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03/12/2016

A Reconstrução do Passado

fotografia Moacir Pimentel



Moacir Pimentel

Vamos passar mais um Natal na t’rrinha. Para além das lareiras enfeitadas de hera e azevinho, do Pai Natal, das Cartuxas, do bacalhau da Consoada, do pão de ló escangalhado, da lampreia de ovos, do queijo da Serra, do vinho do Porto, da sopa de vinho de madrugada e da roupa velha no dia seguinte, os Natais de Portugal são coloridos pelas camélias.
A camélia é a estrela de romances e símbolo do amor eterno por excelência, talvez porque floresça no frio. No Norte de Portugal as cameleiras são chamadas de japoneiras, fato que sempre me intrigou até descobrir que a flor fora trazida da Ásia para Portugal depois do contato e do fascínio seiscentista dos lusitanos pelo Japão.

Vindas das florestas do sul daquele país as cameleiras vingaram no Minho, onde os jardins encheram-se dos arbustos podados em forma de cercas, ou subindo pelas paredes ou debruçados das janelas, ou rente aos lagos e aos bancos.
Há cameleiras no meio das matas, à beira dos rios, pelas estradas mas sempre colorindo com uma variedade de cores e formas as vidas do outono até à primavera.
As camélias, às vezes, são tão abundantes que chegam a esconder a folhagem e, neste caso, a planta trata de eliminar sozinha as flores e folhas murchas! E então os relvados, as trilhas e os caminhos são cobertos por camélias e pétalas.

Elas são belas até mesmo moribundas atapetando os jardins.

Você deve estar se perguntando o porque desse post botânico. Para começo de conversa porque só o passado explica o presente das camélias. E, em seguida, porquê nos invernos antes e depois das festas em família, além de beber e comer, se fica meio que ocioso e então se passa a prestar atenção aos detalhes, a perceber coisas pequenas e a conversar sobre elas.

Nos verões há tanto o que fazer do lado de fora: as praias, os piqueniques nas serras, as sardinhadas nas praças e quintais, as festas dos santos João, Pedro, Tirso, Eufêmia e Ovídio, as Feiras de gastronomia, artesanato, chocolate e aquela medieval em Santa Maria da Feira. Os passeios gastronômicos para a Mealhada, Melgaço, Ponte de Lima, as papas de sarrabulho na Trofa, as bandas tocando nos parques, a movida no estupendo Algarve.
No inverno não rola nada disso. Em vez, as pessoas se cobrem por quilos de roupa, se protegem da inclemência da natureza entre suas paredes, fecham todas as portas e janelas. E começam as intermináveis conversas em volta de grandes mesas em velhas cozinhas, enquanto se bebe tinto e se enfrenta o frio e a chuva e o vento lá fora pegando mais lenha para alimentar o fogo das fornalhas e lareiras cujas pedras frontais chegam a ter metros de comprimento.
As pedras, aliás, são um dos temas recorrentes das minhas fotos invernais. Pode ser uma gárgula de bunda virada para a inimiga Espanha, um telhado de xisto, um velho sino num clássico umbral.
Quem sabe uma fonte antiga na qual uma senhora esteja lavando roupa, uma janela manuelina, um muro bordado de hera, uma escultura pintada pela pátina do tempo, uma ponte romana, as serras parecendo nuvens escuras no horizonte?

As fotos de inverno têm a cara do passado e é disso que geralmente se termina falando nas frias noites de dezembro: do PASSADO.
E a pergunta de hoje é porquê? Porque gostamos tanto do passado?

Tudo bem que todos nós bichos-homens queremos aprender um pouco mais sobre de onde viemos e não há melhor oportunidade para compartilhar velhas histórias do que nas reuniões e festas familiares.
Sem dúvida é a família a ambiência apropriada para fazer essa conexão emocional com os meninos, rapazes e homens mais jovens que fomos até chegarmos a ser os caras que somos hoje teclando aqui nesse blog.
Nessa viagem no tempo que ajuda a manter uma sensação de continuidade e de identidade, algumas das experiências que protagonizamos viram lendas do clã e continuam sendo contadas décadas depois de terem acontecido.
Eu me divirto com as peripécias de meus cunhados que, quando no Liceu, iam de bicicleta até Mindelo, lá pegavam o comboio até Vila do Conde, fizesse chuva ou sol, aprontando todas pelas léguas tiranas.
Sei de cor e salteado como um deles pulou da ponte romana sobre o Ave e quase perdeu um pé nos cacos de uma garrafa enterrada no leito do rio. E de como o outro, certa vez, escorregou pela chaminé abaixo de um estábulo e terminou aterrissando em um aido, entre uma vaca bravia e a sua cria.
E como não me deliciar pela quinquagésima vez com a narrativa de como a galera entrou sorrateira no sotão empoeirado do velho Senhor Alferes e achou um gramofone que foi desmontado e polido e posto novo e que, quando funcionou, a agulha foi girando e gemendo em volta do compacto:

“Cobre-me, cobre-me, cobre-me que eu tenho frio...”(rsrs)

Quando as músicas e as lembranças do ontem nos visitam, entendemos que, no passado, a inocência era nossa maior marca. É justamente essa inocência, essa formidável infância, como dizia Pessoa, que resgatamos ao lembrar do passado. Ninguém se perde no retorno.

Entre um tuga e outro, eu também solto o verbo, e conto-lhes os causos da vida dividida entre o Posto 4 e as férias de fim de ano em Pernambuco, quando primeiro eu fui menino e depois se não fui hippie, com certeza era um colega deles na falta de rumo.
São imagens belíssimas das esquinas da minha memória: os beijos dos velhos avôs e avós, os abraços de minha mãe, as cavalhadas, os açudes, os banhos de cachoeira, os estilingues, os cozinhados das primas - pra quê tanta prima, meudeus? - o leite quente esguichado em uma caneca de ágata direto da teta da vaca, os mares verdes de cana caiana, o Corso na Rua da Imperatriz, as lanças perfumes que os meus primos mais velhos cheiravam nos cangotes das moças.
Tinha a Jaqueira, a Casa do Navio da Boa Viagem, a festa da Mocidade nas férias em preto e branco da minha infância, povoadas no entanto pelas mangas rosas que até hoje só vale comer se for se lambuzando.

Não confie em ninguém com mais de trinta anos, aconselhava o Marcos Vale enquanto o mundo mudava a cada dia. Deus estava morto hoje e vivo na Índia na manhã seguinte, ou numa canção dos Beatles ao som de uma cítara, escutada em reuniões onde - em meio a incenso! - as “sacanagens” eram regadas a Cuba Libre.
Explico: naquele tempo “sacanagens” cariocas eram salsicha e azeitona enfiadas em palitos. E tome: “The answer, my friend, is blowing in the wind”...

Os tugas se divertem com meus bytes de memórias do início dos anos setenta, com os meus “rolos” com as meninas más das famílias boas e as meninas boas das famílias más. Quantas vezes fomos de gaiatos não nos navios mas na mesa de doces dos casamentos de perfeitos desconhecidos?
E a malta toda ouve salivando quando lhes explico como era uma delícia dividir um cachorro-quente da Geneal por dois! E a minha gastronômica narrativa se torna irresistível quando recito a maravilha que era levar a namoradinha para comer um sanduíche INTEIRO de lombinho de porco com abacaxi lá no Cervantes, quando a mesada saía, é claro!
Mas sinceramente? Eram duros aqueles tempos quando para se comprar um vinil tinha que ter – no mínimo - cinco cotistas! E quem sabia inglês traduzia a letra. Quando havia mais de um sabendo, era um inferno: NUNCA uma tradução coincidia com a outra!
Tempos quando eu pedia para participar da pelada de vôlei dos “coroas” e, na primeira oportunidade, corria com a bola calçadão afora, deixando-a na rua no meio dos carros passando!
Roubava as traves, de madrugada, dos times de futebol de areia, deixando- as em seguida, no posto do adversário.
E deixava também gravador de K7 - lembra-se? - no banheiro nas festinhas, para saber quais meninas estavam a fim de quem. E se apostava corrida de carro e deixava o “vencedor” sem noção esperando o resto da noite pela nossa chegada. Tínhamos mais o que fazer.
Tempos em que se podia caminhar a pé de madrugada, assobiando com a certeza de que, no fundo, o mundo teria solução.

Teve? Terá? Não sei.

Mas todos concordam que o passado era um tempo absolutamente fantástico. Pudera! Nele havia gerações mais velhas para nos tirar as dúvidas e para nos dizer who was who naqueles velhos retratos dos álbuns de fotografias com cantoneiras e folhas de papel transparente.
O passado era feito de lendas no tom de sépia das fotos românticas e ovaladas, das noivas rendadas antepassadas e do dourado daqueles cachos de cabelo dos bebês de outrora, colados nos mofados álbuns de retratos.

fotografia Moacir Pimentel


Mas se tinha a impressão de que o futuro viria em luminoso technicolor enquanto que hoje parece que perdemos a noção das nossas origens e é como se já não nos lembrassemos que estamos vindo e indo. E de como é bom esse movimento e de que ainda vale a pena desembarcar.

Quando chegamos ao inverno da vida e adentramos a casa dos sessenta, muito poucos das velhas gerações, permanecem entre nós e o Rubicão e a estrada que já percorremos, coberta pelas camélias moribundas e pelas folhas mortas, sem dúvida é mais longa do que o caminho à nossa frente até a linha de chegada. Tem mais.
Um aspecto inquietante de envelhecer é essa impressão que se tem de que a vida de repente começou a acelerar. O tempo hoje passa correndo por nós, enquanto eu ainda lembro muito bem que, entre as primas das férias de fim de ano no Nordeste materno e as brincadeiras juninas na Serra paterna, os dias rolavam em ritmo de eternidade. As férias que não chegavam nunca!

Talvez acreditemos que navegando pelo passado possamos retardar o tempo ou dar a ele um ritmo menos cruel. Só que pode ser o contrário.

Tenho uma vaga impressão de que diante do familiar o tempo parece se contrair e de que, em vez, diante do novo ele se expande.

Na juventude, tínhamos uma experiência absolutamente nova, subjetiva ou objetiva, a cada hora do dia. A apreensão era vívida, a adrenalina constante, a curiosidade uma outra pele.

Daí as nossas lembranças daquela época serem tão emocionantes, tão reais, enquanto que hoje os dias nos passam como paisagens contempladas de longe pela janela de um carro em movimento numa viagem rápida por demais.

O fato é que, seja porque for, todos gostam de, vez por outra, voltar ao passado e de enrolar-se nele como um cobertor quente, que cobre todas as incógnitas frias do amanhã e todas as realidades duras do hoje.

De mergulhar no calor de passados dias de sol, praias brancas e mundos da lua onde as preocupações se limitavam ao sorvete na hora do lanche e à televisão depois da escola.

De reviver momentos perfeitos cheios de pura alegria, passeios de sonho, idos carnavais e coloridos filmes, onde e quando nada nunca dava errado. Será?
Quem dentre nós já não desejou pertencer a um tempo passado? Os artistas em nós adorariam ter vivido enquanto Picasso e Dali estavam criando suas obras-primas e os nossos cientistas sem patentes pulariam de puro júbilo se lhes fosse dada a chance de testemunhar os anos dourados nos quais Einstein, ou Darwin ou Newton estavam prestes a mudar o mundo para sempre.
E os projetos de escritores do blog bem que se divertiriam se tivessem vivido à espera de mais uma nova novela de William Shakespeare enquanto devoravam a recém-publicada história daquele engenhoso fidalgo, à luz de velas.

Que garoto já não sonhou ser Robin Hood na floresta de Sherwood, Marco Polo na China, Cabral na proa de uma caravela ouvindo terra à vista e pulando na areia para brincar sem culpas com as Iracemas?
Quem não ia querer ser bandeirante, ou viver aqueles românticos tempos vitorianos, ou ver Gandhi marchando pela liberdade indiana, ou libertar Paris dos nazi e, como desejam os meus já nostálgicos filhos, acompanhar os americanos pousando na lua, enquando a velha Bá balançava a cabeça e repetia:

“ ’Cês tá tudo variando. Num tá vendo que isso é filme de televisão?”

Creio que o passado capta nossa imaginação e nos seduz porque muito pouco dele permanece gravado nas nossas memórias. Se registrássemos tudo o que nos acontece nossos HDs explodiriam.
Da mesma forma, apenas os mais interessantes eventos pretéritos são registrados nas pretinhas e filmes. Quando lemos biografias ou assistimos ao passado em hollywoodianas produções, só conseguimos captar os pedaços que alguém – historiador, escritor, poeta, cineasta - achou dignos de registro.
Evidentemente, ninguém registra que, por exemplo, Einstein tinha que cortar as unhas do pé. O momento em que ele revelou sua Teoria da Relatividade Geral foi tão monumental, que nenhum biógrafo sério esmiuçaria as chatices da vida do gênio, aquelas exatamente iguais às nossas.

Falando nisso, conte até três e responda: qual foi o pior filme que você já assistiu na vida? Não sei se é assim com você, mas recordo apenas dos meus favoritos. Quanto às músicas a minha mente só tem em estoque os hits do passado entre TODOS os insucessos do presente.
Quando imaginamos o passado, nossa imaginação é obviamente guiada por tudo o que sabemos sobre o passado. E o que sabemos sobre o passado são os detalhes suculentos.
Nós caímos de amores por um passado fictício, por um sonho tão elusivo quanto o futuro. Sempre distorcido, sempre editado, que nos mantém longe da verdade do presente e da dor da realidade.

O passado é por nós traduzido como algo bonito, algo irrevogável, um lugar que será sempre melhor do que aquele onde estamos agora. Mas não é verdade.
Assim como o futuro imprevisível, o próprio passado é uma versão idealizada de algo, é como queremos que tenha sido e não como o vivemos na realidade. Quando olhamos para trás, usamos lentes cor-de-rosa e distorcemos as nossas memórias e lembramos apenas de como nossos cérebros optaram por distorcê-las.

A nossa memória edita o passado a cada vez que nos lembramos de alguma coisa e não só deletamos do enredo as partes ruins como também alteramos sutilmente todo o quadro para que ele vá ficando do jeito que gostaríamos que fosse.

“E quanto mais atrás e quanto mais vezes lembramos um evento e quanto mais vezes o contamos mais a memória o edita”, segundo um especialista em edição – o nosso! - e “é por isso que duas pessoas podem ter lembranças bem diferentes de um mesmo fato, cada uma jurando que a sua versão é a correta”.

A memória não é o registro mais preciso ou confiável. Cada vez que nos lembramos de um evento o reescrevemos em nossas mentes, deletando suas notas discordantes, adicionando bytes, descartando as cores escuras, alargando seus significados.

É como se nós organizassemos as nossas lembranças inteligentemente, em melodias matizadas de cores pastel que fazem sentido só para nós mas não traduzem a cacofonia real.

Não ansiamos pelas circunstâncias e situações do passado mas por algo mais. Ainda que inconscientemente desejamos os sonhos, as expectativas, o entusiasmo e a energia, o pensar grande de antigamente quando ousávamos imaginar e corríamos atrás dos nossos sonhos.

Por causa das qualidades distorcidas e agradáveis e luminosas das tintas com as quais colorimos o ontem, passamos dias embrulhados na fantasia dele, desejando por ela da mesma forma sedesejam os amantes. Esse desejo ardente pela idéia distorcida dos nossos passados é conhecido como.... nostalgia.

Nostalgia, como tristeza e felicidade, é um sentimento universal, é o anseio por uma impressão saneada do passado, aquilo que os psis chamam de memória de tela.
Não temos saudades do que foi aperfeiçoado, dispensamos uma recriação do passado, mas cultivamos sim uma combinação de muitas memórias diferentes, integradas entre si e, no processo, filtradas de todas as cenas sombrias e de todas as emoções negativas.
Nós nos lembramos suspirando de sentimentos fugazes, emoções e momentos de alegria. Mas não nos recordamos das horas de tristeza, dor e angústia antes e depois deles. Só nos lembramos do que nossas mentes tendenciosas escolheram para ser recordado.

A nostalgia não é só sobre lembranças ou memórias de pessoas, eventos, lugares e coisas, não se relaciona com uma memórias específicas, mas com um estado emocional.
Colocamos um estado emocional perfeito dentro de uma era, ou de um quadro específico, e optamos por idealizar esse tempo. Nós deduzimos que, já que nos recordamos de como era bom o sentimento da felicidade que sentíamos no parquinho, então nossa infância deve ter sido melhor do que é a nossa maturidade.

É como se aprisionássemos pedaços de nós mesmos em outras pessoas, livros, filmes, lugares, objetos inanimados e até cheiros.
Sim, é isso mesmo: cheiros. O odor é o sentido mais fortemente ligado à emoção devido à conexão direta do nariz com o lobo olfatório no sistema límbico - a área do cérebro considerada a sede das emoções.

É claro que uma menor ou maior nostalgia varia com a idade e as vivências e que os pensamentos nostálgicos aumentam a partir da meia-idade. Faz sentido que nos momentos mais turbulentos e instáveis de nossas vidas ansiemos pela simplicidade e segurança da infância.

Apesar de ser um troço delicioso recordar, talvez devêssemos pensar duas vezes antes de casarmos com o passado, para o resto de nossas vidas. A nostalgia extrema, a saudade incurável, o apego exagerado ao passado, a falta de compromisso com o futuro, e a recusa de desfrutar o presente pode ter outro nome: Dona Depressão.
Ou seja, como tudo nessa vida, “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Gastar muito tempo focado no passado pode deixar-nos despreparados para nos adaptar aos desafios atuais.

No entanto, mergulhar no passado para lembrar de como lidamos com pretéritas tensões pode ajudar no combate à melancolia, à solidão e à ansiedade e, é claro, no enfrentamento do agora.
O recordar compartilhado aproxima os casais, pais e filhos e velhos amigos. Serve como ponte entre as gerações.
Quando falamos amorosamente do passado, ficamos mais otimistas quanto ao futuro. Ao recordar o passado, ao escavar-lhe as camadas, muitas vezes encontramos nossos pedaços e respostas e forças para encarar o que está por vir.
Na nostalgia compartilhada compreendemos ainda as emoções uns dos outros e experimentamos a empatia, que nos liga como seres humanos, como partes de algo maior do que cada um de nós.

Mais poderoso do que o futuro, o passado nos dá razão para continuar. Ao invés de enfrentar o desconhecido, voltamos ao passado para lembrar porque a vida vale a pena ser vivida, e para reviver experiências preciosas.
Visitamos o passado para nos assegurar de que temos sim valor e que tivemos sim vidas significativas. Ao pensar nelas, entendemos que sobrevivemos aos nossos fracassos e perdas, que transformamos rugas e cicatrizes em mapas que os momentos bons que as teceram foram em maior número que os maus e nos libertamos do peso de uma vida que não foi cumprida.
E o substituímos pela certeza de não estamos sozinhos e apenas em trânsito, num voo cego de múltiplas conexões sem sentido.

Precisamos transformar as nossas caixas de recordações em inspiração e as caixas de correio das velhas portas de outrora em janelas abertas para o amanhã.

fotografia Moacir Pimentel


Que o passado nos faça acima de tudo entender que com os nossos muitos anos, o ritmo da aventura apenas se suavizou transformando a vida numa rotina que não precisa ser chata.

Talvez a grande ideia seja criar, dentro das tais de rotinas da “terceira idade”, novas viagens, novas leituras, novos aprendizados, novas experiências e muito principalmente, novos e enriquecedores significados, novas memórias. E fazer tudo isto calmamente. Prestando atenção. Degustando.

Quando consigo achar tempo dentro do meu tempo para realmente olhar bem de perto as minhas paisagens percebo que o presente é muito maior e mais densamente povoado: nele moram as nossas sementes que também já deram frutos. Viva nossos filhos e netos.

Nos invernos lusitanos enquanto tomamos aquela sopa de vinho quente rodeados pelas duas maltas, a de lá e a de cá, pelas duas juventudes, a brasileira e lusitana, e por tantos felizes saudosistas crônicos e grisalhos duvidamos que o melhor já tenha passado.

Lá na t’ rrinha, nas noites de inverno, a família reunida apesar do oceano que nos separa, eu duvido seriamente de que tudo o que nos resta é um enorme presente cada vez mais técnico e insípido e esse tal de futuro que nos prometeram mas que nunca chega.
E percebo que o presente de hoje também será lembrado pelas gerações futuras e que então, aqui mesmo, agora, temos que tentar fazer do presente um passado que as gerações futuras possam amar.
E me encho de uma emoção, de um sentimento que não sei bem como lhe explicar, nem que nome tem, mas recordo que ele mora em uns versinhos eternos do Quintana...

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E—ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na    [calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...





13 comentários:

  1. 1) Belo texto, ótima reflexão.

    2)Este maravilhoso blog tem se revelado um espaço de crônicas, artigos, poesias e afins que primam pela memória, pelas nossas histórias e então contamos ...

    3)Por falar em Memória, que o Moacir descreveu tão bem como nosso passado, bem vivo que está aqui conosco e não passou de todo, faço reverências à Mnemósine - a Deusa Grega da Memória.

    4)Aí é que está o acento gramatical: um professor nascido em Portugal e versado em grego, falava Mnemósine, outros, abrasileiravam para Mnemosine.

    5) De qualquer forma, bom sábado para todos, com as bênçãos da Deusa Grega da Memória - Mnemósine.

    6)Só grega ?

    7)A Deusa da Memória em Língua Portuguesa chama-se Saudade.

    8) Saudade Criativa, Construtiva, Saudável !

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  2. Mônica silva03/12/2016, 11:05

    Amei! Lindo texto, fotos fantásticas e você disse tudo: a vida é agora. O passado é gás para o presente e o futuro a Deus pertence. Curta cada minuto de suas férias, Moacir. E muito obrigada.

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  3. Flávia de Barros03/12/2016, 12:38

    Moacir,

    Um texto gostoso de ler mas capaz de fazer refletir sobre a vida e o que queremos deixar como legado para nossos filhos. As fotos e as experiências que você compartilha revelam sua alma de artista e um coração cristão. E o poema do Quintana é uma preciosidade. Parabéns. Boas férias para você e sua família e um abraço.

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  4. Tudo lindo, Moacir. Tudo lindo.

    Essa caixa postal de entrada então, que dá para um terreno baldio, aonde nada foi construído e predomina o abandono, é qualquer coisa. É como o título daquele filme Alice não mora mais aqui.
    Tão significante quanto são as camélias pelo chão, que se morrem.

    Adorei tudo. Tão significativo esse tudo... Você é um mestre. Joga nas onze, embora o termo tenha a sua graça.

    Dizem que para lidar com loucos nada melhor que imagens. O visual é bateu levou, digamos assim, tudo se percebe de imediato, sem muitas palavras ou delongas. Você é um artista.

    É para os loucos que os artistas existem. Os normais não prestam muita atenção neles. Ou prestam, sei lá.
    Abraço
    Ofelia

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  5. Dulce Regina03/12/2016, 13:12

    Meu querido amigo. Num passado recente, nos encontramos através de nossos comentários no blog do Setti, fomos nos revelando, nos mostrando como pessoas e percebemos uma profunda empatia entre nós, resultando daí uma amizade sincera e sólida. Somos Amigos Virtuais !!! E dos bons !!! Sendo assim, conhecemos o sentimento um do outro, e é isso que me comove, que me alegra, que me enriquece . Seus relatos são primorosos....SEMPRE ! Sei que suas pretinhas saem do fundo de sua alma e são elaboradas por sua inteligência brilhante com simplicidade, cor e beleza. É disso que precisamos para viver . Leveza, transparência , sem grandes pretensões e rebuscados. Deixemos nosso presente manifestar-se com todos os detalhes, de todas as formas, para que no futuro seja lembrado com saudade e carinho. Amo CAMÉLIAS ! Símbolo do Amor Eterno, elas adornaram a cerimônia do nosso casamento. E por último, esse verso de Quintana deixo-me " um quê " de imensa SAUDADE...mas cheia de ESPERANÇA . Meu abraço fraterno e amigo com muita gratidão. Dulce Regina

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  6. Márcio P. Rocha03/12/2016, 18:51

    Seus textos / artigos / escritos são sempre uma maravilha. Porém, dentro dessa maravilha toda a gente encontra sempre uma coisa que chama mais a atenção. A pérola:
    'Percebo que o presente de hoje também será lembrado pelas gerações futuras e que então, aqui mesmo, agora, temos que tentar fazer do presente um passado que as gerações futuras possam amar'.
    É isso aí.

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  7. Carlos Azevedo03/12/2016, 18:59

    Maravilha de texto, Moacir. Profundidade apropriada sem perder entretanto a objetividade. Inspiração total nos últimos parágrafos, parabéns

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  8. Wilson Baptista Junior03/12/2016, 20:01

    Moacir, um belo estudo, em última análise, das razões da saudade, e do que ela tem a ver com o modo porque fomos feitos.

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  9. Alexandre Sampaio03/12/2016, 21:28

    ' Dez! Nota dez! '

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  10. Maravilha, Moacir, maravilha!

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  11. Francisco Bendl04/12/2016, 11:37

    Tenho reiteradamente escrito que o meu amigo Pimentel tem talento e vocação primordiais para escritor, além de escrever sobe vários assuntos que domina com perfeição.

    A cada artigo, observa-se o requinte e a essência do tema postado, e que por serem tão bem apresentados somos impelidos a participar com comentários invariavelmente elogiosos pelo trabalho realizado com tanto brilhantismo.

    Dito isso, o artigo em tela sobre deixarmos o presente como um passado onde nossos descendentes possam admirá-lo, Pimentel deixa claro que precisamos ter um mínimo de inteligência para entender não a sua colocação – seus textos são endereçados para quem é muito inteligente, razão pela qual não me considero adequado sequer para tecer loas ao que registra -, mas para compreender a forma erudita como expõe seus pensamentos.

    E não haveria espaço mais apropriado que Conversas do Mano para este intento.

    A Lamentar, nas exposições primorosas de Pimentel, justamente uma certa inalcançabilidade às mentes dotadas de poucas luzes - a minha, por exemplo -, que encontrarão dificuldades para dimensionar a importância do relato e dar-lhe o devido significado pela pertinência e momento propício como foi escrito.

    Desta forma, a maioria do povo apenas se debate em viver o dia, pois o amanhã “Deus pensa”, deixando de se preocupar em ofertar um passado aos seus descendentes como base à implantação de um futuro sólido, bem construído, exatamente em cima de pilares profundos que sustentarão o peso de décadas anteriores e sem qualquer abalo que possa desestabilizá-lo.

    Não tem sido esta a nossa prevenção, consequentemente o futuro se torna uma incógnita, a ponto de, com raro brilhantismo, Pimentel finaliza a sua crônica com a ESPERANÇA, e não com a convicção que poderemos deixar como legado aos nossos filhos – meu caso, netos - a antevisão de um porvir assimilável, mas tão somente a sobrevivência da humanidade, e calcada em possibilidades subjetivas – a esperança -, menos em projetos que visem aplainar as arestas cada vez mais salientes quanto ao futuro da nossa espécie!

    Nessas alturas, e não por querer me comparar a Pimentel na sua inteligência e cultura porque sei que eu demonstraria explicitamente as minhas limitações, minhas dúvidas surgiriam entre viver despreocupadamente, porém alegre e com doses de uma certa irresponsabilidade ou, então, existir trabalhando para um futuro quem sabe auspicioso, em face de não se ter o apoio da maioria das pessoas, consequentemente uma vida sem o encanto da primeira porque aquela é divertida, enquanto esta sombria e indefinida, razão pela qual a esperança de que “dias melhores virão”.

    Será?!








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    1. Wilson Baptista Junior04/12/2016, 12:45

      Chico, a vida não tem que ser sem alegrias, sombria e indefinida enquanto se cuida de tentar lançar as sementes de um mundo melhor para os que vierem depois de nós. Esse próprio cuidado nos traz sua alegria, como quando vemos nossos filhos crescerem, como diz o evangelista, "em graça, estatura e sabedoria", e mais tarde os vemos por sua vez criando nossos netos com os princípios e os cuidados com que foram por nós criados, ainda que de uma maneira diferente para um mundo também já diferente. e sentimos em nossos corações a esperança de que o futuro vá ser melhor. Essa vida tem seus sacrifícios, mas é cheia de recompensas, e suas alegrias são maiores e mais duradouras do que as dos atos irresponsáveis que trazem depois suas próprias tristezas. Ela tem espaço para sermos alegres e nos alimenta a alma para sermos felizes. Nossos esforços não precisam resolver os problemas do mundo, mas se ajudarem um pouquinho a resolver os de alguém já estão acendendo uma luzinha. O próprio ato de escrever, aqui ou em outro lugar qualquer, é uma maneira de traduzir o que vai dentro de nossas almas para ajudar a fazer um mundo um pouquinho melhor. Basta que uma pessoa nos leia e se sinta um pouquinho mais contente por nos ter lido. E a gente um pouco mais contente por ter escrito. Ânimo, Chico, sacode essa tristeza e olha em volta para a tua família, resultado de tanta coisa que você já fez de bom.

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  12. Francisco Bendl04/12/2016, 15:46

    Meu caro amigo Wilson,

    Grato pelo comentário.

    Na verdade ao abordar esse aspecto proporcionado pelo Pimentel, eu quis me referir de uma forma geral ao que nos foge ao controle, ao que não podemos evitar, e que nos envolvem obrigatoriamente.

    Por exemplo, a poluição.

    Por mais que cuidemos do mundo e façamos a nossa parte para protegê-lo e preservá-lo, a ganância por lucros maiores impede que este mundo permaneça habitável até o fim dos tempos.

    Antes dessa extinção, certamente a humanidade e o planeta Terra desaparecerão como vítimas da insensatez, do dinheiro, do poder.

    E por mais que tentemos avisar que deveremos deixar um futuro para os filhos e netos esta realização não está conosco, mas às indústrias, aos mandatários das nações desenvolvidas, à responsabilidade desta gente que sabe estar destruindo o planeta, porém age como se este mundo fosse indestrutível.

    Refiro-me a essas condições, meu caro, que sobre elas não temos o menor controle, e que decidirão até quando a espécie humana continuará existindo.

    Outro abraço.
    Mais saúde e mais paz!

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