro!
ExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirVocê escreve íntimo, da gente e das palavras. Tão bom de ler!
Também tenho um Tissot de corda, modelo masculino parecido com o seu. Gosto de relógios grandes.
E sendo também pontual, de tentar atrasar e ficar estressada, gostei do seu hóspede fedido.
Até mais. Sempre.
Ana,
ExcluirObrigado pelas palavras carinhosas. Bom saber que também é do clube do Tissot a corda.
Além do cheiro, o hóspede fedido deixou sua boa lição. Até mais. Sempre.
“...o tempo perdido é a única coisa impossível de devolver” - frase para não esquecer. Aqui temos a cultura da impontualidade, passei minha vida profissional tendo que brigar muitas vezes contra ela...
ResponderExcluirAfinal, pudemos ver a lendária BIC azul, instrumento preferido de um amigo que sabe usá-la muito bem. E, permita-me a inconfidência, chamo a atenção dos leitores para a capa do livro onde ela repousa junto com o velho Tissot.
Um abraço do
Mano
Mano,
ExcluirPois é, o danado do inglês não deixou por menos. Também me incomodo até hoje com esta cultura da impontualidade, algo horroroso que a gente tenta dar status de normalidade.
A Bic azul é parceira há 49 anos e o velho Tissot há um pouco menos. Viraram testemunhas de tudo, confidentes. Inclusive do livro, que está se espalhando por aí.
Mais uma bela crônica e com a qualidade de sempre, escrita pelo Palmeira.
ResponderExcluirA foto que ostenta o relógio Tissot - na minha época o "must" era um Tissot Militar -, e a caneta Bic, de cristal, que tinha como sua antecessora a Johann Faber, de madeira, verde na sua extensão e azul e branca lhe rodeando o início da caneta, que borrava a tudo e todos, e de um bom gosto que valeria a pena um artigo somente da imagem.
Quanto ao tempo, ele vence sempre, logo, devemos nos adaptar à sua inclemência, sob pena de a nossa vida ser um conflito com o senhor do universo até o nosso fim!
Parabéns, Palmeira.
Um abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirObrigado por suas palavras. Realmente, a imagem ficou bonita porque simples, mostrando um velho relógio Tissot e a eterna parceira Bic Cristal azul. Há uma relação entre nós e isso é visível na imagem. Quem sabe, um dia escrevo a repeito?
Sim, o tempo é senhor de tudo e nós, na nossa insignificância, nos metemos a mexer nele. Abraço.
Perplexa!
ResponderExcluirComo você consegue escrever tão bem?
Patrícia,
ExcluirGastando tinta para rabiscar papel desde a juventude e olhando com ternura para o que acontece ao redor pode me ter permitido adquirir apenas uma capacidade de relatar as coisas com um pouco mais de detalhes. Obrigado.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirEssa sua Noite musical conversa sobre o tempo que, como tão bem diz o Blanc, "sabe passar e nós não". Parece que foi ontem que nos soava longínqua a hipótese quando os Beatles perguntavam:
"Will you still feed me when I'm 64?" (rsrs)
Mas ninguém - inclusos Caetano, Milton e Cazuza - cantou o danado do tempo melhor do que Pink Floyd:
https://www.youtube.com/watch?v=LNBRBTDBUxQ
"Time", sem nem falar da engenharia de som do Alan Parsons, com certeza, é especial.
Então é o seguinte: hoje, depois de tantos quilômetros rodados na base da tentativa e do erro - mesmo nos feriados! (rsrs) - eu tenho muita simpatia por aqueles que "trocam os seus confortos caseiros por desconfortos improvisados", pela tchurma que bota o pé na estrada em busca das novidades que já vivemos e dos significados que já desvendamos. Afinal é preciso caminhar olhando de um lado e do outro -e às vezes para trás! - correndo atrás do sol, colhendo referências, "construindo parágrafos", colecionando bytes de memória para se poder dizer "Home, home again!". Para se ter o que conversar, “pra sobreviver, pra que a esperança seja mais que a vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança”. Assim como os seus "Contos de Réis" abraçados pelos velhos companheiros BIC e Tissot aí na foto.
Abração
Caríssimo,
ExcluirSuas citações de quem cantou bem o tempo são pontos finais. E, quando adentramos o território floydiano, chegamos ao sobrenatural, onde Parsons era um dos magos.
Tive sorte de poder ser apenas um reles repórter dessa noite onde tanto aconteceu, inclusive algumas reflexões de vida deste cara comum aqui.
Sim, é quase comovente ver a multidão trocando de estresses, se atirando em desconfortos improvisados, porque tudo isso embute o desejo de descobrir a vida, de ser feliz nem que seja por átimos. E é assim que é.
Eu sei bem o que é isso, viajante inveterado que sou, descobridor dos meus modestos sete mares, pequenos, particulares, mas que me permitiram aprender a navegar no lastro de uma icônica Bic Cristal azul - icônica porque nunca termina ou envelhece, porque tem outra novinha, igualzinha para continuar a missão -, guiado pelo tempo de um velho Tissot que se renova pela corda diária. Até devolver tudo em contos de réis. Abração.