Moacir Pimentel
Este quadro chama-se A Vista de Toledo e pertence ao Metropolitan Art
Museum de Nova York e, corre a lenda, foi a tela predileta do escritor
americano Ernest Hemingway.
É uma vibrante pintura moderna, certo? Errado! Foi pintada na Idade das
Trevas, mais exatamente em 1596, e trata-se de uma pintura de paisagem com uma
dimensão espiritual, que retrata a visão que tinha de Toledo o pintor El Greco,
“O Grego”, assim chamado por seus contemporâneos porque era grego e tinha um
nome de difícil pronúncia para italianos e espanhóis: Doménikos Theotokópoulos.
Nesta tela o pintor eternizou não apenas Toledo mas o imenso amor que dedicava
à cidade que o abrigara. O Grego, com estas tintas, pintou uma cena exatamente
no momento anterior a uma tempestade, onde podemos ver o céu em guerra com um
sol que mal se segura e perceber que rola um diálogo entre o céu e a terra.
Esse é um momento portentoso no qual a voz de Deus fala através das forças da
natureza e é traduzida pelo pináculo da Catedral.
Quem conhece Toledo percebe que o Grego mudou as posições reais da
Catedral e da fortaleza de Alcázar, com o objetivo de aumentar o impacto da
composição fazendo com que a torre do templo conduza a energia da cena para os
edifícios circundantes.
É esse tipo de experiência intensificada do Grego, em suas pinturas, que
faz tanta gente se perguntar se ele tinha experiências alucinatórias ou
místicas com o divino. Talvez sua revelação mais acabada seja essa visão de
Toledo. A melancolia está gravada nesses difíceis cumes, nessas muralhas de
sonho e nas paredes medievais, que formam uma paisagem que é verde, mas que, ao
mesmo tempo, é ameaçada e transfigurada pelo céu azul, preto, cinza e prata.
A pintura mostra um compromisso apaixonado com a cidade que o abrigou,
mas também uma distância e um mau presságio. É como se o lugar fosse a última
cidade na terra.
Este quadro é tão subjetivo quanto a Noite Estrelada de Van Gogh. A
personalidade da pintura do Grego é o que é irredutível - esta é visão dele de
Toledo - única, original, diferente das nossas e de qualquer outra. ISSO, a
visão dele e a comunicação dela é... ARTE.
Em 2014 fomos informados por folders ilustrados com essa bela imagem, que
nos foram entregues na recepção do nosso hotel em Madri, que estava sendo
realizada em Toledo, uma imperdível exposição do pintor El Greco, em
comemoração da morte do artista.
Disseram-nos que os mais de um milhão de amantes da arte que estavam
sendo esperados durante a primavera e o verão espanhóis, poderiam não só
contemplar as obras do artista que moram em Toledo há séculos, mas também
apreciar o trabalho dos antigos mestres que as haviam influenciado e, bem
assim, as telas dos modernos artistas influenciados por Doménikos
Theotokópoulos.
Nesta nova exposição, nos informaram, os visitantes poderiam ver reunidas
além das obras pertencentes ao próprio acervo de Toledo, onde o pintor vivera e
morrera, mais de uma centena de obras trazidas de outras cidades espanholas, do
Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos, México, República Tcheca e Suíça, quase
todas elas retiradas de Toledo na diáspora das obras do Grego, ocorrida no
início do século XX.
Nós percebemos que reunir tantas pinturas de grandes museus do mundo e de
coleções particulares não deveria ter sido uma tarefa fácil, mas sim um projeto
ambicioso e caro, que consumira muito planejamento e quatro anos de trabalho e
que, é claro, não deveríamos desperdiçar a oportunidade de ver a exposição.
Escusado dizer que dois dias depois estávamos a caminho de uma aventura
toledana.
E, apesar do muito que aprecio dirigir por aquelas paragens, para se ir a
Toledo ver um evento que se realiza no seu centro histórico, dentro de suas
muralhas, um carro seria um estorvo e o melhor meio de transporte eram mesmo os
trens, que saindo da Estação Atocha, de meia em meia hora, nos levaram em não
mais do que outra meia hora, para a lindíssima cidade que por nós esperava a
apenas setenta quilômetros da capital da Espanha.
Na chegada um táxi foi uma boa ideia, pois embora eu ainda viaje leve e
mesmo que minha mochila hoje tenha desenvolvido rodas, os hotéis em Toledo
costumam estar nos seus altos cumes ou charmosos arrabaldes.
Depois de deixar a bagagem no hotel nos dirigimos à Praça Zocodover,
mouríssima, que em idos tempos abrigava o maior mercado local e ainda hoje é
palco para as grandes festas da cidade, como a do Corpus Christi, na qual as
fachadas góticas são enfeitadas por tapeçarias indizíveis.
A praça, hoje rodeada por esplanadas que nos convidam ao fare niente,
ainda é um dos centros vitais de Toledo, um triângulo onde se concentra a
movida nos cafés e bares de tapa debaixo de arcadas. Numa das suas laterais
está o Museu da Santa Cruz.
A exposição estava sendo sediada no Museu, mas não apenas. Fomos
informados que os quadros estavam em exposição por diferentes locais espalhados
por Toledo e conhecidos como "Os Espaços El Greco", proporcionando a
quem os visitasse uma visão aprofundada sobre onde e como o Grego realizara seu
trabalho.
O mais notório desses recantos do Grego em Toledo era a sacristia da
Catedral de Toledo, onde há séculos reside O Espólio, um quadro enorme, de mais
de três metros de altura, no qual Jesus está sendo desnudado de suas vestes
vermelhas, para ser colocado na cruz.
Mas também era obrigatória uma visita à Capela de São Tomé que emoldura
aquele que talvez seja o mais famoso El Greco do mundo: O Enterro do Conde de
Orgaz. E no Convento de Santo Domingo, o Velho, não se podia deixar de ver a
Trindade e a Assunção da Virgem.
Já no lindo Hospital Tavera, fora dos muros de Toledo e depois da Porta
de Bissara, era imperdível a contemplação de um visionário Batismo do Cristo e
de um São Pedro em Lágrimas capaz de comover corações de pedra.
Sem falar, é claro, da casa onde o pintor viveu e morreu transformada no
Museu El Greco para guardar os retratos os trabalhos dele como retratista, nos
quais, diferentemente das cenas bíblicas e das imagens de santos, o Grego era
mais fiel à realidade, si, pero no mucho.
Mas todas essas maravilhas já eram nossas velhas conhecidas. A nossa
intenção era constatar visualmente as digitais dos grandes mestres no trabalho
do Grego e as dele nas obras dos artistas que vieram depois, e, principalmente,
como a exposição nos desafiava, descobrir as sementes da modernidade na obra do
artista.
Durante séculos, esse pintor renascentista permaneceu tão obscuro quanto
os seus céus. Ninguém estudou seu trabalho surpreendente, nem mesmo o seu único
filho - o também pintor Jorge Manuel - e suas telas ficaram dependuradas no
alto dos altares das catedrais góticas ou empoeiradas em conventos sombrios e
pouco comentadas em museus espanhóis. Até que no século XIX os pintores
modernos redescobriram o artista que entre 1577 e1614, ali em Toledo, produzira
o seu melhor.
Não nos causou espanto que a cidade de Toledo – que fervilhava de gente!
- estivesse comemorando com tanta pompa o 400º aniversário da morte do seu mais
famoso residente com uma série de exposições, conferências e concertos e
instalações na cidade murada.
Pudemos apreciar reunidos em Toledo quadros estupendos como A Adoração
dos Pastores de férias da coleção de arte antiga do Palácio Barberine, em Roma;
São Pedro e São Paulo recém chegados do Museu do Hermitage de São Petesburgo; a
Adoração do Nome de Jesus enviada pela National Gallery de Londres; o Cristo na
Cruz com Dois Doadores - isto mesmo, dois poderosos de Toledo em vez dos
ladrões de praxe - representando o Louvre e, cedidas pela National Gallery de
Washington, o São Martinho e o Mendigo, a Purificação do Templo e o Laocoonte
vindos da National Gallery de Washington. O estranho Laocoonte merece atenção
de observadores que buscam o inédito.
El Greco, que começou a encontrar sua genialidade nas últimas convulsões
serpentinas da Renascença, nas suas telas, geralmente nos ergue do nosso nível
terra, animal, e vai nos transmutando, nos elevando, passando por céus
violáceos, estranhas nuvens, asas e figuras santíssimas, subindo até o topo de
suas altas e compridas obras, onde geralmente encontramos o cerne aparente
delas.
É como se, com o Grego, a gente estivesse em movimento constante, para o
alto. Ele é um titeriteiro, um ilusionista, um criador de figuras que nos guiam,
parecendo servir apenas para indicar-nos o caminho. O dele. À sua maneira. Ou
seja, pense em um Grego manipulador.
O quadro acima, A Virgem e o Menino, com Santa Martina e Santa Agnes,
recém chegado da National Gallery de Washington na exposição, não me deixa
mentir. Nós começamos a conhecê-lo a partir do pensativo leão ao lado da
primeira santa e do cordeiro que se equilibra, em uma pose forçada, no braço da
segunda. A palma do martírio de Martina serve de baliza, assim como os dedos
longos e inconcebivelmente esguios de Agnes.
E então o pintor força os olhos de seu observador a subir pela intensa
espiral das roupas de Maria - mantida no centro do palco pictórico pelas
estranhas nuvens do pintor - e prosseguindo pela curva do manto, passando pelo
menino Jesus e, acima dele, chegando à serenidade oval no rosto mariano. As
figuras pelos cantos apenas rezam, de modo a manter-nos no caminho certo. E
esses personagens alongados, sempre se retorcendo para o alto, as cores
intensas e incomuns, o ardor e a energia combinam-se para criar um estilo
totalmente distinto e individual.
Só que, com o Laocoonte, é diferente. A tela, ao contrário, nos puxa para
baixo. Não se consegue lá muito bem entender essa obra. Mas a impressão
nebulosa que sempre tivemos dela é a de que o artista a pintara como se tivesse
desistido de exercer sobre os seus observadores o costumeiro controle psíquico.
Como se tivesse nos deixado em paz para liberar geral a nossa.... IMAGINAÇÃO.
A gente olha para essa tela e se pergunta: Esse El Grego é louco? Sofria
de astigmatismo? Quem são estas figuras? Que história estranha e desconhecida é
essa que ele está nos narrando?
Os personagens Laocoonte e seus filhos nasceram na Eneida, o grande poema
escrito por Virgílio sobre a guerra de Troia, cujos protagonistas mais famosos
são Páris, Helena e Aquiles. Depois eles foram transformados em um mármore
esplêndido que hoje mora no Vaticano. Na tela, o sacerdote troiano Laocoonte e
seus dois filhos - Antífates e Timbreo - estão sendo castigados por deuses
gregos pelo crime de tentar alertar os troianos sobre o tal do Cavalo - o
presente dos gregos.
O destino final dos personagens parece já estar traçado se a gente atenta
para rapaz caído por terra depois de ter sido estrangulado, para o corpo
largado do sacerdote, o franzir da sua testa e o pingo do mais puro branco na
pupila vidrada.
A gente percebe o desespero dele por não poder proteger os filhos e a
pouca cor vermelha que ainda insinua a vida de uma corrente sanguínea no cinza
já cadavérico das peles. Porém, o resto da composição não faz qualquer sentido.
A começar pela estranha luta entre o rapaz à esquerda e a serpente que
nos passam muita tensão física para justificar a estranha circunferência
formada pelo corpo do jovem e seus braços e o da serpente, que definem uma área
sem significado espacial, a qual, além de enfatizar as contrações da
musculatura, os esforços do jovem e a rigidez da cobra curvilínea, só serve
como moldura para a cidade de Troia lá atrás. Troia? Mas esperem... não é Troia...
É Toledo!!
Em seguida percebemos que as serpentes parecem raquíticas, incompetentes,
impotentes e nos perguntamos por que esses caras tão musculosos estão tendo
tanta dificuldade em enfrentá-las. E então olhamos para essas figuras femininas
nuas à direita, tão andróginas, e não conseguimos lembrar de nenhum deus grego
que tivesse mamas.
E a outra figura, mais à direita - pasmem! - tem duas cabeças e uma
orelhinha pontiaguda. A criatura circense é mais do que fria, pois durante o
martírio não está nem aí e chega mesmo a olhar para fora do quadro para se
distrair. Em termos materiais nem mesmo as rochas que vemos são convincentes,
pois foram pintadas com a mesma insubstância e matizes da cor do céu alto e
nublado. E, finalmente, os nossos olhos encontram, quase no centro da
composição, renascido bucólico, castanho e pequeno, uma versão do Grego para o
temível Cavalo de Troia.
De repente a gente entende que, em vez de uma narrativa de fácil
compreensão, em vez de uma interpretação de um trecho do poema de Virgílio, em
vez de um passeio pela pintura clássica e mitológica, essa tela é uma brincadeira,
uma alegoria.
Intuímos que ela não é prosa mas verso, que não é verdade mas sonho, que
para nós tais figuras dirão A e para outros poderão dizer de B a Z, porque
podemos todos nos projetar livremente nestas imagens, nesse retângulo pictórico,
onde poderão ser criados quaisquer inversões de valores, mágicos avanços e
recuos, diferentes epílogos, pois trata-se de um espaço psicológico. De um fato
luminoso.
O Grego viveu numa
época em que o normal era reproduzir a realidade, como se o quadro fosse
transparente: uma janela para se olhar através. Mas ele usava a pincelada para
estruturar o quadro, ousando turvar essa transparência. Parece complicado, não
é mesmo? Mas, na verdade, isso significa simplesmente que ele pintava coisas
que ninguém via. Nem ele mesmo. E isso era uma temeridade no século XVI,
podendo resultar, inclusive, na Inquisição.
Nós abstraímos que, ao dialogar, na Idade das Trevas, com a dele e as
nossas imaginações o Grego elaborara modernamente sua pintura. Nenhum outro
grande artista ocidental mudara mentalmente de forma tão profunda quanto ele
fez, oriundo que fora do mundo simbólico e plano dos ícones bizantinos até
chegar à visão humanista que abarcou o mundo da pintura renascentista, e, em
seguida, se dirigindo para uma espécie conceitual de arte.
Esses mundos, porém, tinham uma coisa em comum: o respeito pela teoria de
que a arte contém um reino mais elevado, o do espírito. O modernismo do Grego
fora baseado em sua rejeição do mundo das meras aparências em favor do reino do
intelecto e do espírito imaginativo.
Este foi o cerne da mensagem que captáramos até então na exposição de
Toledo: o Grego considerara que a pintura poderia sim imitar o visível, mas
também deveria retratar o impossível, ser uma ferramenta para explorar as
maravilhas reais e os mistérios ocultos da mente humana.
"Aqui jaz o grego de quem
a natureza aprendeu a arte.”
O epitáfio não poderia ser mais apropriado para descrever a vida de
alguém que se achava acima do bem e do mal. Domenikos Theotokopulos sempre teve
certeza de sua incrível genialidade, mesmo quando os outros o chamavam de louco
e incompetente, ou diziam que as figuras deformadas e estranhamente
assimétricas que pintava não eram um estilo, mas fruto de uma doença na visão.
O poeta John Keats militava no time do Grego:
"Eu de nada tenho certeza,
a não ser da realidade das afeições do meu coração e da verdade da Imaginação.
A beleza apreendida pela Imaginação deve ser verdade".
Tendo concordado com o principal argumento da exposição, o vanguardismo
do artista em pauta, em seguida nós participamos de uma aula visual, uma
espécie de filme da vida do avô do modernismo. Mas essa será outra conversa...
Enquanto isso, deixo para vocês neste vídeo mais algumas obras do Grego de que falo
neste artigo, mas que os limites do espaço não nos permitiram exibir.
Moacir, entendo muito pouco de arte para opinar sobre o Grego mas quando você perguntou se ele era louco eu ri pois foi exatamente o que pensei quando olhei pras figuras peladas kkkk Não conhecia o sacerdote de Troia porém não é preciso ser enciclopédia nem PHD em pintura pra sacar que suas descrições das obras de arte são demais. Não tem como não gostar do seu jeito de escrever e agradecer pela 'imaginação' que me deixa sempre querendo saber mais. Valeu!
ResponderExcluirMoacir,
ResponderExcluirEu era muito novinha quando visitei Toledo que me pareceu sombria exceto pelas as pinturas de El Greco cheias de cores e espiritualidade. Era como se os quadros iluminassem os ambientes escuros onde estavam. Guardei na lembrança a impressão de que tinham sido feitos por um homem profundamente religioso e seu excelente artigo e o vídeo a confirmam. Aguardarei ansiosa pela continuação da pauta. Um abraço grande para você.
Oiiiiiiiii ...quase que não faço comentário sobre essa aula " divina ", pois não saem do meu pensamento os passeios maravilhosos que estão fazendo além das delicias gastronômicas. Huuuummmm ...Aproveitem tudo o que têm direito. Mas... então, as pinturas de El Greco são literalmente divinas, nelas os vários temas religiosos se apresentam inegavelmente com muita força. Passei boa parte do dia admirando suas obras e descobri tantas outras que ainda não tinha visto. Ele tem sua característica marcante, um olhar atento reconhece logo sua obra. Como sei isso ? Aprendi com você, Mestre. Obrigada por mais essa aula, daqui a pouco vou passar a discordar um pouco de você, de tanto que vou estudar. Abraços. Tim...Tim...!!! Dulce
ResponderExcluir1) Texto bonito, fotos idem.
ResponderExcluir2)Pensei em fazer uma poesia... um jogo de palavras entre "Vista de Toledo, vista-se de Toledo, Visita Toledo, Vi Sita* em Toledo, Tão cedo não esqueço de Toledo".
3) (*)Sita é a esposa do Deus Rama, na mitologia hindu. Está no clássico da Literatura Indiana "O Ramayana".
Olá Mestre Moacir (copiando a Dulce...),
ResponderExcluirVocê escreveu ...tais figuras serão A e para outros poderão dizer de A a Z... Mas muito melhor fazer essas incursões depois de uma aula fantástica como a sua!
Seria demais ver os céus espiralados do Van Gogh nos céus atormentados de El Greco?
Vai ter mais? Preciso saber das influências sofridas e exercidas.
Até (muito) mais!