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15/12/2016

Os Portões do Inferno


montagem Maria João Pimentel

Moacir Pimentel

As fotos que abrem o post nos mostram o polêmico casal de artistas. Camille Claudel esculpida por Rodin em um mármore batizado como o Pensamento, Auguste Rodin moldado em bronze por Camille nesse Busto de Rodin.
Camille, uma escultora de incrível talento, pupila e amante de Rodin, muitas vezes posou para que o seu homem a representasse em dezenas de esculturas. Enquanto cinzelava o bloco de mámore acima, Rodin decidiu - como era frequentemente o caso - não prosseguir esculpindo e deixou o bloco áspero unido à cabeça polida da figura. Na verdade esse trabalho além do nome tem sobrenome: O Pensamento Emergente da Matéria.
O rosto está inclinado para a frente, na sombra, e parece estar mergulhado em devaneio, com os olhos fixos em alguma coisa invisível. O contraste entre a face perfeitamente polida e o bloco grosseiramente cinzelado intensifica a impressão de que a figura é uma aparição e dota a obra com um significado simbólico e uma profundidade que não teria se tivesse sido esculpida de outra maneira mais tradicional.
Quanto ao Busto de Rodin foi a única escultura de Camille que recebeu boas críticas. Pudera! O trabalho capturou perfeitamente a personalidade e a vitalidade do artista retratado, orgulhoso por trás da barba cheia e mal cuidada, encarando o mundo com impaciência, que as sobrancelhas franzidas revelam. O Busto foi esculpido em 1889 e, apesar de ter sido então aclamado pelos críticos do Salão de Arte de Paris, não foi fundido em bronze até 1892.

Depois de terminado o relacionamento dos dois monstros da escultura, o rosto de Camille Claudel – magistralmente esculpido por ela no bronze chamado de Aurora que inicia a montagem de fotos abaixo - continuou a assombrar Rodin. Ele retornou aos bustos e rostos que já tinha feito dela em gesso no início de seu relacionamento.

montagem Maria João Pimentel

 
Reutilizando as representações pretéritas de Camille, Rodin adicionou-lhes chapéus, echarpes e bases inesperadas. Ele concebeu alguns dos mais íntimos retratos da mulher que amara evoluindo-os a partir de inacabados blocos de gesso e de mármore. Às vezes, ele incorporava aos trabalhos mãos de outras figuras masculinas. As composições resultantes foram talhadas em mármore ou moldadas. Rodin experimentava ajustes sutis até que o resultado final o satisfizesse plenamente.
Assim, o rosto profundamente emocionante de Camille Claudel foi nostalgicamente revivido e sublimado em uma admirável série de esculturas: A Convalescente, A França, A Máscara de Camille, Retrato de Camille com a Mão Esquerda de Pierre de Wissant. São assamblados alegóricos diante dos quais o espectador não tem certeza do que ele está realmente olhando e obras pessoais que o artista raramente exibiu durante sua vida.

Camille Claudel, uma das primeiras mulheres na cena artística da Belle Époque de Paris, causou uma grande impressão em Auguste Rodin quando aos dezessete anos foi contratada para trabalhar como sua assistente. Rodin foi rapidamente atraído por ela e em pouco tempo a garota era sua modelo, amante, inspiração e igual artística. O que se seguiu foi uma tórrida história de arte, paixão e autodestruição durante um intenso e tumultuado relacionamento que durou mais de uma década e deixou cicatrizes mentais em Camille.
De todas as amantes de Rodin - um verdadeiro harém de modelos, alunas, aristocratas, camponesas, socialities, inglesas, americanas, polacas e italianas - apenas uma realmente teve importância: Camille Claudel.
Da Duquesa de Choiseul, uma americana que por anos reduziu Rodin a um mundano vaidoso enquanto lhe abria as portas do mercado americano, das beldades caçadoras de fortuna, das nobres desejosas de aventura, das atrizes perseguindo a fama, das belíssimas e jovens modelos, e até das alunas - uma das quais se matou por causa dele - apenas Camille Claudel encontrou o caminho para além da cama do artista e invadiu a sua arte.
Nem mesmo Rose Beuret, a mulher com quem ele descobrira a sensualidade, aquela que desempenhou papel importantíssimo na vida dele – o de primeira modelo, companheira por toda a vida e mãe do seu filho ilegítimo – chegou perto de ter o mesmo impacto de Camille na arte do mestre.
Somente a paixão despertada pela jovem interferiu, influenciou e mais, transformou as criações de Rodin. O amor dos dois foi conflituoso e sofrido pois nele se descobriram e reconheceram, se traduziram e completaram, se enfrentaram e repeliram, não apenas duas criaturas apaixonadas uma pela outra, mas dois poderosos artistas.
Ele conheceu Camille num momento crucial da sua carreira e os temas eróticos inspirados por ela deram um impulso novo ao seu trabalho. Podemos afirmar, baseados em evidências, que Rodin teve apenas um Big Bang criativo na vida – a criação dos seus maravilhosos Portões do Inferno.
Inspirados originalmente em outros, aqueles da Divina Comédia de Dante Alighieri, os Portões do Inferno ocupam um lugar único na obra de Rodin e hoje moram nos jardins de seu Museu em Paris.
Trabalhando febrilmente nesse projeto durante vários anos, ele criou quase 200 pequenas figuras e grupos delas que formaram um terreno fértil para idéias que ele desenvolveu pelo resto da sua vida criativa, transformando tais miniaturas em gente grande, refazendo-as compulsivamente em várias posições – de lado, de cabeça para baixo, de barriga para cima, juntas e separadas – sempre variando com os mesmos corpos e até mesmo seus fragmentos, dando-lhes outros nomes, enredos, humor, postura e materiais.
Rodin começou a esculpir os seus Portões pela figura do Pensador, concebido e batizado inicialmente, no entanto, como O Poeta, em homenagem a Dante. A escultura está localizada acima dos painéis das portas do Inferno rodiniano. Muitos pensam que o Pensador é o próprio Rodin meditando sobre sua composição, outros acreditam que ele representa Adão, contemplando a humanidade penando por causa do seu pecado.
Rodin tinha mais o que fazer e não perdeu tempo explicando as meditações do protagonista do seu Inferno e continuou inventando em bronze outros personagens do poema de Dante, como as Três Sombras.
Na Divina Comédia, as sombras eram as almas dos condenados, e três delas estavam à entrada do Inferno, apontando para uma inscrição inequívoca nos seus umbrais :  
“Deixai toda esperança, vós que entrais”.
Rodin fez vários estudos dessas Sombras, antes de finalmente decidir montar três figuras idênticas - que parecem estar girando em torno de um mesmo eixo - e as posicionar no topo dos Portões de onde elas encaram o espectador no chão. Depois ele as ampliou para criar um grupo independente que hoje, nos jardins do Museu Rodin, cumprimenta os visitantes antes que alcancem os Portões do Inferno.
Veja o Pensador e as Três Sombras na montagem abaixo, que termina com outro famoso grupo de figuras fugidas dos Portões: Ugolino e seus Filhos

fotografias Moacir Pimentel

Assim como antes já acontecera com O Pensador, as Três Sombras tomaram emprestadas a genialidade e a força dos corpos de Michelangelo. Mas o ângulo das cabeças voltadas para baixo é tão exagerado que os pescoços e ombros formam uma linha quase horizontal. Foi por meio de distorções anatômicas como essa que Rodin alcançou uma força expressiva sem paralelo no seu tempo.
E aí apareceu Camille, que desde criancinha fugia da casa dos pais no campo e subia os morros que a circundavam, para brincar com o barro e esculpir. As esculturas de Rodin antes de amar Camille já eram emocionalmente carregadas, como comprovam alguns de seus bustos - os de Bellona, São João Batista e Carrier-Belleuse. Camille, em contraste, antes de encontrar seu mestre explorava a modelagem só em figuras de argila mas suas obras iniciais como A Velha Helena, já profetizavam os maravilhosos trabalhos futuros. Podemos dizer que, antes de se encontrarem artisticamente, Rodin inventava homens e Camille criava mulheres.

Escultora talentosa, a moça passou a ajudá-lo nos Portões – dizem que inicialmente esculpindo os pés e as mãos das figuras - e, é claro, em seguida, na tal multiplicação dos corpos como, por exemplo, nas tantas Evas, de nomes diversos, que se seguiram à dos Portões e na escultura de Ugolino e Seus Filhos, que hoje mora no centro do lago nos jardins do Museu, retratando Ugolino della Gherardesca, que, segundo a história de Dante, comeu os cadáveres de seus filhos depois deles morrerem de fome.
Talvez nem mesmo Rodin tenha percebido, a princípio, o quanto Camille modificou o climão dos Portões que, em vez das penas do Purgatório e das torturas do Inferno e dos espíritos do outro mundo, passaram a “conversar” muito mais sobre as delícias da carne. Como resultado os Portões do Inferno se distanciaram da visão de Dante para louvar as formas de Camille e ficaram meio confusos mas nem por isso são menos belos e geniais.
A presença de Camille foi eternizada na alma, na mente e na arte do amante. Só não permaneceu na vida dele. Nos Portões do Inferno é Camille que vemos como as sensuais e lascivas Eva, Danaide e Francesca e em vários dos grupos de esculturas que depois foram sendo ampliados e tornaram-se outras obras de arte lendárias, como O Beijo e o Amor Fugitivo e a Submissão. Ás vezes parece-me que, sem saber, Rodin construiu os seus Portões para que Camille os atravessasse e que ela, muito consciente do que fazia, lhes cruzou os umbrais.
Essa revolução na escultura do artista, provocada pelos sentidos intoxicados por Camille, fez Rodin transformar o que deveria ser uma Divina Comédia em um festival de corpos enlaçados em todas as imagináveis posições e, em seguida, fora do umbral, metamorfosear as figurinhas originais em obras individuais carregadas de erotismo como, por exemplo, O Pecado Original, O Último Julgamento e A Danação. Talvez o encontro de Camille Claudel e Auguste Rodin tenha mudado a história da arte da escultura no século XX.

montagem Maria João Pimentel

A partir de 1882, quando se apaixonaram, até 1892, quando se separaram, é como se Camille Claudel e Auguste Rodin tivessem se fecundado e produzido algumas das mais belas, sensuais e eróticas esculturas que o mundo já viu. Percebe-se claramente o tsunami provocado pela paixão experimentada pelos dois nos trabalhos que fizeram juntos. Além disso, existem algumas obras que não se sabe quem esculpiu, se Rodin ou se Camille, pois elas não se encontram assinadas e mostram sinais de terem sido amorosamente trabalhadas a quatro mãos.
O processo de criação das esculturas, um dos elementos-chave dessa história, nem sempre foi fácil: os amantes brigavam pela autoria das ideias, o aprendizado era constantemente tumultuado pelos ciúmes que a jovem tinha de alunas e modelos, rolava frustração na busca de expressão, na experimentação de modelagem ,etc, etc, etc. Mas o ato de criar os aproximou profundamente e o trabalho compartido foi a fonte de uma irresistível e profunda cumplicidade de espírito.
Eles foram, mais que amantes, os amigos e confidentes das mentes criativas um do outro. Auguste enxergava na aluna alguém da sua própria estatura. Amigos relatavam que ele não tomava decisões artísticas sem consultá-la, e mais, sem convencê-la de que o rumo que desejava tomar era o mais acertado.
Algumas obras-primas de Rodin foram criadas conforme imaginadas pela mente de Camille, como Os Mendigos de Calais.

fotografias Moacir Pimentel

Eu vejo nos estupendos Mendigos uma abordagem diferente no design, consistente com aquela mais moderna de Camille, e inconsistente com a inclinação de Rodin para os efeitos especiais, as fragmentações e mutilações, a vunerabilidade do corpo humano tão bem exemplificados nos maravilhosamente caóticos Portões.




4 comentários:

  1. Monica Silva15/12/2016, 09:43

    Nossa, amei o artigo, Moacir. Sobre as obras de arte de Rodin você é cristalino e mais que isso só desenhando kkk. Mas Camile era quase uma menina e deve ter sofrido muito pra derrubar esse touro casado pelo rabo durante 10 anos. E tudo isso misturado com trabalho. Coitadinha. É o amor impossível dos dois que torna o relato humano e coloca a pimenta certa na história. Conta mais das esculturas e dos 'bastidores'. Essa introdução me deixou curiosa!

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  2. Flávia de Barros15/12/2016, 13:48


    Moacir,

    Obrigada por nos brindar com esse belíssimo texto às vésperas do NATAL mesmo estando de férias. Morri de inveja boa de você diante dessas obras de arte maravilhosas do Museu Rodin cujas fotos compartilha conosco. De Rodin amo o Beijo que conheço do Museu de Belas Artes de Buenos Aires. Espero que você continue a escrever sobre os dois artistas pois das esculturas dela nada sei a não ser o que vi faz séculos num filme com Gerard Depardieu no papel de Rodin e Isabele Adjani no de Camille. Um abraço para você.

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  3. 1) Belíssimas fotos, bom texto como sempre.

    2) Artes e amores, paraísos e infernos, infinitudes e finitudes.

    3) Vidas e mortes: existências.

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  4. Olá Moacir,
    ...O amor dos dois foi conflituoso e sofrido pois nele se descobriram e reconheceram, se traduziram...mas dois poderosos artistas... Voce resumiu lindamente a vida deles. E nos deu uma super aula com a sua sabedoria e competência literária de poeta.
    Até mais.

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