montagem Maria João Pimentel |
Moacir Pimentel
As fotos que abrem o post nos mostram o polêmico
casal de artistas. Camille Claudel esculpida por Rodin em um mármore batizado como
o Pensamento, Auguste Rodin moldado em bronze por Camille nesse Busto de Rodin.
Camille, uma escultora de
incrível talento, pupila e amante de Rodin, muitas vezes posou para que o seu
homem a representasse em dezenas de esculturas. Enquanto cinzelava o bloco de
mámore acima, Rodin decidiu - como era frequentemente o caso - não prosseguir
esculpindo e deixou o bloco áspero unido à cabeça polida da figura. Na verdade
esse trabalho além do nome tem sobrenome: O Pensamento Emergente da Matéria.
O rosto está inclinado para a
frente, na sombra, e parece estar mergulhado em devaneio, com os olhos fixos em
alguma coisa invisível. O contraste entre a face perfeitamente polida e o bloco
grosseiramente cinzelado intensifica a impressão de que a figura é uma aparição
e dota a obra com um significado simbólico e uma profundidade que não teria se
tivesse sido esculpida de outra maneira mais tradicional.
Quanto ao Busto de Rodin foi a
única escultura de Camille que recebeu boas críticas. Pudera! O trabalho
capturou perfeitamente a personalidade e a vitalidade do artista retratado,
orgulhoso por trás da barba cheia e mal cuidada, encarando o mundo com impaciência,
que as sobrancelhas franzidas revelam. O Busto foi esculpido em 1889 e, apesar
de ter sido então aclamado pelos críticos do Salão de Arte de Paris, não foi
fundido em bronze até 1892.
Depois de terminado o relacionamento
dos dois monstros da escultura, o rosto de Camille Claudel – magistralmente
esculpido por ela no bronze chamado de Aurora que inicia a montagem de fotos
abaixo - continuou a assombrar Rodin. Ele retornou aos bustos e rostos que já
tinha feito dela em gesso no início de seu relacionamento.
montagem Maria João Pimentel |
Reutilizando as representações
pretéritas de Camille, Rodin adicionou-lhes chapéus, echarpes e bases
inesperadas. Ele concebeu alguns dos mais íntimos retratos da mulher que amara
evoluindo-os a partir de inacabados blocos de gesso e de mármore. Às vezes, ele
incorporava aos trabalhos mãos de outras figuras masculinas. As composições
resultantes foram talhadas em mármore ou moldadas. Rodin experimentava ajustes
sutis até que o resultado final o satisfizesse plenamente.
Assim, o rosto profundamente
emocionante de Camille Claudel foi nostalgicamente revivido e sublimado em uma
admirável série de esculturas: A Convalescente, A França, A Máscara de Camille,
Retrato de Camille com a Mão Esquerda de Pierre de Wissant. São assamblados
alegóricos diante dos quais o espectador não tem certeza do que ele está
realmente olhando e obras pessoais que o artista raramente exibiu durante sua
vida.
Camille Claudel, uma das
primeiras mulheres na cena artística da Belle Époque de Paris, causou uma
grande impressão em Auguste Rodin quando aos dezessete anos foi contratada para
trabalhar como sua assistente. Rodin foi rapidamente atraído por ela e em pouco
tempo a garota era sua modelo, amante, inspiração e igual artística. O que se
seguiu foi uma tórrida história de arte, paixão e autodestruição durante um
intenso e tumultuado relacionamento que durou mais de uma década e deixou
cicatrizes mentais em Camille.
De todas as amantes de Rodin - um verdadeiro harém
de modelos, alunas, aristocratas, camponesas, socialities, inglesas, americanas,
polacas e italianas - apenas uma realmente teve importância: Camille Claudel.
Da Duquesa de Choiseul, uma americana que por anos
reduziu Rodin a um mundano vaidoso enquanto lhe abria as portas do mercado
americano, das beldades caçadoras de fortuna, das nobres desejosas de aventura,
das atrizes perseguindo a fama, das belíssimas e jovens modelos, e até das
alunas - uma das quais se matou por causa dele - apenas Camille Claudel
encontrou o caminho para além da cama do artista e invadiu a sua arte.
Nem mesmo Rose Beuret, a mulher com quem ele
descobrira a sensualidade, aquela que desempenhou papel importantíssimo na vida
dele – o de primeira modelo, companheira por toda a vida e mãe do seu filho
ilegítimo – chegou perto de ter o mesmo impacto de Camille na arte do mestre.
Somente a paixão despertada pela jovem interferiu,
influenciou e mais, transformou as criações de Rodin. O amor dos dois foi
conflituoso e sofrido pois nele se descobriram e reconheceram, se traduziram e
completaram, se enfrentaram e repeliram, não apenas duas criaturas apaixonadas
uma pela outra, mas dois poderosos artistas.
Ele conheceu Camille num momento crucial da sua
carreira e os temas eróticos inspirados por ela deram um impulso novo ao seu
trabalho. Podemos afirmar, baseados em evidências, que Rodin teve apenas um Big
Bang criativo na vida – a criação dos seus maravilhosos Portões do Inferno.
Inspirados originalmente em outros, aqueles da
Divina Comédia de Dante Alighieri, os Portões do Inferno ocupam um lugar único na obra de
Rodin e hoje moram nos jardins de seu Museu em Paris.
Trabalhando febrilmente nesse
projeto durante vários anos, ele criou quase 200 pequenas figuras e grupos
delas que formaram um terreno fértil para idéias que ele desenvolveu pelo resto da sua vida criativa, transformando tais
miniaturas em gente grande, refazendo-as compulsivamente em várias posições –
de lado, de cabeça para baixo, de barriga para cima, juntas e separadas –
sempre variando com os mesmos corpos e até mesmo seus fragmentos, dando-lhes
outros nomes, enredos, humor, postura e materiais.
Rodin começou a esculpir os seus Portões pela
figura do Pensador, concebido e batizado inicialmente, no entanto, como O
Poeta, em homenagem a Dante. A escultura está localizada acima dos painéis das portas do
Inferno rodiniano. Muitos pensam que o Pensador é o próprio Rodin meditando
sobre sua composição, outros acreditam que ele representa Adão, contemplando a
humanidade penando por causa do seu pecado.
Rodin tinha mais o que fazer e não perdeu tempo
explicando as meditações do protagonista do seu Inferno e continuou inventando
em bronze outros personagens do poema de Dante, como as Três Sombras.
Na Divina Comédia, as sombras
eram as almas dos condenados, e três delas estavam à entrada do Inferno,
apontando para uma inscrição inequívoca nos seus umbrais :
“Deixai
toda esperança, vós que entrais”.
Rodin fez vários estudos
dessas Sombras, antes de finalmente decidir montar três figuras idênticas - que
parecem estar girando em torno de um mesmo eixo - e as posicionar no topo dos
Portões de onde elas encaram o espectador no chão. Depois ele as ampliou para
criar um grupo independente que hoje, nos jardins do Museu Rodin, cumprimenta os
visitantes antes que alcancem os Portões do Inferno.
Veja o Pensador e as Três
Sombras na montagem abaixo, que termina com outro famoso grupo de figuras
fugidas dos Portões: Ugolino e seus Filhos
fotografias Moacir Pimentel |
Assim como antes já acontecera
com O Pensador, as Três Sombras tomaram emprestadas a genialidade e a força dos
corpos de Michelangelo. Mas o ângulo das cabeças voltadas para baixo é tão
exagerado que os pescoços e ombros formam uma linha quase horizontal. Foi por
meio de distorções anatômicas como essa que Rodin alcançou uma força expressiva
sem paralelo no seu tempo.
E aí apareceu Camille, que desde criancinha fugia
da casa dos pais no campo e subia os morros que a circundavam, para brincar com
o barro e esculpir. As esculturas de Rodin antes de amar Camille já eram emocionalmente
carregadas, como comprovam alguns de seus bustos - os de Bellona, São João
Batista e Carrier-Belleuse. Camille, em contraste, antes de encontrar seu
mestre explorava a modelagem só em figuras de argila mas suas obras iniciais
como A Velha Helena, já profetizavam os maravilhosos trabalhos futuros. Podemos
dizer que, antes de se encontrarem artisticamente, Rodin inventava homens e
Camille criava mulheres.
Escultora talentosa, a moça passou a ajudá-lo nos
Portões – dizem que inicialmente esculpindo os pés e as mãos das figuras - e, é
claro, em seguida, na tal multiplicação dos corpos como, por exemplo, nas
tantas Evas, de nomes diversos, que se seguiram à dos Portões e na escultura de
Ugolino e Seus Filhos, que hoje
mora no centro do lago nos jardins do Museu, retratando Ugolino della
Gherardesca, que, segundo a história de Dante, comeu os cadáveres de seus
filhos depois deles morrerem de fome.
Talvez nem mesmo Rodin tenha percebido, a
princípio, o quanto Camille modificou o climão dos Portões que, em vez das
penas do Purgatório e das torturas do Inferno e dos espíritos do outro mundo,
passaram a “conversar” muito mais sobre as delícias da carne. Como resultado os
Portões do Inferno se distanciaram da visão de Dante para louvar as formas de
Camille e ficaram meio confusos mas nem por isso são menos belos e geniais.
A presença de Camille foi eternizada na alma, na
mente e na arte do amante. Só não permaneceu na vida dele. Nos Portões do
Inferno é Camille que vemos como as sensuais e lascivas Eva, Danaide e
Francesca e em vários dos grupos de esculturas que depois foram sendo ampliados e
tornaram-se outras obras de arte lendárias,
como O Beijo e o Amor Fugitivo e a Submissão. Ás vezes parece-me que, sem
saber, Rodin construiu os seus Portões para que Camille os atravessasse e que
ela, muito consciente do que fazia, lhes cruzou os umbrais.
Essa revolução na escultura do
artista, provocada pelos sentidos intoxicados por Camille, fez Rodin
transformar o que deveria ser uma Divina Comédia em um festival de corpos
enlaçados em todas as imagináveis posições e, em seguida, fora do umbral,
metamorfosear as figurinhas originais em obras individuais carregadas de
erotismo como, por exemplo, O Pecado Original, O Último Julgamento e A Danação.
Talvez o encontro de Camille Claudel e Auguste Rodin tenha mudado a história da
arte da escultura no século XX.
montagem Maria João Pimentel |
A partir de 1882, quando se
apaixonaram, até 1892, quando se separaram, é como se Camille Claudel e Auguste
Rodin tivessem se fecundado e produzido algumas das mais belas, sensuais e
eróticas esculturas que o mundo já viu. Percebe-se claramente o tsunami provocado
pela paixão experimentada pelos dois nos trabalhos que fizeram juntos. Além
disso, existem algumas obras que não se sabe quem esculpiu, se Rodin ou se
Camille, pois elas não se encontram assinadas e mostram sinais de terem sido
amorosamente trabalhadas a quatro mãos.
O processo de criação das
esculturas, um dos elementos-chave dessa história, nem sempre foi fácil: os
amantes brigavam pela autoria das ideias, o aprendizado era constantemente
tumultuado pelos ciúmes que a jovem tinha de alunas e modelos, rolava
frustração na busca de expressão, na experimentação de modelagem ,etc, etc,
etc. Mas o ato de criar os aproximou profundamente e o trabalho compartido foi
a fonte de uma irresistível e profunda cumplicidade de espírito.
Eles foram, mais que amantes,
os amigos e confidentes das mentes criativas um do outro. Auguste enxergava na
aluna alguém da sua própria estatura. Amigos relatavam que ele não tomava
decisões artísticas sem consultá-la, e mais, sem convencê-la de que o rumo que
desejava tomar era o mais acertado.
Algumas obras-primas de Rodin
foram criadas conforme imaginadas pela mente de Camille, como Os Mendigos de
Calais.
fotografias Moacir Pimentel |
Eu vejo nos
estupendos Mendigos uma abordagem diferente no design, consistente com aquela
mais moderna de Camille, e inconsistente com a inclinação de Rodin para os
efeitos especiais, as fragmentações e mutilações, a vunerabilidade do corpo
humano tão bem exemplificados nos maravilhosamente caóticos Portões.
Nossa, amei o artigo, Moacir. Sobre as obras de arte de Rodin você é cristalino e mais que isso só desenhando kkk. Mas Camile era quase uma menina e deve ter sofrido muito pra derrubar esse touro casado pelo rabo durante 10 anos. E tudo isso misturado com trabalho. Coitadinha. É o amor impossível dos dois que torna o relato humano e coloca a pimenta certa na história. Conta mais das esculturas e dos 'bastidores'. Essa introdução me deixou curiosa!
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ResponderExcluirMoacir,
Obrigada por nos brindar com esse belíssimo texto às vésperas do NATAL mesmo estando de férias. Morri de inveja boa de você diante dessas obras de arte maravilhosas do Museu Rodin cujas fotos compartilha conosco. De Rodin amo o Beijo que conheço do Museu de Belas Artes de Buenos Aires. Espero que você continue a escrever sobre os dois artistas pois das esculturas dela nada sei a não ser o que vi faz séculos num filme com Gerard Depardieu no papel de Rodin e Isabele Adjani no de Camille. Um abraço para você.
1) Belíssimas fotos, bom texto como sempre.
ResponderExcluir2) Artes e amores, paraísos e infernos, infinitudes e finitudes.
3) Vidas e mortes: existências.
Olá Moacir,
ResponderExcluir...O amor dos dois foi conflituoso e sofrido pois nele se descobriram e reconheceram, se traduziram...mas dois poderosos artistas... Voce resumiu lindamente a vida deles. E nos deu uma super aula com a sua sabedoria e competência literária de poeta.
Até mais.