Vênus sobre o Pacífico (imagem wiki/planets) |
Domingos Ferreira
O planeta
VÊNUS é o terceiro corpo celeste mais brilhante na abóboda celeste, após o Sol
e a Lua. Além disso, ele é o segundo mais próximo do Sol, depois de Mercúrio e
antes da Terra. Tal posicionamento faz com que ele, caprichosa e femininamente,
apareça para nós, mortais terrestres, ora logo após o pôr do Sol, ora pouco
antes do seu nascer.
Isso faz os
homens que olham muito para o céu, como os marinheiros, terem grande
familiaridade com o planeta, tratando-o, inclusive, no feminino, isto é a Vênus
matutina, ao nascer do Sol, e a Vênus vespertina, após ele se pôr.
O Almirante
Felipe, durante sua longa carreira, teve inúmeros encontros com Vênus, em
diferentes mares e oceanos pelos quais navegou. Ao início, ainda jovem
Guarda-Marinha, eles foram apresentados, um ao outro, durante as aulas de
navegação astronômica para sua turma, em alto mar. Então, inexistiam
computador, internet, GPS, satélites, etc...
Naquelas
ocasiões, eram grupos de dezenas de alunos, no largo convés do Navio-Escola,
vasculhando os céus ao mesmo tempo, em busca de estrelas fixas, cujas posições
no firmamento, verificadas com uso de sextantes, possibilitavam calcular e
registrar onde estava o navio na carta (mapa) de navegação. Nessa confusão, a
observação de Vênus, em toda sua beleza, era puramente secundária, por
curiosidade.
Alguns anos
depois, o tenente Felipe era “ajudante de navegação” em um “NTrT-Navio
Transporte de Tropa”, cruzando o Atlântico, com seiscentos soldados do “Batalhão
Suez”, do Exército Brasileiro, com destino a Port Said, na entrada do Canal de
Suez, no Egito. Essa tropa, em rodízio anual, era a colaboração brasileira para
os esforços da ONU na manutenção da paz naquela região, onde ocorriam os
primeiros embates mais sérios da Guerra Fria.
Esses fatos
tinham origem na recente independência do Egito - até então colônia da
Inglaterra - proclamada pelo notável coronel Gamal Abdel Nasser. Daí, surgira a
nacionalização do Canal de Suez pelos egípcios, fato inaceitável para os
ingleses e franceses e o recém-criado Estado de Israel. Este era, também,
inaceitável para os palestinos expulsos de suas terras pelos judeus.
Além da
tropa do Exército, o NTrT transportava mais quatrocentos homens que eram parte
da tripulação do Navio Aeródromo “Minas Gerais”, adquirido da Marinha Inglesa
pela Marinha do Brasil e passando por uma grande revisão em Rotterdam, Holanda.
Isso fazia com que o NTrT estivesse com mais de mil homens embarcados, além de
sua própria tripulação.
O tenente
Felipe “dava serviço” no passadiço nos “quartos” de 16:00 às 20:00 e de 04:00
às 08:00. Sua tarefa principal era fazer as observações, com o sextante, de
estrelas pré-selecionadas, cujos ângulos em relação ao horizonte se
transformavam nos elementos dos cálculos que chegavam à posição geográfica do
navio em alto-mar. Essa posição seria lançada na carta de navegação e mostrada
ao Encarregado de Navegação, (um oficial superior) que conferia sua veracidade
e a mostrava ao Comandante do navio, quando ele vinha ao “passadiço”(ponte de comando),
após o café da manhã, ou antes de descer para o jantar.
Essa
coreografia toda, aparentando complicada, era rotineira, naquela época, em
qualquer navio navegando afastado da costa. Felipe, com muita prática, levava
uma meia-hora para fazer os cálculos, com notável precisão. Isso agradava
bastante seus superiores.
Contudo, sua
concentração nas estrelas desagradava muito a ciumenta Vênus, que fazia de tudo
para chamar sua atenção, mostrando-se exuberante desde o momento em que o jovem
e belo oficial pegava no sextante e o apontava para o céu.
Até que, em
uma linda madrugada, sem Lua, só com o timoneiro no passadiço vazio, quando
Felipe ia conteirar seu instrumento para a primeira estrela, ele ouviu uma voz
feminina, doce e firme, lhe dizendo:
“Felipe,
Felipe!... olhe para mim, olhe para mim!”... “estou logo à direita desta
estrela”... “e vou piscar três vezes para você”...
Dito e
feito, Felipe, meio assustado, apontou o sextante naquela direção e viu a
brilhante Vênus, enamorada, piscando para ele.
Aí, ela
disse: “não precisa falar nada”... “basta você pensar em mim, olhando para cá,
que eu entendo o que quiser dizer”... “e você entenderá o que eu lhe disser”...
“sem problemas, desde que um aviste o outro”...
Funcionou!...entro
de poucos minutos, eles estavam se entendendo, com Vênus dando o tom da
conversa, feminina como era...
E Felipe,
distraído, quase perdeu a oportunidade de observar as outras estrelas e marcar
o ponto na carta, pois o céu clareara rapidamente, apagando-as sem dó...! A
partir daquele dia, nas madrugadas, não tinha gente para atrapalhar... e eles
conversavam como amigos, quase enamorados.
Isso valeu
até entrarem no Mediterrâneo, pelo estreito de Gibraltar, e chegarem ao
primeiro porto - no caso, Barcelona - onde o navio passou dois dias. Ali,
Felipe reencontrou Mireja, uma catalã de longos cabelos negros e imensos olhos
verdes, com a qual dançou um tórrido “pasodoble”, semelhante ao que tinham
praticado alguns anos antes, quando ele ali passara em outro navio. Olé!...
Seguiu-se,
uma curta travessia até Nápoles, com mais dois dias atracado. Mesmo assim,
houve oportunidade de Felipe rever Annunziatta, uma italiana digna dos afrescos
de Pompéia. Ela morava na ilha de Capri, ali perto, e ofereceu, ao nosso herói,
uma autêntica pizza napolitana, no capricho, com vinho tinto, música de fundo,
e todas as consequências.
Depois, o
navio contornou a bota italiana e rumou direto para Port Said, no Egito,
navegando com o uso de radar, sem necessidade de apoio das estrelas. Seriam
oito dias no porto, para a troca dos Batalhões sediados na Faixa de Gaza.
Felipe e mais dois colegas tiveram licença de quatro dias e alugaram um carro,
com um motorista falante chamado Jamal (belo, bonito...) , para irem até o Cairo,
visitar as pirâmides.
A distância
entre as duas cidades é cerca de duzentos quilômetros e a estrada estreita
corre ao longo do canal até cidade de Ismailia, onde toma direção para Oeste e
penetra fundo no deserto. Eles saíram do navio à tarde, com a intenção de
chegar ao Cairo no final do dia. O trecho, em pleno deserto, era uma sucessão
de subidas e descidas em grandes dunas, aparentando navegar em mar grosso, onde
a estrada se resumia a um traço escuro de uma caligrafia monótona. Até que
enxergaram palmeiras ao longe.
Era um
oásis, com casario baixo, pequeno lago, posto de gasolina e um arremedo de
restaurante com placa dizendo “Hotel”. Ali, pararam para reabastecer, esticar
as pernas e beber alguma coisa.
Os três
amigos caminhavam distraídos pela pequena área do oásis, sob o olhar
desconfiado dos poucos moradores, até que foram procurados pelo motorista
Jamal, alarmado, com a má notícia de que o carro não estava “pegando”e a
bateria ia arriar. Foi um desacerto. Os três colegas, ajudados por alguns
moradores, empurraram o carro até cansar, e nada. Pararam um pouco, para
respirar, e Felipe se afastou, instintivamente, do grupo, caminhando pela beira
do pequeno lago.
De repente,
ele percebeu que o Sol estava se pondo e Vênus brilhava na sua frente. Logo,
ela puxou conversa e, ciumenta, deu-lhe a maior bronca com os encontros
amorosos dele, falando sem parar. Chegou até a dizer que Mireja tinha celulite
e que a pizza da Annunziatta estava mofada... Felipe, amuado, não sabia o que
dizer.
Vendo seu
embaraço, Vênus teve pena dele. Matreira, tentou consolá-lo dizendo que iria
ajudá-lo com o carro. E, se escondendo atrás de uma nuvem, completou que ele
poderia voltar para lá, pois o carro iria pegar. O que, de fato, aconteceu
quando Felipe acionou a chave de partida, para grande surpresa de todos.
Alguns dias
depois, tendo acomodado o Batalhão retirante, o navio desatracou de Port Said e
aproou para o estreito de Gibraltar, cruzando-o em direção a Plymouth, no Sul
da Inglaterra, onde atracou nove dias depois. Ali ficou quatro dias, recebendo
material e equipamentos para o NAe“Minas Gerais”, em Rotterdam.
Nessa parada
em Plymouth, foi possível assistir aos frenéticos preparativos da Marinha
Inglesa visando à retomada do Canal de Suez, planejada para ocorrer junto com
forças navais francesas, no menor tempo possível. Contudo, nada aconteceu
devido à interferência da Rússia, enviando uma força naval para Alexandria, em
apoio aos egípcios. E o célebre e caro Canal de Suez está em mãos dos descendentes
dos faraós até hoje.
O tenente
Felipe tinha, também, uma jovem inglesinha, chamada Wendy, esperando por ele em
Plymouth. Ela fora avisada de sua chegada por uma carta gentil e perfumada, que
ele, muito organizado, lhe enviara de Nápoles. O encontro foi em um belo
jardim, ao longo do canal de acesso ao porto, chamado de “The Sailor’s Land”,
com muitos esconderijos bem vigiados pela polícia, para que os amantes não
fossem perturbados nos seus doces afãs. Para tanto, Wendy, uma lourinha “mignon” e
afogueada, providenciou um kit completo de piquenique, incluindo uma pequena
barraca de lona, sob a qual o casal matou todas as saudades.
O navio
deixou o porto dois dias depois e, ao sair pelo canal, Felipe e alguns colegas
e praças foram surpreendidos por Wendy e outras namoradas, tocando tambor e
corneta na margem e acenando em despedida da “ Terra Dos Marinheiros”.
A
permanência em Rotterdam foi a suficiente e necessária para desembarcar os
tripulantes e descarregar o material e equipamentos do NAe“Minas Gerais”. De lá,
o NTrT, sem mais escalas, cruzou o Atlântico em direção a Recife, onde chegou
doze dias depois.
Nessa “pernada”,
eles enfrentaram alguns dias de mau tempo, sem avistar estrelas. Mesmo assim,
nas poucas madrugadas com céu limpo, Felipe e Vênus tiveram bastante tempo para
conversar, com crescente intimidade e alegria. Ela, como sempre, reclamou da
namorada da vez, dizendo ser uma “tampinha”, que “não tomava banho” como é “hábito
das inglesas” e “comprovado pela inexistência de banheiro na barraca!?”.
A próxima
parada do navio foi no Rio de Janeiro, por poucos dias. De lá, ele se
movimentou para Porto Alegre, com o objetivo de desembarcar a tropa do
Exército, pois aquele “Batalhão Suez” era todo integrado por “gaúchos”, fora de
casa havia mais de um ano.
A recepção a
seus “heróis” foi uma apoteose indescritível. O Governo do Estado e a
Prefeitura de Porto Alegre decretaram feriado. Era uma bela manhã de outono. Ao
se aproximar do porto, navegando na Lagoa dos Patos, o navio foi cercado por
dezenas de lanchas, rebocadores, catamarãs, veleiros, jet-skis, barcos de
pesca, canoas, etc... apitando, soltando foguetes, tocando tambores e cornetas.
A multidão, com bandas de música, tomou conta do cais, até perder de vista.
O navio
estava de pintura nova, retocada no dia anterior, com ele fundeado na Lagoa dos
Patos, por algumas horas. A tripulação e a tropa formavam nos diferentes
conveses, vestindo uniformes brancos e verdes impecáveis. Os mastros e vergas
portavam bandeiras de sinais e no topo do mais alto drapejava o galhardete de “fim
de comissão”, de acordo com centenária tradição naval.
O Governador
e o Prefeito foram recebidos na “escada de portaló” pelo Almirante Comandante
do 5° Distrito Naval, o Comandante do NTrT e o Coronel Comandante do “Batalhão
Suez”. Uma banda de música atacou o Hino Nacional e foi de arrepiar participar
daquela imensa multidão toda, cantando com uma vibração contagiante. Em
seguida, a tropa desceu a prancha até o cais onde seus integrantes abraçaram as
famílias, em uma cena também impactante.
A tripulação
do navio, incluindo os oficiais, ainda permaneceu em formatura, de frente para
o cais, assistindo aquele espetáculo. Então, começou o que foi chamada de “a
caçada dos espelhos”. As moças mais próximas do navio aproveitavam o sol pelas
costas deles e usavam seus espelhinhos para refleti-lo nos olhos de quem lhes
interessava. Seguiram-se trocas de sinais, resultando em encontros no convés,
quando foi aberta a visitação ao navio, logo depois. Daí, para um programa noturno
foi um passo que muita gente deu, inclusive o tenente Felipe.
As festas
duraram três dias e três noites, com Helena, uma linda gaúcha - um mulherão -
morena de pele clara e cabelos negros. Foi uma explosão de vida e Felipe, desta
vez, balançou. Em razão disso, no retorno do navio ao Rio, ele não fez
navegação astronômica, evitando olhar para o céu e ser cobrado por Vênus.
Helena veio
para o Rio, onde ficou com uma tia. Mas, passava quase todas as noites com
Felipe, no apartamento dele. Isso durou algumas semanas, até que ele foi
designado para embarcar em um dos dois submarinos, de origem americana, a serem
recebidos pela Marinha do Brasil, em Pearl Harbour, Honolulu, no Havaí, no meio
do Oceano Pacífico Norte. Seriam, no mínimo, seis meses de ausência. Helena
queria ficar noiva, mas Felipe transferiu o assunto para a volta. Ele não
pensava em casar tão cedo...
A viagem das
tripulações dos S“Rio Grande do Sul” e S“Bahia” para o Havaí teve início por
mar, a bordo de um “NtrT” brasileiro, do Rio até Nova York. De lá, voaram para
São Francisco da Califórnia, onde ficaram em uma Base Naval, em treinamento
para a operação dos novos submarinos. Na escassa bagagem de Felipe, havia dois
pares de raquetes de “frescobol” e várias bolas. Era a grande novidade em
Ipanema, onde ele morava...
“I Left my Heart in San Francisco”... Esta linda canção, premiada na
voz de Tony Bennett, dominava a atmosfera na cidade, de muitas semelhanças com
o Rio de Janeiro, tanto com os bondes e sua baía, com a famosa ponte Golden
Gate, como a alegre “joie de vivre”. Apesar do pesado programa profissional na
U.S.Navy, que se iniciava pontualmente às 08:00, houve muitas oportunidades de
confraternização.
O bar do
histórico “Sir Francis Drake Hotel” era o ponto de encontro dos oficiais onde
Felipe sempre aparecia. Foi lá que ele conheceu Giselle, uma refinada francesa,
fã da “Nouvelle Vague”. Ela era apaixonada por filmes brasileiros desde que
assistira “O Pagador de Promessas”, Palma de Ouro, em Cannes, e “Deus e o Diabo
na Terra do Sol” de Glauber Rocha, do “Cinema Novo”, em outro ano daquele
famoso Festival.
Como a
delicada Giselle morava em um “flat”próximo, Felipe, praticamente, se mudou
para lá. Além disso, ela possuía um carro confortável, no qual o casal circulou
pelos muitos pontos turísticos da cidade e áreas próximas, incluindo a famosa e
bela região de Carmel. Foram muitas as boas lembranças desse doce período na
memória do nosso tenente. Mas, a mais forte delas era o perfume Nº5 Chanel, dos
lençóis da querida francesinha.
A praia de
Waikiki, a mais badalada de Honolulu, leva um banho da nossa Ipanema. Ela tem
ao final um morrinho achatado, com o pomposo nome de Diamond Head. Nada se
compara à visão dos Dois Irmãos, aplaudidos ao pôr do Sol. Mesmo assim, os tripulantes
brasileiros estavam muito motivados ao chegarem a esse ícone da propaganda
turística americana.
A Base de
Submarinos americana fica na Baía de Pearl Harbour, a cerca de vinte
quilômetros do centro de Honolulu. É nela, também, que está o Comando da Esquadra
do Pacífico, que foi atacada, de surpresa, pelos japoneses, na 2ª Guerra
Mundial, em dezembro de 1942. Os futuros S“Rio Grande do Sul” e S“Bahia”
estavam lá, esperando os brasileiros.
Os oficiais
dos navios alugaram moradia na cidade e compraram carros usados baratos. Os
praças ficaram morando a bordo, na sua maioria. Os tenentes Felipe e Geraldo
foram morar juntos em um dos chalés do Moana Hotel, na primeira paralela à
praia de Waikiki. Dessa forma, eles iam e voltavam, diariamente, para os submarinos.
E aproveitavam os fins de semana para irem à praia bem perto.
A atividade
a bordo era intensa e, já na terceira semana, os dois submarinos começaram a
sair para o mar, ainda com tripulação americana, mergulhando em exercícios cada
vez mais complexos. Em mais algumas semanas, os americanos desembarcaram e os
Ss foram recebidos pela Marinha Brasileira, em cerimônia festiva. Houve, ainda,
um período adicional em que os submarinos se exercitaram em lançamentos de
torpedos. Finalmente, foram submetidos a uma inspeção operativa pelo Comando da
Força de Submarinos americana, da qual saíram aprovados com excelente
capacidade de combate. Estavam prontos para aproar em direção ao Brasil.
O S12 "Bahia" (imagem Marinha do Brasil) |
Durante todo
esse período, Felipe e Geraldo aproveitaram o pouco tempo que lhes sobrava para
conhecer e se fazer conhecidos. Assim é que, no primeiro domingo, inauguraram o
frescobol brasileiro na praia de Waikiki, em um evento histórico no arquipélago
do Havaí. Foi um “desbunde”, como então se dizia. Juntava gente para ver e
pedir para experimentar. As quatro raquetes que Felipe trouxera “trabalhavam” o
tempo todo. Até quando apareceram as primeiras imitações, depois que um gringo
soubera que elas não eram patenteadas e passou a vender cópias na praia.
As
contrapartidas dessa célebre invenção brasileira deveriam ser as pranchas de “surf”
havaianas. Entretanto, a tentativa não deu muito certo porque a praia de
Waikiki era de arrebentação muito fraca e a ida a praias melhores levaria muito
tempo. Além disso, a segunda e mais decisiva razão era o grande tamanho e peso
das sólidas pranchas. Seria necessário um havaiano marombado para encarar...
Os dois
tenentes também jogavam tênis e foi na quadra do hotel que conheceram Anne e
Cynthia, uma americana e a outra canadense. Ambas, no início de seus trinta
anos, eram gerentes em um “shopping” próximo e ocupavam um apartamento duplo em
andar alto do edifício do Moana Hotel. Além disso, tinham um carro bem mais
novo que o deles.
Anne, uma
morena esbelta, “ficou” com Felipe e a loura Cynthia com Geraldo. Depois de
algumas refeições em restaurantes, resolveram que elas preparariam a comida em
casa e eles comprariam o material. Deu muito certo porque, durante as semanas,
eles almoçavam a bordo e elas no emprego. Além disso, o apartamento delas
abrigava bem os dois casais. Mesmo assim, de vez em quando, uma delas passava a
noite com o parceiro no chalé, para se “soltarem mais”, o que era decidido na “porrinha”,
em uma grande brincadeira.
Dentro desse
esquema, nos fins de semana, eles faziam turismo nas ilhas do arquipélago ou
iam dançar na “noite” havaiana. Também acontecia trazerem colegas dos navios
para se divertirem no apartamento, onde conheciam amigas delas. Até os
Comandantes dos submarinos vieram e gostaram muito...
A despedida,
ao final de quase três meses, foi muito sentida por todos. O cais ficou cheio
de namoradas dos brasileiros, oficiais e praças, incluindo várias crianças.
Anne e Cynthia também estavam lá, chorosas. E uma delas segurava as chaves do
carro deles que não fora vendido, apesar de várias tentativas. Ficou de
presente...
Na primeira
madrugada em alto mar, na vastidão do Pacífico, Felipe encontrou-se com uma
Vênus ansiosa pelo grande período que não tinham se falado. Ela sabia de tudo,
desde a “desenxabida” francesinha em São Francisco até a “mandona” americana em
Honolulu. Mesmo assim, as conversas deles eram variadas e carinhosas, com um
doce tom de pertencimento.
Além disso,
sendo o mês de outubro, o Pacífico estava com vários furacões espalhados.
Assim, era fundamental que os dois submarinos, navegando juntos, na superfície,
rumo ao Canal do Panamá, procurassem evitá-los. Para tanto, Felipe recebia, de
estações terrestres, informações sobre eles por telégrafo Morse. Além disso,
ele era ajudado por Vênus nessa tarefa, a partir de sua situação como
observadora privilegiada. Esses dados meteorológicos eram lançados nas cartas
náuticas para decisões dos Comandantes. Felizmente, a dupla dos valorosos
submarinos brasileiros teve a sorte de não ter de encarar um monstro daqueles.
Após
cruzarem o Canal do Panamá, os dois Ss contornaram a costa norte da América do
Sul e desceram em direção ao Sul, percorrendo a costa brasileira, sem olhar as
estrelas, até o Rio de Janeiro, onde atracaram na BACS “Base Almirante Castro e
Silva”, da nossa ForS - “Força de Submarinos”.
Foi uma
ocasião de grande alegria para todos os presentes, em especial os familiares. O
Tenente Felipe, por não ter parentes no Rio, ficou a bordo, com o “quarto de
serviço”. Foi uma pena porque tinha sido recebido, com muito carinho, por uma
antiga namorada. Era uma surpresa da Maria das Graças, ou melhor, a “Gracinha”,
que estava muito linda, em um belo vestido branco, contrastando com sua pele
morena. Além disso, era dela o mais bonito bikini da praia! Teriam que esperar
até o dia seguinte...
O tenente
Felipe fez várias viagens no S“Rio Grande do Sul”, indo a portos brasileiros.
Promovido a um posto acima, “desembarcou” um ano depois, para “servir em terra”,
pela primeira vez em uma função burocrática, após nove anos de embarque.
Tudo mudou,
completamente, quando conheceu a mulher de sua vida, com quem se casou e que
lhe deu quatro filhos. Ele percorreu todas as etapas e labirintos
profissionais; empenhou-se, com sucesso, nos diversos cursos que fez; colocou
sua alma nos três comandos, de navios e de Força Naval, com que foi agraciado.
Por mérito, teve várias comissões no estrangeiro, viajou mais ainda pelo
mundo...
Enquanto
isso ocorria, as tecnologias evoluíam dos sistemas eletromecânicos para os
digitais. As comunicações se tornaram instantâneas. A navegação nos mares e nos
ares passou a depender de sistemas de localização baseados em satélites. Até
para dirigir um carro, hoje, o homem se guia por eles. Isto é um escândalo! Os
marinheiros não estão mais olhando para os céus!!!...
Apareceu a
internet, virando a vida de ponta-cabeça, encolhendo o mundo para o quintal de
nossas casas. A violência passou a entrar pelas janelas, sem pedir licença e é
servida, diariamente, ao vivo e a cores, em qualquer lugar, vinda de qualquer
parte, com detalhes mórbidos do sofrimento humano.
Transferido
para a reserva, o Almirante Felipe teve a sorte de poder se dedicar ao Clube
Naval, em diferentes setores, o que faz até hoje. Na vida civil, atuou em
diferentes atividades, viveu e conviveu com inúmeras pessoas, amigos,
indiferentes e até inimigos. Experimentou indevidos amores e desamores...
Um dos
hábitos que Felipe manteve foi a prática de leves atividades físicas,
essenciais para seu bem-estar. Dentre elas, deu prioridade a longas caminhadas
no calçadão de Copacabana, próximo ao local onde nasceu, em uma casa a
beiramar, quando o único prédio significativo era o Copacabana Palace.
Nesse
caminhar, o Comandante Felipe fica acompanhando a entrada e saída dos navios
pela barra da Guanabara. E, instintivamente, faz os cálculos de aproximação
deles, como se estivesse efetivando um ataque torpédico através do periscópio
de seu submarino. Às vezes com sucesso...
O melhor
ainda ocorreu em uma caminhada ao pôr do sol, na direção do Arpoador, com o céu
absolutamente límpido. Súbito, o Tenente Felipe deu de cara com a querida amiga
Vênus, piscando para chamar sua atenção. Com grande alegria, restabeleceram as
conversas há muito interrompidas. Os assuntos são os mais variados, desde a
ciumeira com a vida de solteiro dele, passando pelo casamento, a mulher e os
filhos, até suas atividades atuais. Agora, por incrível que pareça, estão
discutindo até política, apesar de apoiarem o mesmo partido...
O mais
importante dessas conversas foi o convite que Vênus fez a Felipe para que,
quando tudo terminar por aqui, em breve, ela o estará esperando, a fim de
continuá-las pessoalmente...
1)É o que nós podemos chamar "Crônicas de Viagem"... ótimas viagens e belas crônicas ... parabéns Domingos...
ResponderExcluir2)Eu tb admiro o citado Corpo Celeste Vênus porque o meu Mestre Buddha (Sidarta Gautama) quando atingiu o Estado de Iluminação, dizem os textos, brilhava nos céus, as Luzes de Vênus ... certamente conversaram ...
3) No imaginário brasileiro, que já foi tema de música, temos A Estrela Dalva, Estrela da Manhã etc...
4)Por fim, vamos orar (cada um da sua forma) para que encontrem logo o Submarino Argentino e que a tripulação esteja bem ...
Amigo Antonio
ExcluirMuito obrigado por suas observações.
De fato, foram muitas e diversas viagens. Inúmeras experiências, pessoas as mais variadas,circunstâncias inesperadas...
A atração pelos astros faz parte da natureza humana e, apesar das mais modernas descobertas, o mistério sempre perdurará. A nossa insignificância é evidente.
Quanto aos hermanos argentinos, é uma pena o ocorrido. Vivi algumas experiências próximas a isso, especialmente com mares de grandes ondas. São a maior força da natureza...Somente um improvável exame no submarino poderá dar frágeis respostas.
Um grande abraço
Domingos
Olá Domingos,
ResponderExcluirSempre um romântico conversando com as estrelas!
Até mais.
Olá ANA
ExcluirExiste cena mais romântica que um grande veleiro navegando sob a abóboda celeste cravejada de estrelas?
Haja coração!...
Domingos
Domingos,
ResponderExcluirMais uma bela história de marinheiro, tão bem contada que nos faz duvidar da identidade do personagem :)
Estimado amigo Mano
ExcluirEu também tenho dúvidas quanto à identidade do personagem.
O importante é contar a história.
Um descarrego, a essa altura da vida...
Abraço fraterno.
Domingos
Prezado Domingos,
ResponderExcluirCompartilho o seu amor pelo vasto mundo que nós dois percorremos de formas tão diversas: você pelos sete mares e eu com a mochila nas costas e os pés na estrada. E de tanto que aprecio a sua prosa muito gostaria de ler mais sobre a catalã Mireja de imensos olhos verdes e aquele tórrido pasodoble, assim como sobre a Annunziatta, a italiana digna dos afrescos de Pompéia - nossinhora!! - sobre a afogueada Wendy em The Sailor’s Land e aquelas cinco gotas de perfume nos lugares certos em São Francisco e Carmel, como também sobre a visão que se tem depois de trilhar - com a gaúcha Helena, é claro – o Morro Dois Irmãos até lá no alto do Leblon e de Ipanema, sobre como é bom caminhar pelo calçadão de Copa observando a vida até os barcos lá no Posto 6 e depois ver o sol se pondo entre os dois cumes fraternos lá do Arpoador, sobre porque as nossas praias ganham disparado das Waikikis da vida,sobre tudo isso, todas essas histórias do Felipe “se soltando mais” em posts que cada tema pudesse chamar de seu (rsrs)
Falando do Posto 6 me lembrei do Drummond. É que certa vez, aqui nas Conversas, eu teclei sobre essa fome de espiritualidade que o bicho homem - marujo ou não - sempre experimentou ao olhar as estrelas, de como nossos cérebros parecem ter sido formatados para inventar deuses, para sonhar, para querer sempre mais, para precisar navegar e voar e chegar...onde mesmo? Na ocasião eu citei a estrela do Drummond, aquela com quem a gente “conversa anjos que ninguém conversa”. Mas acho que essa sua imorredoura paixão por Vênus está mais é para os versos do grande Manuel Bandeira (rsrs)
Estrela da Manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
(.....)
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra
e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã
Livro Estrela da Vida Inteira - poesias reunidas, 1986.
Obrigado e um abraço
Amigo Moacir
ResponderExcluirDe fato, temos muito em comum. A começar pela paixão, pelo arrebatamento. Quando escrevo, me emociono prá valer, a ponto de ter de interromper o texto. Levanto, vou à janela, com os olhos úmidos, respiro fundo até esfriar a cabeça...
Também, sou um apaixonado por Drummond. Quando caminho no calçadão, em direção ao Posto 6, cruzo com ele sentado e cercado por pessoas, as mais diversas, tirando fotos em grupo, selfies...,em poses muito gaiatas. Se o grupo é menor, caminho por trás do banco e passo a mão na careca dele, buscando inspiração. Juro que funciona...
Eu desconhecia o "Estrela da Manhã", do sagrado Manuel Bandeira. Foi o melhor presente que eu poderia receber.
Muito obrigado!
Vamos continuar juntos.
Abraço fraterno.
Domingos