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03/11/2017

Os nossos mortos

Cena de "Festa no Céu" (imagem Wikipedia)


Wilson Baptista Júnior
Ontem, dois de novembro, foi o “Dia de Finados”. O dia onde aqui nos lembramos “oficialmente” de nossos mortos. Não gosto desse nome. “Finados” tem um som muito final. Preferiria chamá-lo de Dia dos Mortos.
O que acontece conosco depois da morte? Onde e como estarão os nossos queridos que já morreram? E para onde podemos, ou não, esperar ir quando for a nossa vez?
Esta é uma pergunta que todas as culturas, todas as civilizações, tentaram e tentam responder. Vou falar um pouquinho delas, seus praticantes que perdoem a ousadia de um leigo, mas é só para poder, ao final, falar de um belíssimo filme.
Em todas aquelas que acreditam que continuamos a existir, seja como for, após a morte, o que acontece conosco tem a ver, de alguma maneira, com o modo com que nos comportamos durante a vida.
Os antigos nórdicos acreditavam que os mortos poderiam ir para quatro lugares diferentes: dos que morriam em batalha, metade eram levados por Odin para o seu salão, o Valhalla (“salão dos mortos”) em Aasgard, o reino dos deuses, e lá se incorporariam ao seu exército que se prepara para a batalha final de Ragnarok; a outra metade era levada pela deusa Freya para seu domínio, um grande prado, o Fólkvangr (“campo dos exércitos”), onde continuariam lutando até o fim dos tempos.
Aqueles que não morriam em combate e que  não tinham sido nem muito bons nem muito maus iam para um local chamado Hel (“o salão coberto”), já os que tivessem quebrado seus juramentos (o pior pecado para os nórdicos) ou feito outras coisas muito más iam para um lugar abaixo do Hel, chamado Niflhel (“o Hel nevoento” ou o lugar da escuridão), onde seriam severamente punidos pelo tempo afora.
Os antigos egípcios acreditavam que depois da morte partes de sua alma iam para o reino dos mortos. Lá, no Salão das Duas Verdades, os seus corações eram pesados numa balança pelo deus Anúbis, contra uma pluma de avestruz da tiara da deusa Maat, a deusa da justiça e da verdade. Aqueles cujos corações estivessem mais leves do que a pluma iam para o Aaru, o paraíso regido pelo deus Osíris. Aqueles corações que estivessem mais pesados, por suas culpas, do que a pluma eram devorados pela demônia Ammit (“a devoradora de almas”), e a alma condenada a vagar eternamente pelo reino dos mortos. Mas mesmo quem ia para o paraíso não estava seguro, Osíris exigia trabalho em contrapartida por sua proteção, e as almas deviam continuar respeitando os preceitos contidos no “Livro dos Mortos”, e seus corpos deviam ser preservados, na Terra, pelo processo de embalsamamento. Por isso as múmias.
Os antigos gregos e os romanos acreditavam que após a morte o deus Hermes, o mensageiro dos deuses,  levava a alma até o submundo, o reino do deus Hades, e a deixava às margens do rio Estige, a fronteira entre os reinos dos vivos e dos mortos, onde o barqueiro Caronte fazia a alma atravessar cobrando um preço em dinheiro (para isso os mortos eram enterrados com moedas debaixo da língua). Do lado dos mortos as almas eram julgadas e enviadas, conforme seu estado, a quatro locais diferentes: Os heróis e as almas cuja bondade era maior do que seus pecados iam para os Campos Elísios, aqueles cujos pecados equivaliam às suas boas ações iam para os Campos de Asfódelos, aqueles que tinham pecado mais do que feito o bem iam para os Campos do Castigo, e aqueles que tinham pecado muito gravemente iam para o Tártaro, o local sem perdão para onde os Titãs e os inimigos dos deuses tinham sido desterrados e onde as almas eram queimadas na lava dos infernos ou castigadas em aparelhos de tortura.
Muitas religiões orientais, notadamente o hinduísmo e o budismo, acreditam na reencarnação, onde a alma volta dentro de outro corpo segundo as culpas e boas ações da última vida (o carma), progredindo se foi melhor e regredindo se foi pior. Os hinduístas acreditam que entre as reencarnações sucessivas a alma é punida se o carma for ruim ou recompensada se for bom. Os budistas, que a reencarnação pode acontecer não só na Terra como em qualquer de seis reinos, melhores ou piores segundo tenha sido o carma. O objetivo final nas duas doutrinas é alcançar o estado de repouso, ou nirvana, onde todo o carma foi compensado e o ciclo de reencarnação termina.  O caminho é muito mais complexo do que essa resumida explicação, e deixo para o Mestre Antonio, como tem feito, nos esclarecer sobre ele e me corrigir se preciso.
Modernamente, no Ocidente, a doutrina espírita considera também a reencarnação, e o processo de aperfeiçoamento dos espíritos através de sucessivas reencarnações, neste e noutros mundos, até chegarem ao estado ideal de espírito puro. Ao contrário do hinduísmo e do budismo, segundo o espiritismo o espírito nunca regride de uma encarnação para outra, pode apenas gastar mais ou menos tempo até chegar ao ideal.
A Bíblia Hebraica, que é a fonte do Velho Testamento cristão, fala do Sheol, o lugar escuro para onde vão todos os mortos, independente dos seus feitos, isolados da vida e de Deus. Lá vivem como sombras, entidades sem personalidade. No Talmud, entretanto, que reune as discussões e opiniões dos rabinos através de séculos, já se diz que as almas são julgadas e as puras entram imediatamente no Olam Haba, ou “o mundo depois”. As outras (a maioria) passam por um período onde reexaminam suas ações e se tornam conscientes do que fizeram de errado, e só depois entram no Olam Haba. Apenas aqueles poucos que foram extremamente maus ou induziram seu povo ao mais extremo mal têm sua alma extinta.
Parte dos judeus acredita na reencarnação, em que as almas seriam reencarnadas em novos corpos. Outros não. O assunto foi e ainda é motivo de disputa entre rabinos e estudiosos.
O conceito da Ressurreição tem vários enfoques no judaísmo, e ao longo dos tempos muito se discutiu se a ressurreição seria para todos, só para os israelitas, só para os justos, e o que aconteceria. Modernamente há uma tendência a substituir a ressurreição pelo conceito da imortalidade da alma, que não seria mais sombra como no Sheol.
Quem tiver lido meus posts sobre a Terra Santa vai se lembrar da imagem de um cemitério em Jerusalém, junto à porta por onde, reza a tradição, entrará o Messias, e por isso alguns creem que os mortos ali enterrados ressuscitarão primeiro.
Entre os cristãos, considera-se que a alma é julgada e pode ir para três estados diferentes: o céu, na companhia de Deus eternamente, para os justos, o purgatório, onde os que puderem vão expiar seus pecados até que sejam julgados aptos a ir para o céu, e o inferno, tormento eterno, para aqueles que não se arrependerem ou cujos pecados não têm expiação possível.  O que são exatamente estes estados também dá até hoje margem a muita discussão teológica e filosófica.
Fico com a impressão de que, de todas essas crenças, as que consideram a reencarnação devem trazer mais tranquilidade aos seus adeptos, porque preveem um futuro de certo modo mais familiar para as pessoas do que um que, conquanto desejado, nos é completamente desconhecido na nossa experiência.
Para algumas culturas, lembrar-se dos mortos é uma ocasião triste, para outras uma ocasião alegre. Gosto especialmente do modo em que os mexicanos celebram seu dia dos mortos, que na verdade são dois dias seguidos, começando em primeiro de novembro. Num costume que vem de três mil anos atrás, eles fazem um festival muito animado, porque diz a tradição que neste dia os mortos têm permissão para virem visitar seus parentes e amigos. E por isso as pessoas enfeitam suas casas, fantasiam-se e levam para os túmulos nos cemitérios as comidas preferidas dos parentes mortos. Entre os doces feitos para o dia e para as crianças os mais conhecidos são as caveirinhas de açúcar, lembrança dos tempos pré-colombianos onde os indígenas conservavam as caveiras dos antepassados e dos inimigos mortos.
Bonequinha mexicana da Dama La Muerte (fotografia WBJ)

Esta idéia dos mortos queridos deverem ser sempre lembrados inspirou um dos filmes mais encantadores que já assisti: “Festa no Céu” (no original “The Book of Life”), primorosa animação dirigida pelo mexicano Jorge Gutiérrez. Feito com sensibilidade, uma animação impecável, uma história muito bem construída, desenhos maravilhosos e uma bela trilha musical, o filme consegue mostrar às crianças, sem traumas, a ideia da morte e da relação com os mortos. Derivado do folclore mexicano, mostra o mundo dos mortos dividido entre a “Terra dos Lembrados”, presidida pela simpática figura da Dama da Morte, onde vivem felizes e em festa aqueles que continuam sendo lembrados pelos que estão vivos, e a “Terra dos Esquecidos”, dirigida por seu ex-marido, Xibalba, onde aqueles dos quais ninguém mais se lembra vão se desfazendo devagar e tristemente.
Não vou contar aqui a história, para não estragar para quem quiser ver o filme, mas o trailer está aqui:
O filme está disponível para locação no YouTube, ou nos canais da TV paga. Vale a pena ver. Para nos lembrarmos sempre de quanto é importante manter nossos mortos queridos felizes na Terra dos Lembrados.

10 comentários:

  1. Moacir Pimentel03/11/2017, 12:10

    Wilson,
    Um belíssimo editorial animado, que nos faz viajar por culturas e civilizações as mais diversas tentando responder a uma das mais velhas questões da humanidade. Já se pensou que, ao compreender a própria finitude, o mistério da única experiência que não pode ser transmitida, os humanos mais antigos chamados de Cro- Magnon, deram uma de Augusto do Anjos:
    “Morte, ponto final da última cena, minha filosofia te repele, meu raciocínio te condena!”
    E que então mentimos pela primeira vez inventando tanto os deuses quanto uma vida após a morte. Ledo engano!
    Dona Arqueologia descobriu corpos sepultados intencionalmente em posição fetal e pintados com ocre vermelho juntamente com instrumentos de trabalho, que provam que as populações neandertais já acreditavam, muito antes de nós, que os sepultamentos resultavam em um renascer em outra existência.
    Entre todos os túmulos neandertais já descobertos um é notável. Nas montanhas de Zagros, no norte do Iraque, em uma caverna de nome Shanidar foi encontrado o esqueleto de um macho neandertal, sepultado em uma cova forrada por flores das quais só restara pólen! – é claro -mas que exames de DNA identificaram como plantas medicinais. Especula-se que o neandertal pode ter sido um xamã ou curandeiro, porque só nesses caso e ofício os instrumentos de trabalho necessários para a lida além túmulo teriam sido as plantas e flores. Gosto de imaginar que talvez tenham sido os neandertais quem introduziu nesse mundo o costume de se despedir dos que vão para o andar de cima com flores.
    Desde então, a nossa espécie tem desenvolvido mecanismos estranhos para lidar com a Velha Senhora só que, apesar de riquíssimos em perdas, saudade a gente não sabe, só sente, e nunca aprende. Seu post conversa de um jeito leve sobre como lidar com a dor mais profunda até que um dia ela se torne rotina e na leitura a gente entende o quanto é humana essa coisa de olhar para trás, tentar nos comunicar com os que já se foram, acariciando-lhes as memórias.
    Eu gostei de aprender sobre o Dia dos Mortos mexicano que me remete a uma lenda oriental - não me recordo de que paragens - que também jura de pés juntos que um homem só morre, verdadeiramente, no dia em que o seu nome não for mais pronunciado sobre a Terra. Quem sabe não estamos todos, o tempo todo, ao lembrar, ao “polir os bronzes”, tentando enganar a galera divina, tentando imobilizar os nossos amores que já partiram na estrada definitiva, à nossa espera, até que também nós dobremos a última esquina?
    Finalmente, assistindo o vídeo, exatamente ali no momento em que o Manolo cai sem paraquedas na Terra dos Lembrados e pergunta “onde estou? ” caiu a ficha e entendi que o Orfeu grego acabara de ser demitido da sua condição de mito (rsrs)
    Valeu, obrigado e um abraço!

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    1. Wilson Baptista Junior04/11/2017, 12:04

      Moacir,
      Seu comentário complementa o post, levando ainda mais para o,começo dos tempos a ânsia humana pela não-finitude. Shanidar IV foi primeiro considerado como a primeira evidência de que os humanos ornamentavam seus mortos, por causa das flores, e depois, como você disse, a prova de que já acreditavam na continuidade do espírito.
      E, sim, a história de Manolo é a encarnação mexicana de Orfeu e Eurídice. Com toda a alegria e a picardia de nós latinos que faltou aos gregos...
      Obrigado pelo comentário, e espero que vocês gostem, como eu, do filme.
      Um abraço do Mano

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  2. 1)O primeiro comentário tentei pela manhã, a tecnologia me venceu e ele, o comentário, morreu...

    2) Vamos ver se agora consigo ressuscitá-lo.

    3) Wilson escreveu bem, com propriedade e embasamento.

    4) Morrer faz parte do viver, como gosto muito de rabiscar letras desse lado de cá, outro dia estava pensando.

    5)Quando eu chegar do outro lado vou arranjar um médium para eu contar as coisas como são do outro lado, ou seja, serei mais um... dentre tantos, por isso continuo dizendo, deste lado, ou do outro continuo aprendiz.

    6) Bom fim de semana para os vivos e os mortos...

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    1. Wilson Baptista Junior04/11/2017, 12:07

      Mestre Antonio,
      Que bom que você achou apropriadas minhas tentativas de falar das crenças humanas na perenidade do espírito.
      E estaremos todos (se tivermos essa sorte) à espera das suas notícias de como é de verdade o lado de lá.
      Um abraço do
      Mano

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  3. Heraldo Palmeira03/11/2017, 19:18

    Mano,
    A morte é sempre um enigma para todas as sociedades, embora algumas pareçam lidar melhor com o tema. É sempre difícil para nós, emocionais, nos darmos conta de que perdemos pessoas amadas e que, dentro dos limites do que conhecemos, jamais as veremos de novo. Aí, entra o dom da fé, que nos alimenta a partir da nossa saudade e vontade de reencontro.

    Seja qual for o desfecho, você acertou na mosca: o importante é manter nossos queridos na Terra dos Lembrados. Abração.

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    1. Wilson Baptista Junior04/11/2017, 12:09

      E que sempre façamos, Heraldo, com que eles permaneçam lá felizes à nossa espera, e que os que vierem depois de nós possam fazer o mesmo por nós.
      Um abraço do
      Mano

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  4. Olá Mano,
    Uma vez sabichão...
    Beijoca.

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    1. Wilson Baptista Junior04/11/2017, 12:10

      Você sabe que não... Eu finjo bem :)
      Um beijo.

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  5. Francisco Bendl04/11/2017, 10:22

    Interessante artigo, Wilson, e ao mesmo tempo uma aula sobre como que o Dia dos Mortos é interpretado por vários povos.

    A necessidade de se acreditar na continuidade desta existência terrena tem sido inegavelmente a esperança da maioria dos seres humanos.
    Pouco afeita quanto à sua origem – de onde veio -, a questão fundamental é para onde vai, sem ter a resposta que possa ser denominada como indiscutível, a certa, a inexorável.

    No entanto, desde os primórdios do homem, a crença nessa extensão da vida após a morte tem sido uma espécie de freio quanto ao seu comportamento muitas vezes bestial, animalesco, genocida, pois não sabe se de fato será castigado ou contemplado ou tudo se termina, acaba, o fim absoluto ou retornamos a este mundo para compensar tanto os males cometidos quanto ao que se praticou de útil à humanidade.

    Aplaudo este teu artigo enriquecedor sobre a variedade de interpretações sobre o “post mortem”, que me obriga a copiá-lo e guardá-lo porque uma legítima pesquisa sobre um tema relevante, e que nada ainda sabemos de científico a respeito, independente da fé de cada pessoa se a vida é uma só, se reencarnamos ou não, se castigados ou não, se existe o inferno ou é somente um artifício para conter os mais afoitos, enfim, a gama de variações sobre um tema perturbador, e que influi poderosamente na vida de cada um de nós, indiscutivelmente.

    Excelente trabalho, Mano, pelo qual o meu reconhecimento e reverência a respeito da importância do mesmo, e de prestarmos nossas homenagens aos que já se foram deste mundo e, de onde estiverem, que saibam que nossos pensamentos são dirigidos para eles também, tanto em agradecimento pela vida que nos deram como pelo legado deixado, se mediante exemplos positivos ou negativos, pois os primeiros nos impulsionam a fazer o mesmo e, o segundo, a corrigir os erros cometidos, e que nos servem como limites e parâmetros para erguer a vida para estágios mais elevados de comportamento e trabalho!

    Um forte abraço.
    Saúde e paz.


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    1. Wilson Baptista Junior04/11/2017, 12:20

      Chicão,
      É verdade que nenhum de nós, por mais que procure e estude, tem a resposta indiscutível, e que a esperança de cada um se baseia naquela coisa imensurável, intangível, que se chama fé.
      E só teremos nossa resposta quando chegar o nosso dia, ou, talvez, quem sabe, se o nosso amigo Antonio, quebrando a ordem natural das coisas, correr na frente e puder nos contar :)
      Um abraço do Mano

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