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10/08/2017

Duas de mim


Ana Nunes
Tenho duas de mim.
Tenho eu que espero a lua chegar prenhe de luz nesse céu escuro de cidade, e espero cada dia do mês. Espreito por essas noites afora, de lua nova fugida no preto a lua crescente, casca brilhante de fruta redonda. Antes de dormir abro a janela como uma apaixonada e persigo o seu crescer. Somos Romeu e Julieta pendurados na sacada.
Errante ou previsível, essa lua de branco misterioso prata.
Consulto a folhinha para conferir meus cálculos. E não entendo as gentes que não o fazem e que nem se ligam se uma lua se arredonda lá fora.
E quando ela aparece, mandando na noite, ofuscando estrelas e driblando nuvens, ela se metarmorfoseia em mensagens de mãe ausente. Ausente de mais e de muito!        
E respondo a essas mensagens e envio preces e pedidos. A lua se faz ela, ela que tinha uma janela-pousada certa para essas noites de errância de lua cheia. Penso que ela me ouve nesse rastro de luz. E já não sei se a lua é lua ou mãe perdida ou se ela virou lua só para vir me ver.
E falo da minha saudade enorme, desse vazio de sempre e de um nunca acabar. Conto de um eu que ela não conhece e pergunto se ela gosta de mim assim.     
A última vez que a vi foi também numa noite fria de muita lua. Que ela não viu.
Passo em cada quarto para ver se a lua por ali entrou. E bem cedo, ainda escuro e ainda sem o cheiro do café pó que espera paciente pela água de borbulhas, vasculho o céu procurando essa luamãe cheia de luz... E fico ali me dividindo entre os afazeres de um dia que começa e que, questão de tempo, mais uma vez vai levar minha mãe embora. 
Acredito que ela me vê e me ouve. E me sorri. Por ilusórios e efêmeros momentos estamos juntas de novo.
Mas tenho outra de mim que não sabe nada. Que me desaponta toda lua cheia dizendo que essa lua é apenas a lua. Que não é só minha e nem que por mim apareceu.
Esse eu cruel e aborrecido me chama de Alice das Maravilhas, ri entre triste e debochado e desmancha meu sonho como a espuma de pratos lavados... 
Me deixa triste e sozinha, descosturando costuras de sonhos de um mês inteiro como um pano desfiado. Cato esses fiapos por onde passamos, essa lua mentirosa e eu. Mas esses fiapos não se costuram mais!       
Não adianta mais procurar a mãe porque essa lua bandida agora é só isso, uma lua vadia e audaciosa que entra sem licenças pelas janelas só para iluminar e me fazer pensar.     
E já não sei se bandida é ela que se desdiz ou se bandida sou eu, perdida na construção desse sonho esquizofrênico e nos cacos da verdade sem mistérios. E nesse emaranhado que é a vida fico mais um mês na vigília de outra lua cheia.
De mentiras?   
Ninguém sabe...

Para vocês duas, filhas da lua. As outras Anas da minha mãe.

13 comentários:

  1. Ana, me emocionei ao ler este texto.
    Também persigo a lua, e quando você vier aqui, vou lhe mostrar o que fiz quando da construção da casa só para ver o nascer da lua cheia...
    Beijos...

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    1. Laura,
      Você sabe que seu nome é lindo, não sabe?
      A gente se emociona porque fala de coisas mesmas e divide um pouco as riquezas da vida.
      Preciso muito mesmo conhecer essa sua janela especial para luas cheias! Será uma clarabóia? Sempre tive vontade de ter uma! Sonho antigo.
      Beijos para voce cunhada querida.

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  2. 1) Parabéns Ana, belo texto acompanhado de bela ilustração. Como já falei antes, vc faz poesia na forma de prosa. Seu escrever é todo poesia.

    2)Tb sou ligado na Lua, reverencio-a de acordo com o calendário budista. Cada mês tem um significado.

    3)Bom fim de semana para todos(as) do blog e Feliz Dia dos Pais, no domingo. Não estou falando em data comercial, mas a simbologia do Pai que está nos Céus e tem vários nomes.

    4) E mesmo quem não acredita Nele, Ele abençoa !

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    1. Olá Antonio,
      Hoje vou no esquema :
      1) Obrigada, obrigada. Assim você me estraga, fico "cheia de si".
      2) Quero saber desses significados lunares. Pode?
      3) Feliz dia dos Pais para todos nós, junto ou longe deles. Muitos somos pais e podemos pagar os juros pelo muito que ganhamos!
      4) Você mal falou e já me senti abençoada pelos meus queridos, pelos amigos, pelo sol e pela chuva e pela lua, claro. E por cada alimento que brota dessa terra estranha!
      Gratidão. Essa palavrinha é muito linda porque carrega em si humildade (mas nunca "a outra face", por favor), carinho, reconhecimento e vontade de partilhar.
      Até mais.

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  3. Moacir Pimentel10/08/2017, 18:34

    Caríssima Donana,
    O que dizer dessa sua linda prosa/ poesia além de parabéns? Não, ela não me espanta com a beleza, ora mais já conhecida, das suas metáforas, nem me parece estranho que a senhora modestamente seja duas - estou acostumado com mais multiplicidade nas minhas praias (rsrs) – nem que tenha, como diz a Cecília, fases adversas "de andar escondida e de vir para a rua". Também estou grisalho - quase branco! - de saber que a lua mente, principalmente no ditado popular popular e nos céus da t'rrinha onde ela quando é crescente desenha um D e quando está decrescente se pinta em um C. Sempre fui "perseguido" com informações das andanças lunares pelas mulheres da minha vida, desde uma marchinha que minha mãe cantava jurando que a lua era "dos namorados” passando pelo lado escuro dela com a noiva até a "Lua de São Jorge, lua maravilha, mãe, irmãs, mulher e filhas de todo esplendor". E da minha varanda a gente bem que acredita.
    Mas jamais havia imaginado - e me surpreendi! - com a sua belíssima "luamãe". Deixa a gente mareado o jeito como a senhora fala com ela, assim, tão de perto, tão exata, tão amiga, tão filha da lua e da senhora sua mãe. Confesso que não aprendi ainda a conversar sobre a minha, a mencioná-la sem esforço, a chamá-la pelo antigo apelido familiar sem mudar de tom. Queria poder reeditar nossas conversas e silêncios, risadas e viagens, escrever sobre tantas coisas boa que vivemos juntos. Mas não posso. Que inveja da senhora, Donana. Mas não se preocupe. Como diz a juventude é "inveja boa".
    “Até mais”

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    1. Olá Moacir,
      Lindo o seu comentário. Talvez um pouquinho triste. Siga muitas luasmães que um dia vocês vão trocar memórias e querências de amor.
      Hoje fui duas mas você não tem idéia do potencial... Depois de descobrir que a coerência nem sempre me servia bem, chutei o balde. E me deixo multiplicar na correnteza do vento. Desde então sou mais feliz! Acho que isso é viver.
      Obrigada,obrigada. Até.

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    1. Querido cunhado,
      sempre nós, vivendo e dividindo.
      Beijo.

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  5. Flávio José Bortolotto11/08/2017, 12:23

    Prezada Autora Sra. ANA NUNES,

    Sua atividade criadora Artística, tanto na Literatura como Pintura, etc, são muito grandes.
    Sempre é agradável ler seus Escritos e apreciar seus Quadros.
    Pensei muito antes de escrever esse comentário porque a responsabilidade é grande num Espaço onde Escrevem a Sra. MARIA LAURA BAPTISTA, o simpático e culto Prof. ANTÔNIO ROCHA, o Viajante, conhecedor mo Mundo e mais ainda da Alma Humana, que também Escreve maravilhosamente bem, Sr. MOACIR PIMENTEL, e todos os OUTROS(AS).
    Me animou muito a sua declaração de que esse Espaço "Conversas do MANO" é para compartilhar, e assim os que Escrevem muito bem, e nós outros, compartilhamos. E no fim a média é muito boa.

    Saudações.




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    1. Olá Flávio Bortolotto,
      Bom te ver aqui!
      E mais uma vez se excedendo nos elogios. Obrigada, obrigada.
      Você tem razão, os que escrevem os textos por aqui são bons de mais. Não falo de mim, sou errante e esporádica! Mas os comentaristas... hum! São de dar água na boca e ansiedade quase incontrável pelos próximos comentários. E falo dos que escrevem e comentam e dos que só comentam. É um compartilhar que eu sinto as vezes vontades de réplicas e de tréplicas, nos comentários para mim e também para os outros. Eu que me seguro com unhas e dentes.
      Continue, sem pudores, a compartilhar aqui. Só temos a ganhar!
      Bom sábado. E domingo também.
      Até mais.

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  6. Francisco Bendl11/08/2017, 17:28

    Eu não poderia deixar de registrar a minha admiração pelos dotes literários e artísticos da Ana, esposa de um grande amigo e cavalheiro, Wilson.

    Não basta ao escritor ou escritora ter imaginação.
    Faz-se necessário que saiba expressar os motivos pelos quais a sua mente produz, sonha, arquiteta, e consiga transmitir a seus leitores e admiradores seus sentimentos, a sua sensibilidade, o seu modo de entender o mundo e a si mesma.

    Neste aspecto, de narrativas refinadas, sofisticadas, de grande intensidade, a Ana desperta no seu público a mesma inspiração que a levou a registrar os momentos enternecedores que a envolveu, entretanto, sem que tenhamos este talento e vocação ímpares, este dom magnífico de nos levar junto para suas várias luas, Ana nos deixa como satélites da sua criatividade, do seu prodígio como escritora, determinando que circulemos ao seu redor pela sua poderosa atração gravitacional à espera de mais uma crônica de sua autoria!

    Assim, de conto em conto ou de narrativa em narrativa ou de crônica em crônica ou de ensaio em ensaio, o ciclo se completa quando ela nos brinda com outro artigo memorável!

    Um forte abraço.
    Saúde e paz, extensivo aos teus amados, Ana.

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    1. Querido amigo dissidente,
      Se tudo que você fala da minha escrita for verdade, se consigo mesmo passar o que sinto quando escrevo, e as vezes tenho sérias muito sérias dúvidas ( hesito em passar para o redator frequentemente), já ganhei meu dia, meus mês, meu muito.
      Queria dizer que seu comentário , independente de ser sobre mim, está belamente escrito, mas tenho medo de ser muuuuito mal interpretada. Bem...de qualquer modo já disse mesmo.
      Saúde para arrumar a casa e paz para desfrutar dela.
      Até mais.

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  7. Heraldo Palmeira14/08/2017, 12:07

    Ana,
    Eu menino, meu pai (já doente da última doença) ficava ao lado da minha rede – prazer especial depois da volta da escola – lendo para mim as notícias da Apollo 11. Sim, da lua do homem, aquela deserta, de crateras, poeira lunar, pedras e terra estranhas, bandeira americana sem vento, marcas de bota no solo, gente duvidando da viagem...

    “É um pequeno passo para um homem, um grande salto para a Humanidade”! O primeiro homem a pisar na lua, comandante da missão, que disse a frase poderosa, hoje não está mais aqui e flutua para o esquecimento, como é comum acontecer aos humanos que saem das suas épocas naturais. Ainda tem gente como eu que lembra da face e do nome: Neil Armstrong. E dos outros dois, Edwin Aldrin e Michael Collins - esse, um azarado que, como piloto do módulo de comando, esteve lá mas não pôde descer ao solo lunar. Juro que se eu estivesse na missão, teria desobedecido as ordens e faria o parceiro sujar as botas também. E resolveria tudo quando voltasse à Terra.

    A Lua, a nossa, dos nossos, a dos mistérios, a de São Jorge, a dos poetas, dos sonhadores, dos lunáticos, ora dourada ora prateada, segue lá firme, todos os dias, eterna, ora exibida ora escondida, nova, crescente, meia, cheia, minguante. Ciclo perfeito regulando as marés, mostrando que o céu é real, nos fazendo crer que nem tudo está perdido.

    Claro que eu adorava as histórias e notícias do meu pai querido, mas duvido que aquela lua dos astronautas seja a mesma que se esparrama como luar do sertão, a que nos serve de portal que guarda um acesso imaginário aos nossos queridos e às nossas saudades, aos nossos sonhos, que nos faz múltiplos como você tão bem (d)escreveu.

    No caso da lua, não jogo no timaço da Nasa, prefiro a camisa surrada do time de várzea cujo hino diz "Mente quem diz que a lua é velha!".

    Como você, tenho cá meus escritos lunáticos, de noites de observação, como uma que fiz aqui mesmo na minha vila natal - onde estou agora para mais uma festa da minha Mãe padroeira. Quem sabe publico qualquer dia, depois de limpar a poeira lunar?

    Que todas as luas de todas as noites, exibidas ou escondidas, sigam nos protegendo e nos permitindo sair por aí, flutuando à cata de quem amamos ou pretendemos amar. Inclusive do amor que nos acende a alma, já que a lua também é dos namorados. Até mais.

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