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fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Não foi
tarefa fácil chegar na Oficina Francisco Brennand há poucos dias atrás, numa
segunda-feira nublada. Além do trânsito neurótico eu precisei driblar a agenda,
mas, estando na cidade dos arrecifes e, o que é mais grave, lendo e escrevendo
sobre o artista, valeu a pena. Testemunhar mais uma vez a sua imensa obra era
preciso. Eu não poderia “conversar” a respeito de Brennand sem ter estado na
Várzea, e tido um novo diálogo com as esculturas e telas do artista.
A obra de
Francisco Brennand ultrapassa a biografia do criador, sobre a qual já
conversamos, e continua sendo definida por sua insaciável curiosidade e por
suas inquietudes intelectual, filosófica e literária. Não é tarefa fácil tentar
“traduzir” a vera “floresta escura” de símbolos das suas realizações como
escultor e pintor.
Aliás é
preciso atravessar alguns quilômetros - se não de floresta pelo menos de Mata
Atlântica - por uma estradinha de barro castigada pelas chuvas para chegar ao
santuário do artista. Nessa trilha enlameada, no entanto, ele não se perdeu,
não tomou o “caminho errado” uma das metáforas usadas por Dante no primeiro
Canto do Inferno, naquele terceto que deve ser dos mais conhecidos da
literatura ocidental...
“Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me
numa selva tenebrosa,
Tendo
perdido a verdadeira estrada”
Aos quarenta e quatro anos,
exatamente na metade da idade que hoje tem, em 1971, de volta às ruínas da
antiga olaria, Francisco Brennand reencontrou o seu menino e, desde então,
segue no caminho certo.
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fotografia Moacir Pimentel |
“Confesso
que eu mesmo comi barro, como toda criança. Não existe o provérbio do
amarelinho comedor de barro?”
Quando escuto
falar sobre a fantástica obra de escultura de Francisco Brennand, via de regra
deparo-me com dois grandes equívocos: que ela teria cores regionais e que seria
erótica.
Tais
esculturas são nordestinas na origem sim: o barro pernambucano. Mas as ideias e
temas que as originam vão muito além do regionalismo e até mesmo da
nacionalidade.
Há artistas
que não cabem na sua obra, transbordam-na, por mais obras que façam e caminhos
que inventem como, por exemplo, Pablo Picasso, que dizia que os seus quadros
eram o seu diário e que passeou por todos os ismos, indo e vindo, sempre
experimentando como bem entendeu, absolutamente indiferente ao que dele dizia a
crítica.
O
pernambucano Francisco Brennand também não cabe nos rótulos que lhe inventam
nem no que faz, por mais que o faça e olha que não tem feito pouca coisa, em
diversas linguagens: a da cerâmica, a da escultura, a da pintura, a do desenho
e até mesmo a da arquitetura, na transformação que operou na antiga fábrica de
cerâmica da família, tornando-a um museu para a sua arte
A primeira
escultura nascida do cinzel do pernambucano - então com 19 anos! - foi
concluída em 1946 e chama-se A Cabeça de Deborah. Trata-se de um perfil da
então namorada e futura esposa do jovem artista, a poetisa Deborah Moura
Vasconcelos, que o jovem Brennand conhecera nas bancas escolares do Colégio Oswaldo
Cruz e para quem também ilustrava os versos, publicados no jornal literário do
colégio, dirigido pelo amigo Ariano Suassuna.
O rapaz
chegou a ter aulas de escultura com Abelardo da Hora e de pintura no atelier do
pintor Murillo la Greca, mas foi o pintor Cícero Dias que, maravilhado com o
talento promissor do aluno, convenceu-o a se aperfeiçoar na França.
Sabemos que
em 1947 Brennand ganhou o primeiro prêmio no Salão de Arte do Museu de
Pernambuco, com essa escultura e que bisou o feito, em 1948, com uma pintura,
de nome A segunda Visão da Terra Santa, inspirada pela beleza das terras do
antigo engenho São João. No ano seguinte, o talentoso artista casou-se com a
linda poetisa e juntos mudaram-se para Paris.
Corre a lenda
que formavam um casal de rara beleza, ela miúda e delicada ele imponente do
alto de seu um metro e oitenta e sete centímetros.
Ao chegar na
Europa, Brennand estava convicto de que o seu destino era a “grande arte”, a
pintura a óleo sobre tela e a escultura em mármore. E então, de saída, percebeu
que não era bem assim - logo na primeira exposição que visitou em Paris, deu de
cara com nada menos do que oitenta obras cerâmicas de Pablo Picasso.
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Picasso - Cerâmicas |
Podemos
afirmar que ali, diante do barro transformado em arte sublime, enquanto
Brennand contemplava aquelas cerâmicas feitas por Picasso em Vallauris, no sul
da França, foi selado o seu destino. Em seguida Brennand estudou as viagens por
paragens cerâmicas realizadas por Chagall, Matisse, Braque, Gauguin e, muito
principalmente, Miró. E, é claro, ele foi muito marcado pelas experiências
surpreendentes de Jean-Michel Rolon, ao visitar a Capela de Saint-Paul de
Vence, onde se enamorou pelas admiráveis obras modernas projetadas pelo artista
belga, durante trinta anos, pelas paredes e tetos de uma construção de vários
séculos de idade.
Brennand
chegou a voltar ao Brasil mas já em 1952 decidiu aprofundar-se nas técnicas da
cerâmica, fazendo um estágio em uma fábrica de cerâmicas majólicas, a faiança
italiana do Renascimento, na cidade de Deruta, na província de Perúgia, na bela
Itália. Durante esse estágio, Brennand iniciou suas experiências com o uso dos
seus famosos esmaltes cerâmicos e queimas sucessivas da peça, em temperaturas
variadas. A cada entrada da peça no forno, é aplicada uma camada diferente de
esmalte grosso, o que dá à superfície uma grande variedade de cores e texturas.
Antes da
temporada italiana, é preciso registrar que, em 1950, Brennand resolveu ver de
perto o trabalho de Antonio Gaudí. De queixo caído diante da Casa Batló, em
Barcelona, segundo suas próprias palavras, Brennand perguntou ao motorista do
táxi que o apresentava à cidade:
“Que diabo é
ISSO?”
“ÀQUILO”
seguiram-se a Sagrada Família e o Parque Guell,
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imagem barcelona-city-travel.com |
e todas aquelas formas curvilíneas,
coloridas e estranhas, os dragões, os azulejos fragmentados em mil pedaços, o
ferro forjado e a cerâmica onipresente.
Como se diz
em Pernambuco: “Danou-se!”
Brennand
resume melhor do que eu a narrativa basca:
“Dois fantasmas me acompanham nesta vida: o de
meu pai e o de Gaudí.”
Mas também é
evidente, no trabalho do pernambucano, a influência das pinceladas de Matisse e
a presença de Gauguin, cujos quadros chegam a “inibir” Brennand. Ele e Gauguin
têm ainda em comum a opção pela solidão criativa. Ambos se isolaram do mundo,
como reclusos, Paul nos mares do Sul e Francisco à beira do Rio Capibaribe em
meio à natureza luxuriante.
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Brennand - Adão (fotografia Moacir Pimentel) |
Sob a sua
batuta as ruínas da antiga olaria ganharam um quê transcendental desde que
foram tomadas de assalto por uma legião de estranhas figuras nascidas dos
fornos do artista mas que parecem fugitivas de templos pagãos, não se sabe se
egípcios, babilônicos ou gregos.
As esculturas
que nos recebem naquelas paragens não são deuses, são criaturas nunca vistas
antes, que possuem traços em comum com as gentes, a flora e os animais, porque
emergiram do inconsciente profundo do artista, dos seus labirintos de tantas
entradas e saídas, de suas fantasias, de seus sonhos e pesadelos, de desejo, de
culpa e de medo.
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fotografia Moacir Pimentel |
Se passou
pela cabeça para lá de criativa de Brennand erguer para si mesmo algo parecido
com uma catedral, então ele imaginou-a como uma ode ao mistério, uma sinfonia
às “estranhezas”, aquelas que são belas por serem terrivelmente verdadeiras.
Acontece que
Brennand tem essa coisa chamada talento. E sucede que o talento é só uma
potencialidade. Para ser concretude, para se tornar efetivo, o talento depende
do dono, da formação e das opções intelectuais, ideológicas e estéticas de quem
o possui.
Na arte desse
homem, nascido de uma família tradicional que dos canaviais chegou à fabricação
urbana de cerâmica, ressoam os ecos aristocráticos dessa herança que ele renega
nas figuras inusitadas que inventa e que certamente horrorizariam a seus
antepassados.
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fotografia Moacir Pimentel |
Talvez um
poema da lavra de Brennand chamado Feliz Desaniversário nos ajude a perceber o
sentido dessa inscrição com a qual nos deparamos de cara, logo que chegamos à
alameda que conduz à Oficina:
“Oh, o
horror... o horror!...
Tudo embola
no extravio
Do pecado.
Como quem
esqueceu os trapos de uma branca
Túnica que
nos cobriu
Na saída dos
dourados portões do paraíso.
Nada escapará
Desse oráculo
contrariado:
Nenhum só dos
homens,
Nenhum só dos
anjos,
Nem mesmo os
deuses que se afastam
Em silêncio”
Não, não nos
apressemos ao julgar o conjunto de figuras infelizes de Brennand como se fosse
um filme de terror habitado por mortos-vivos. O artista é só um “oráculo”,
torcendo para ser contrariado. Há lirismo na história que ali nos é narrada, na
qual, é claro, encaramos a vida e a morte, Eros e Tanatos. Como dizia o poeta
Charles Baudelaire, frequentemente citado por Brennand nas suas entrevistas:
“Um dos maravilhosos privilégios da arte é que a
expressão de horror e dor pelo artista, se rítmica e cadenciada, enche de calmo
júbilo o espírito.”
O fato do
artista continuar criando aos oitenta e nove anos os quadros de uma exposição
que fará no próximo mês de dezembro, nos indica que aconteça o que acontecer o
sol continuará nascendo no leste. Brennand, ao olhar para o presente e tentar
materializá-lo, enxerga todas as coisas: as passadas e as futuras. Talvez por
isso planeje revestir com sua bela cerâmica o frontispício da velha fábrica do
pai e nela - de um jeito que nos surpreenderá! - personificar a Velha Senhora
ao lado dos versos de Salvatore Quasímodo:
“Cada um está
só sobre o coração da terra
traspassado por um raio de sol:
e de súbito anoitece”.
Ora, já que
os homens - entre eles os artistas - se inventam de acordo com suas
possibilidades e necessidades, concluímos que se Francisco Brennand, mesmo
sendo quem é, tivesse tomado outros rumos diversos dos que escolheu, seria um
artista diferente daquele que hoje conhecemos, há mais de quarenta anos
sonhando no silêncio de seu refúgio.
Enquanto
Brennand tiver saúde, a Oficina continuará um trabalho sem final, pois cada
peça soma e se integra às anteriores potencializando a força e o sentido de
cada uma e do conjunto onde a natureza também faz arte. Aquele espaço é o
projeto de vida do seu dono e a sua única ambição é continuar, aos poucos, a invadi-lo
mais e mais com suas obras, descendo pela relva afora como as suas serpentes,
até à beira do rio Capibaribe, que corta a propriedade.
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fotografia Moacir Pimentel |
Confessadamente
ignorante de todas as religiões a não ser a católica, Brennand escolheu o arco
e flecha de Oxóssi como marca da sua Oficina, como vimos na foto da “porteira”
de entrada.
Muitos
insistem que essa escolha de um símbolo do Candomblé seria um prova inconteste
da “brasilidade do artista”. No entanto, Brennand escolheu a imagem pela
verticalidade, para contrastar com a orientação arquitetônica da Oficina que,
ao contrário, é horizontal. As setas apontam hoje para o céu por todos os lados
da Várzea, porque têm um sentido vertical, que Brennand identifica com a tensão
e a virilidade, o sentido da vida e do crescimento. Ao saber através de um
amigo que Oxóssi é um orixá caçador, à procura pelas florestas da vida da caça
que antemão sabe que nunca encontrará, o artista filosofou:
“Essa caça não é o anseio desesperado do ser humano
em busca da verdade, da beleza e até do Absoluto? Então eu verifico o quanto
minha visão havia se identificado com as intenções obscuras existentes nessa
“marca”, contida geometricamente no interior de um triângulo equilátero, uma
forma perfeita e de alta espiritualidade, pois sendo uma forma fechada é
símbolo de conclusão”.
O fato é que
nas últimas três décadas, a cada vez que chego naquela Várzea, a encontro
mudada. Foi assim com o Jardim de Burle Marx - de dois mil metros quadrados -
plantado em 1992 e mais tarde com a Accademia, que foi erguida em 2003
veneziana na origem e serena nas linhas, no local onde antes o barro era
armazenado. Nela se encontram a pintura e o desenho de Brennand, seus papéis e
telas, que antes ele não tinha onde expor na Oficina.
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fotografia Moacir Pimentel |
Do nada
também surgiu, em seguida, o Templo do Sacrifício, uma denúncia à morte das
culturas e civilizações antigas latino-americanas. Neste novo espaço figuras
gêmeas enfileiradas sobre as paredes laterais são os “sacrificados” enquanto
que no centro da instalação e atrás de grades, moram o azteca Montezuma e o
inca Atahualpa, tão sofridos e contidos que parecem ecoar aquele grito icônico
de Edvard Munch.
As diversas
linguagens do artista estão presentes em todas as esquinas: no Auditório Villa
Lobos onde são dadas palestras, no monumento de nome Teorema, no imenso Estádio
onde são realizados eventos, nos mínimos detalhes do Café - onde até a mais
simples das sobremesas pernambucanas, a cartola que mistura a banana, o queijo
de coalho, o açúcar e a canela é feita por quem faz da cozinha outra arte - e
da Loja onde é comercializada a cerâmica utilitária e decorativa de grande
beleza, que leva a marca da Oficina.
Algo de
místico está presente também, no Anfiteatro cuja mandala central desenhada no
maravilhoso piso é rodeada por degraus que nos fazem pensar nos velhos banhos
romanos.
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fotografia Moacir Pimentel |
Isolado do mundo nessas paragens, saindo muito
raramente da propriedade no volante de carangos de maioridades conquistadas,
foi envelhecendo o criador de “estórias” sempre a trabalhar mergulhado no
silêncio do seu espaço, criando novas esculturas e pinturas - bem distintas das
produzidas por ele em outras décadas - para misturá-las com as máquinas
antigas, por exemplo...
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fotografia Moacir Pimentel |
Com as pedras
mós de remotos engenhos, os tijolos carcomidos pelo tempo, os antigos fornos
convertidos em pequenos santuários ou capelas e até com aquele triturador de
argilas que hoje se chama, do lado externo, a Cúpula Azul...
No principal
pátio adjacente à Oficina o artista criou um conjunto que tem a magia de locais
sagrados muitíssimo antigos, no qual misturou lagos, totens, colunas, deusas,
pássaros, batráquios e santos, entre altos muros inteiramente revestidos em
cerâmica e uma arquitetura híbrida e meio delirante à qual não falta sequer o
arco romântico. O impacto é indizível.
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fotografia Moacir Pimentel |
Diz o
artista:
“As ruínas balizaram tudo. As ideias me chegavam
à medida que o trabalho de restauração progredia. Por isso o lugar é uma
Oficina, palavra originada de ofício, querendo dizer lugar de trabalho e
evitando o francesismo ateliê”.
O ofício de
Brennand pode até parecer glamoroso para os menos atentos mas, ao contrário, a
Oficina é o retrato de um trabalho árduo e solitário. Nos onze primeiros anos
de reclusão voluntária, o artista confessa que ali foi visitado por uma única
criatura: o pai. Pudera! Há quarenta anos os muitos quilômetros da estradinha ainda
hoje de barro que serpenteia pela mata até a propriedade dos Santos Cosme e
Damião, debaixo de chuva deveriam ser intransitáveis.
Talvez a obra
de Brennand também tivesse sido outra se esse pai fosse diferente, menos
presente na vida do filho. E parece que estamos diante de um paradoxo. Pois se
a arte deste homem tem por alicerces - além, é claro, da sua personalidade
inquieta e criativa - as ruínas da olaria onde passou a infância, então não
tivesse ele sido o filho de um usineiro que, por acaso, também era um
fabricante de cerâmica, não teria sido capaz de construir o seu próprio mundo
da lua e de desenvolver todas as suas promessas artísticas.
Estamos
escrevendo em círculos nos quais o Universo parece ter conspirado para juntar
as pontas soltas do talento deste artista. Mais do que uma olaria em ruínas, o
pai deu ao filho o seu irrestrito apoio e asas para que pudesse voar, como se
pode constatar por esta carta:
“Recife, Engenho São João, 1978
Francisco,
Você, o arqueólogo que desenterrou peças de
milenares feitios, e deu às mesmas o seu caráter pessoal, no poderoso cadinho
do seu cérebro criador,
Você, que teve a inspiração de conservar inteiro,
ora escondido, ora bem visível, o erotismo, que não morre, enquanto existir o
homem sobre a terra,
Você, que transformou num templo de artes
plásticas essas velhas e desmanteladas ruínas de uma antiga olaria, hoje, um
verdadeiro e inigualável museu,
Agora, em Camocim de São Félix, esse pequeno
paraíso, de belíssima paisagem, onde impera o silêncio, tão propício para a
criatividade,
Você, volta a pintar. E que pintura! A meu ver, a
melhor que tem saído da sua paleta. Pintura cheia de força, de maravilhoso
colorido. Não sendo eu um expert, tenho a sensibilidade para sentir o que
verdadeiramente é belo (...)”
Sem um pai
desse tamanho talvez Francisco Brennand fosse sim um dos grandes PIBs
pernambucanos, jogando tinta nas telas nas mornas horas vagas entre suas
atividades empresariais. Nos intervalos dedicados a bocejar um hobby na
atmosfera tropical brasileira, com o gosto da terra vermelha de mata, com o tom
do mormaço das praias e com as cores suculentas e quentes dos mares, das flora
e fauna do Recife.
Brennand, em
vez, o fruto inevitável dessa história pessoal e familiar mas somado ao
resultado de sua capacidade criadora e de uma personalidade forte e original,
tornou-se um grande artista. Por isso, hoje quase nonagenário, o último dos
herdeiros da falida aristocracia canavieira pernambucana está ainda “comendo
barro”, sozinho, “sequestrado” por sua arte, ocupado em povoar até a ribeirinha
o mundo onírico que inventou para lhe servir de santuário...
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fotografia Moacir Pimentel |