fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Vamos passar mais um
Natal na t’rrinha. Para além das lareiras enfeitadas de hera e azevinho, do Pai
Natal, das Cartuxas, do bacalhau da Consoada, do pão de ló escangalhado, da
lampreia de ovos, do queijo da Serra, do vinho do Porto, da sopa de vinho de
madrugada e da roupa velha no dia seguinte, os Natais de Portugal são coloridos
pelas camélias.
A camélia é a estrela
de romances e símbolo do amor eterno por excelência, talvez porque floresça no frio.
No Norte de Portugal as cameleiras são chamadas de japoneiras, fato que sempre
me intrigou até descobrir que a flor fora trazida da Ásia para Portugal depois
do contato e do fascínio seiscentista dos lusitanos pelo Japão.
Vindas das florestas
do sul daquele país as cameleiras
vingaram no Minho, onde os
jardins encheram-se dos arbustos podados em forma de cercas, ou subindo pelas
paredes ou debruçados das janelas, ou rente aos lagos e aos bancos.
Há cameleiras no meio
das matas, à beira dos rios, pelas estradas mas sempre colorindo com uma
variedade de cores e formas as vidas do outono até à primavera.
As camélias, às vezes,
são tão abundantes que chegam a esconder a folhagem e, neste caso, a planta
trata de eliminar sozinha as flores e folhas murchas! E então os relvados, as
trilhas e os caminhos são cobertos por camélias e pétalas.
Elas são belas até
mesmo moribundas atapetando os jardins.
Você deve estar se
perguntando o porque desse post botânico. Para começo de conversa porque só o
passado explica o presente das camélias. E, em seguida, porquê nos invernos antes
e depois das festas em família, além de beber e comer, se fica meio que ocioso
e então se passa a prestar atenção aos detalhes, a perceber coisas pequenas e a
conversar sobre elas.
Nos verões há tanto o
que fazer do lado de fora: as praias, os piqueniques nas serras, as sardinhadas
nas praças e quintais, as festas dos santos João, Pedro, Tirso, Eufêmia e
Ovídio, as Feiras de gastronomia, artesanato, chocolate e aquela medieval em
Santa Maria da Feira. Os passeios gastronômicos para a Mealhada, Melgaço, Ponte
de Lima, as papas de sarrabulho na Trofa, as bandas tocando nos parques, a
movida no estupendo Algarve.
No inverno não rola
nada disso. Em vez, as pessoas se cobrem por quilos de roupa, se protegem da
inclemência da natureza entre suas paredes, fecham todas as portas e janelas. E
começam as intermináveis conversas em volta de grandes mesas em velhas cozinhas,
enquanto se bebe tinto e se enfrenta o frio e a chuva e o vento lá fora pegando
mais lenha para alimentar o fogo das fornalhas e lareiras cujas pedras frontais
chegam a ter metros de comprimento.
As pedras, aliás, são
um dos temas recorrentes das minhas fotos invernais. Pode ser uma gárgula de bunda virada para a inimiga
Espanha, um telhado de xisto, um velho sino num clássico umbral.
Quem sabe uma fonte antiga na qual uma senhora esteja
lavando roupa, uma janela manuelina, um muro bordado de hera, uma escultura pintada
pela pátina do tempo, uma ponte romana, as serras parecendo nuvens escuras no
horizonte?
As fotos de inverno têm a cara do passado e é disso
que geralmente se termina falando nas frias noites de dezembro: do PASSADO.
E a
pergunta de hoje é porquê? Porque gostamos tanto do passado?
Tudo bem que todos nós bichos-homens queremos
aprender um pouco mais sobre de onde viemos e não há melhor oportunidade para
compartilhar velhas histórias do que nas reuniões e festas familiares.
Sem dúvida é a família a ambiência
apropriada para fazer essa conexão emocional com os meninos, rapazes e homens
mais jovens que fomos até chegarmos a ser os caras que somos hoje teclando aqui
nesse blog.
Nessa viagem no tempo que ajuda
a manter uma sensação de continuidade e de identidade, algumas das experiências
que protagonizamos viram lendas do clã e continuam sendo contadas décadas
depois de terem acontecido.
Eu me divirto com as
peripécias de meus cunhados que, quando no Liceu, iam de bicicleta até Mindelo,
lá pegavam o comboio até Vila do Conde, fizesse chuva ou sol, aprontando todas
pelas léguas tiranas.
Sei de cor e salteado como um
deles pulou da ponte romana sobre o Ave e quase perdeu um pé nos cacos de uma
garrafa enterrada no leito do rio. E de como o outro, certa vez, escorregou
pela chaminé abaixo de um estábulo e terminou aterrissando em um aido, entre
uma vaca bravia e a sua cria.
E como não me deliciar pela
quinquagésima vez com a narrativa de como a galera entrou sorrateira no sotão
empoeirado do velho Senhor Alferes e achou um gramofone que foi desmontado e
polido e posto novo e que, quando funcionou, a agulha foi girando e gemendo em
volta do compacto:
“Cobre-me, cobre-me, cobre-me que eu tenho frio...”(rsrs)
Quando as músicas e as lembranças do ontem nos visitam, entendemos que,
no passado, a inocência era nossa maior marca. É justamente essa inocência, essa formidável infância, como dizia Pessoa,
que resgatamos ao lembrar do passado. Ninguém se perde no retorno.
Entre um tuga e outro, eu também solto o verbo, e conto-lhes os causos
da vida dividida entre o Posto 4 e as férias de fim de ano em Pernambuco,
quando primeiro eu fui menino e depois se não fui hippie, com certeza era um
colega deles na falta de rumo.
São imagens belíssimas das esquinas da minha
memória: os beijos dos velhos avôs e avós, os abraços de minha mãe, as
cavalhadas, os açudes, os banhos de cachoeira, os estilingues, os cozinhados
das primas - pra quê tanta prima, meudeus? - o leite quente esguichado em uma
caneca de ágata direto da teta da vaca, os mares verdes de cana caiana, o Corso
na Rua da Imperatriz, as lanças perfumes que os meus primos mais velhos
cheiravam nos cangotes das moças.
Tinha a Jaqueira, a Casa do Navio da Boa
Viagem, a festa da Mocidade nas férias em preto e branco da minha infância,
povoadas no entanto pelas mangas rosas que até hoje só vale comer se for se
lambuzando.
Não confie em ninguém com mais de trinta anos, aconselhava o Marcos Vale enquanto o mundo mudava a cada dia. Deus
estava morto hoje e vivo na Índia na manhã seguinte, ou numa canção dos Beatles
ao som de uma cítara, escutada em reuniões onde - em meio a incenso! - as “sacanagens”
eram regadas a Cuba Libre.
Explico: naquele tempo “sacanagens” cariocas eram salsicha e azeitona
enfiadas em palitos. E tome: “The answer, my friend, is
blowing in the wind”...
Os tugas se divertem com meus bytes de memórias do início dos anos setenta, com os
meus “rolos” com as meninas más das famílias boas e as meninas boas das
famílias más. Quantas vezes fomos de gaiatos não nos navios mas na mesa de
doces dos casamentos de perfeitos desconhecidos?
E a malta toda ouve salivando quando lhes explico como era uma delícia
dividir um cachorro-quente da Geneal por dois! E a minha gastronômica narrativa
se torna irresistível quando recito a maravilha que era levar a namoradinha
para comer um sanduíche INTEIRO de lombinho de porco com abacaxi lá no Cervantes,
quando a mesada saía, é claro!
Mas sinceramente? Eram duros aqueles tempos quando para se comprar um
vinil tinha que ter – no mínimo - cinco cotistas! E quem sabia inglês traduzia
a letra. Quando havia mais de um sabendo, era um inferno: NUNCA uma tradução
coincidia com a outra!
Tempos quando eu pedia para participar da pelada de vôlei dos
“coroas” e, na primeira oportunidade, corria com a bola calçadão afora,
deixando-a na rua no meio dos carros passando!
Roubava as traves, de madrugada, dos times de futebol de areia, deixando-
as em seguida, no posto do adversário.
E deixava também gravador de K7 - lembra-se? - no banheiro nas
festinhas, para saber quais meninas estavam a fim de quem. E se apostava
corrida de carro e deixava o “vencedor” sem noção esperando o resto da noite
pela nossa chegada. Tínhamos mais o que fazer.
Tempos em que se podia caminhar a pé de madrugada, assobiando com a
certeza de que, no fundo, o mundo teria solução.
Teve? Terá? Não sei.
Mas todos concordam que o
passado era um tempo absolutamente fantástico. Pudera! Nele havia gerações mais velhas para nos
tirar as dúvidas e para nos dizer who was who naqueles velhos retratos dos
álbuns de fotografias com cantoneiras e folhas de papel transparente.
O passado era feito de lendas no tom
de sépia das fotos românticas e ovaladas, das noivas rendadas antepassadas e do
dourado daqueles cachos de cabelo dos bebês de outrora, colados nos mofados
álbuns de retratos.
fotografia Moacir Pimentel |
Mas se
tinha a impressão de que o futuro viria em luminoso technicolor enquanto que
hoje parece que perdemos a noção das nossas
origens e é como se já não nos lembrassemos que estamos vindo e indo. E de como
é bom esse movimento e de que ainda vale a pena desembarcar.
Quando chegamos ao inverno da vida e
adentramos a casa dos sessenta, muito poucos das velhas gerações, permanecem entre
nós e o Rubicão e a estrada que já percorremos, coberta pelas camélias
moribundas e pelas folhas mortas, sem dúvida é mais longa do que o caminho à
nossa frente até a linha de chegada. Tem mais.
Um aspecto
inquietante de envelhecer é essa impressão que se
tem de que a vida de repente começou a acelerar. O tempo hoje passa correndo por nós, enquanto eu ainda
lembro muito bem que, entre as primas das férias de fim de ano no Nordeste
materno e as brincadeiras juninas na Serra paterna, os
dias rolavam em ritmo de eternidade. As férias que não chegavam nunca!
Talvez acreditemos
que navegando pelo passado possamos retardar o
tempo ou dar a ele um ritmo menos cruel. Só que
pode ser o contrário.
Tenho uma vaga
impressão de que diante do familiar o tempo parece se contrair e de que, em vez, diante do novo ele se expande.
Na juventude,
tínhamos uma experiência absolutamente nova, subjetiva ou
objetiva, a cada hora do dia. A apreensão era vívida, a adrenalina constante, a curiosidade uma outra pele.
Daí as nossas
lembranças daquela época serem tão emocionantes, tão reais, enquanto que hoje os
dias nos passam como paisagens contempladas de longe pela janela de um carro em
movimento numa viagem rápida por demais.
O fato é
que, seja porque for, todos gostam
de, vez por outra, voltar ao passado e de enrolar-se nele como um cobertor
quente, que cobre todas as incógnitas frias do amanhã e todas as realidades duras
do hoje.
De mergulhar no calor de passados dias de sol, praias brancas e mundos da
lua onde as preocupações se limitavam ao sorvete na hora do lanche e à televisão
depois da escola.
De reviver momentos perfeitos cheios de pura alegria, passeios de sonho, idos
carnavais e coloridos filmes, onde e quando nada nunca dava errado. Será?
Quem dentre nós já não desejou pertencer a um tempo
passado? Os artistas em nós adorariam ter vivido enquanto Picasso e Dali estavam
criando suas obras-primas e os nossos cientistas sem patentes pulariam de puro
júbilo se lhes fosse dada a chance de testemunhar os anos dourados nos quais Einstein,
ou Darwin ou Newton estavam prestes a mudar o mundo para sempre.
E os projetos de escritores do blog bem que se
divertiriam se tivessem vivido à espera de mais uma nova novela de William Shakespeare
enquanto devoravam a recém-publicada história daquele engenhoso fidalgo, à luz
de velas.
Que garoto já não sonhou ser Robin Hood na floresta
de Sherwood, Marco Polo na China, Cabral na proa de uma
caravela ouvindo terra à vista e pulando na areia para brincar sem culpas com
as Iracemas?
Quem não ia querer ser bandeirante, ou viver
aqueles românticos tempos vitorianos, ou ver Gandhi marchando pela liberdade
indiana, ou libertar Paris dos nazi e, como desejam os meus já nostálgicos filhos,
acompanhar os americanos pousando na lua, enquando a velha Bá balançava a
cabeça e repetia:
“ ’Cês tá tudo variando. Num
tá vendo que isso é filme de televisão?”
Creio que o passado capta nossa imaginação e nos
seduz porque muito pouco dele permanece gravado nas nossas memórias. Se
registrássemos tudo o que nos acontece nossos HDs explodiriam.
Da mesma forma, apenas os mais interessantes eventos
pretéritos são registrados nas pretinhas e filmes. Quando lemos biografias ou assistimos
ao passado em hollywoodianas produções, só conseguimos captar os pedaços que alguém
– historiador, escritor, poeta, cineasta - achou dignos de registro.
Evidentemente, ninguém registra que, por exemplo,
Einstein tinha que cortar as unhas do pé. O momento em que ele revelou sua
Teoria da Relatividade Geral foi tão monumental, que nenhum biógrafo sério esmiuçaria
as chatices da vida do gênio, aquelas exatamente iguais às nossas.
Falando nisso, conte até três e responda: qual foi o
pior filme que você já assistiu na vida? Não sei se é assim com você, mas recordo
apenas dos meus favoritos. Quanto às músicas a minha mente só tem em estoque os
hits do passado entre TODOS os insucessos do presente.
Quando imaginamos o passado, nossa imaginação é
obviamente guiada por tudo o que sabemos sobre o passado. E o que sabemos sobre
o passado são os detalhes suculentos.
Nós caímos de amores por um passado fictício, por
um sonho tão elusivo quanto o futuro. Sempre distorcido, sempre editado, que nos
mantém longe da verdade do presente e da dor da realidade.
O passado é por nós traduzido como algo bonito,
algo irrevogável, um lugar que será sempre melhor do que aquele onde estamos
agora. Mas não é verdade.
Assim como o futuro imprevisível, o próprio passado
é uma versão idealizada de algo, é como queremos que tenha sido e não como o vivemos
na realidade. Quando olhamos para trás, usamos lentes cor-de-rosa e distorcemos
as nossas memórias e lembramos apenas de como nossos cérebros optaram por
distorcê-las.
A nossa memória edita o passado a cada vez que
nos lembramos de alguma coisa e não só deletamos do enredo as partes ruins como
também alteramos sutilmente todo o quadro para que ele vá ficando do jeito que
gostaríamos que fosse.
“E quanto mais atrás e quanto mais vezes
lembramos um evento e quanto mais vezes o contamos mais a memória o edita”, segundo um especialista em edição – o nosso!
- e “é por isso que duas pessoas podem
ter lembranças bem diferentes de um mesmo fato, cada uma jurando que a sua
versão é a correta”.
A memória não é o registro mais preciso ou confiável. Cada vez que nos
lembramos de um evento o reescrevemos em nossas mentes, deletando suas notas
discordantes, adicionando bytes, descartando as cores escuras, alargando seus
significados.
É como se nós organizassemos as nossas lembranças inteligentemente, em
melodias matizadas de cores pastel que fazem sentido só para nós mas não
traduzem a cacofonia real.
Não
ansiamos pelas circunstâncias e
situações do passado mas por algo mais. Ainda que inconscientemente desejamos
os sonhos, as expectativas, o entusiasmo e a energia, o pensar grande de
antigamente quando ousávamos imaginar e corríamos atrás dos nossos sonhos.
Por causa das qualidades distorcidas e agradáveis e
luminosas das tintas com as quais colorimos o ontem, passamos dias embrulhados
na fantasia dele, desejando por ela da mesma forma sedesejam os amantes. Esse
desejo ardente pela idéia distorcida dos nossos passados é conhecido como.... nostalgia.
Nostalgia, como tristeza e felicidade, é um
sentimento universal, é o anseio por uma impressão saneada do passado, aquilo
que os psis chamam de memória de tela.
Não temos saudades do que foi aperfeiçoado,
dispensamos uma recriação do passado, mas cultivamos sim uma combinação de
muitas memórias diferentes, integradas entre si e, no processo, filtradas de
todas as cenas sombrias e de todas as emoções negativas.
Nós nos lembramos suspirando de sentimentos
fugazes, emoções e momentos de alegria. Mas não nos recordamos das horas de
tristeza, dor e angústia antes e depois deles. Só nos lembramos do que nossas mentes
tendenciosas escolheram para ser recordado.
A nostalgia não é só sobre lembranças ou memórias de
pessoas, eventos, lugares e coisas, não se relaciona com uma memórias
específicas, mas com um estado emocional.
Colocamos um estado emocional perfeito dentro de
uma era, ou de um quadro específico, e optamos por idealizar esse tempo. Nós deduzimos
que, já que nos recordamos de como era bom o sentimento da felicidade que
sentíamos no parquinho, então nossa infância deve ter sido melhor do que é a nossa
maturidade.
É como se aprisionássemos pedaços de nós mesmos em outras
pessoas, livros, filmes, lugares, objetos inanimados e até cheiros.
Sim, é isso mesmo: cheiros. O odor é o sentido mais
fortemente ligado à emoção devido à conexão direta do nariz com o lobo
olfatório no sistema límbico - a área do cérebro considerada a sede das
emoções.
É claro que uma menor ou maior nostalgia varia com
a idade e as vivências e que os pensamentos nostálgicos aumentam a partir da
meia-idade. Faz sentido que nos momentos mais turbulentos e instáveis de nossas
vidas ansiemos pela simplicidade e segurança da infância.
Apesar de ser um troço delicioso recordar, talvez
devêssemos pensar duas vezes antes de casarmos com o passado, para o resto de
nossas vidas. A nostalgia extrema, a saudade incurável, o apego exagerado ao
passado, a falta de compromisso com o futuro, e a recusa de desfrutar o
presente pode ter outro nome: Dona Depressão.
Ou seja, como tudo nessa vida, “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Gastar muito
tempo focado no passado pode deixar-nos despreparados para nos adaptar aos
desafios atuais.
No entanto, mergulhar no passado para lembrar de
como lidamos com pretéritas tensões pode ajudar no combate à melancolia, à
solidão e à ansiedade e, é claro, no enfrentamento do agora.
O recordar compartilhado aproxima os casais, pais e
filhos e velhos amigos. Serve como ponte entre as gerações.
Quando falamos amorosamente do passado, ficamos mais
otimistas quanto ao futuro. Ao recordar o passado, ao escavar-lhe as camadas,
muitas vezes encontramos nossos pedaços e respostas e forças para encarar o que
está por vir.
Na nostalgia compartilhada compreendemos ainda as
emoções uns dos outros e experimentamos a empatia, que nos liga como seres
humanos, como partes de algo maior do que cada um de nós.
Mais poderoso do que o futuro, o passado nos dá
razão para continuar. Ao invés de enfrentar o desconhecido, voltamos ao passado
para lembrar porque a vida vale a pena ser vivida, e para reviver experiências preciosas.
Visitamos o passado para nos assegurar de que temos
sim valor e que tivemos sim vidas significativas. Ao pensar nelas, entendemos
que sobrevivemos aos nossos fracassos e perdas, que transformamos rugas e
cicatrizes em mapas que os momentos bons que as teceram foram em maior número
que os maus e nos libertamos do peso de uma vida que não foi cumprida.
E o
substituímos pela certeza de não estamos sozinhos e apenas em trânsito, num voo
cego de múltiplas conexões sem sentido.
Precisamos transformar as nossas caixas de recordações em inspiração e as
caixas de correio das velhas portas de outrora em janelas abertas para o
amanhã.
fotografia Moacir Pimentel |
Que o passado nos
faça acima de tudo entender que com os nossos
muitos anos, o ritmo da aventura apenas se
suavizou transformando a vida numa rotina que não
precisa ser chata.
Talvez a grande ideia
seja criar, dentro das tais de rotinas da “terceira idade”, novas viagens,
novas leituras, novos aprendizados, novas
experiências e muito principalmente, novos e
enriquecedores significados, novas memórias. E fazer tudo isto
calmamente. Prestando atenção. Degustando.
Quando consigo achar
tempo dentro do meu tempo para realmente olhar bem de perto as minhas paisagens
percebo que o presente é muito maior e
mais densamente povoado: nele moram as nossas sementes que também já deram
frutos. Viva nossos filhos e netos.
Nos invernos lusitanos enquanto tomamos aquela sopa de vinho quente rodeados
pelas duas maltas, a de lá e a de cá, pelas duas juventudes, a brasileira e
lusitana, e por tantos felizes saudosistas crônicos e grisalhos duvidamos que o
melhor já tenha passado.
Lá na t’
rrinha, nas noites de inverno, a família reunida apesar do oceano que nos
separa, eu duvido seriamente de que tudo o que nos resta é um enorme presente
cada vez mais técnico e insípido e esse tal de futuro que nos prometeram mas
que nunca chega.
E percebo que o presente de hoje também será lembrado pelas gerações futuras e que então, aqui
mesmo, agora, temos que tentar fazer do presente um passado que as gerações
futuras possam amar.
E me encho de uma emoção, de um sentimento que não
sei bem como lhe explicar, nem que nome tem, mas recordo que ele mora em uns
versinhos eternos do Quintana...
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E—ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na [calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
1) Belo texto, ótima reflexão.
ResponderExcluir2)Este maravilhoso blog tem se revelado um espaço de crônicas, artigos, poesias e afins que primam pela memória, pelas nossas histórias e então contamos ...
3)Por falar em Memória, que o Moacir descreveu tão bem como nosso passado, bem vivo que está aqui conosco e não passou de todo, faço reverências à Mnemósine - a Deusa Grega da Memória.
4)Aí é que está o acento gramatical: um professor nascido em Portugal e versado em grego, falava Mnemósine, outros, abrasileiravam para Mnemosine.
5) De qualquer forma, bom sábado para todos, com as bênçãos da Deusa Grega da Memória - Mnemósine.
6)Só grega ?
7)A Deusa da Memória em Língua Portuguesa chama-se Saudade.
8) Saudade Criativa, Construtiva, Saudável !
Amei! Lindo texto, fotos fantásticas e você disse tudo: a vida é agora. O passado é gás para o presente e o futuro a Deus pertence. Curta cada minuto de suas férias, Moacir. E muito obrigada.
ResponderExcluirMoacir,
ResponderExcluirUm texto gostoso de ler mas capaz de fazer refletir sobre a vida e o que queremos deixar como legado para nossos filhos. As fotos e as experiências que você compartilha revelam sua alma de artista e um coração cristão. E o poema do Quintana é uma preciosidade. Parabéns. Boas férias para você e sua família e um abraço.
Tudo lindo, Moacir. Tudo lindo.
ResponderExcluirEssa caixa postal de entrada então, que dá para um terreno baldio, aonde nada foi construído e predomina o abandono, é qualquer coisa. É como o título daquele filme Alice não mora mais aqui.
Tão significante quanto são as camélias pelo chão, que se morrem.
Adorei tudo. Tão significativo esse tudo... Você é um mestre. Joga nas onze, embora o termo tenha a sua graça.
Dizem que para lidar com loucos nada melhor que imagens. O visual é bateu levou, digamos assim, tudo se percebe de imediato, sem muitas palavras ou delongas. Você é um artista.
É para os loucos que os artistas existem. Os normais não prestam muita atenção neles. Ou prestam, sei lá.
Abraço
Ofelia
Meu querido amigo. Num passado recente, nos encontramos através de nossos comentários no blog do Setti, fomos nos revelando, nos mostrando como pessoas e percebemos uma profunda empatia entre nós, resultando daí uma amizade sincera e sólida. Somos Amigos Virtuais !!! E dos bons !!! Sendo assim, conhecemos o sentimento um do outro, e é isso que me comove, que me alegra, que me enriquece . Seus relatos são primorosos....SEMPRE ! Sei que suas pretinhas saem do fundo de sua alma e são elaboradas por sua inteligência brilhante com simplicidade, cor e beleza. É disso que precisamos para viver . Leveza, transparência , sem grandes pretensões e rebuscados. Deixemos nosso presente manifestar-se com todos os detalhes, de todas as formas, para que no futuro seja lembrado com saudade e carinho. Amo CAMÉLIAS ! Símbolo do Amor Eterno, elas adornaram a cerimônia do nosso casamento. E por último, esse verso de Quintana deixo-me " um quê " de imensa SAUDADE...mas cheia de ESPERANÇA . Meu abraço fraterno e amigo com muita gratidão. Dulce Regina
ResponderExcluirSeus textos / artigos / escritos são sempre uma maravilha. Porém, dentro dessa maravilha toda a gente encontra sempre uma coisa que chama mais a atenção. A pérola:
ResponderExcluir'Percebo que o presente de hoje também será lembrado pelas gerações futuras e que então, aqui mesmo, agora, temos que tentar fazer do presente um passado que as gerações futuras possam amar'.
É isso aí.
Maravilha de texto, Moacir. Profundidade apropriada sem perder entretanto a objetividade. Inspiração total nos últimos parágrafos, parabéns
ResponderExcluirMoacir, um belo estudo, em última análise, das razões da saudade, e do que ela tem a ver com o modo porque fomos feitos.
ResponderExcluir' Dez! Nota dez! '
ResponderExcluirMaravilha, Moacir, maravilha!
ResponderExcluirTenho reiteradamente escrito que o meu amigo Pimentel tem talento e vocação primordiais para escritor, além de escrever sobe vários assuntos que domina com perfeição.
ResponderExcluirA cada artigo, observa-se o requinte e a essência do tema postado, e que por serem tão bem apresentados somos impelidos a participar com comentários invariavelmente elogiosos pelo trabalho realizado com tanto brilhantismo.
Dito isso, o artigo em tela sobre deixarmos o presente como um passado onde nossos descendentes possam admirá-lo, Pimentel deixa claro que precisamos ter um mínimo de inteligência para entender não a sua colocação – seus textos são endereçados para quem é muito inteligente, razão pela qual não me considero adequado sequer para tecer loas ao que registra -, mas para compreender a forma erudita como expõe seus pensamentos.
E não haveria espaço mais apropriado que Conversas do Mano para este intento.
A Lamentar, nas exposições primorosas de Pimentel, justamente uma certa inalcançabilidade às mentes dotadas de poucas luzes - a minha, por exemplo -, que encontrarão dificuldades para dimensionar a importância do relato e dar-lhe o devido significado pela pertinência e momento propício como foi escrito.
Desta forma, a maioria do povo apenas se debate em viver o dia, pois o amanhã “Deus pensa”, deixando de se preocupar em ofertar um passado aos seus descendentes como base à implantação de um futuro sólido, bem construído, exatamente em cima de pilares profundos que sustentarão o peso de décadas anteriores e sem qualquer abalo que possa desestabilizá-lo.
Não tem sido esta a nossa prevenção, consequentemente o futuro se torna uma incógnita, a ponto de, com raro brilhantismo, Pimentel finaliza a sua crônica com a ESPERANÇA, e não com a convicção que poderemos deixar como legado aos nossos filhos – meu caso, netos - a antevisão de um porvir assimilável, mas tão somente a sobrevivência da humanidade, e calcada em possibilidades subjetivas – a esperança -, menos em projetos que visem aplainar as arestas cada vez mais salientes quanto ao futuro da nossa espécie!
Nessas alturas, e não por querer me comparar a Pimentel na sua inteligência e cultura porque sei que eu demonstraria explicitamente as minhas limitações, minhas dúvidas surgiriam entre viver despreocupadamente, porém alegre e com doses de uma certa irresponsabilidade ou, então, existir trabalhando para um futuro quem sabe auspicioso, em face de não se ter o apoio da maioria das pessoas, consequentemente uma vida sem o encanto da primeira porque aquela é divertida, enquanto esta sombria e indefinida, razão pela qual a esperança de que “dias melhores virão”.
Será?!
Chico, a vida não tem que ser sem alegrias, sombria e indefinida enquanto se cuida de tentar lançar as sementes de um mundo melhor para os que vierem depois de nós. Esse próprio cuidado nos traz sua alegria, como quando vemos nossos filhos crescerem, como diz o evangelista, "em graça, estatura e sabedoria", e mais tarde os vemos por sua vez criando nossos netos com os princípios e os cuidados com que foram por nós criados, ainda que de uma maneira diferente para um mundo também já diferente. e sentimos em nossos corações a esperança de que o futuro vá ser melhor. Essa vida tem seus sacrifícios, mas é cheia de recompensas, e suas alegrias são maiores e mais duradouras do que as dos atos irresponsáveis que trazem depois suas próprias tristezas. Ela tem espaço para sermos alegres e nos alimenta a alma para sermos felizes. Nossos esforços não precisam resolver os problemas do mundo, mas se ajudarem um pouquinho a resolver os de alguém já estão acendendo uma luzinha. O próprio ato de escrever, aqui ou em outro lugar qualquer, é uma maneira de traduzir o que vai dentro de nossas almas para ajudar a fazer um mundo um pouquinho melhor. Basta que uma pessoa nos leia e se sinta um pouquinho mais contente por nos ter lido. E a gente um pouco mais contente por ter escrito. Ânimo, Chico, sacode essa tristeza e olha em volta para a tua família, resultado de tanta coisa que você já fez de bom.
ExcluirMeu caro amigo Wilson,
ResponderExcluirGrato pelo comentário.
Na verdade ao abordar esse aspecto proporcionado pelo Pimentel, eu quis me referir de uma forma geral ao que nos foge ao controle, ao que não podemos evitar, e que nos envolvem obrigatoriamente.
Por exemplo, a poluição.
Por mais que cuidemos do mundo e façamos a nossa parte para protegê-lo e preservá-lo, a ganância por lucros maiores impede que este mundo permaneça habitável até o fim dos tempos.
Antes dessa extinção, certamente a humanidade e o planeta Terra desaparecerão como vítimas da insensatez, do dinheiro, do poder.
E por mais que tentemos avisar que deveremos deixar um futuro para os filhos e netos esta realização não está conosco, mas às indústrias, aos mandatários das nações desenvolvidas, à responsabilidade desta gente que sabe estar destruindo o planeta, porém age como se este mundo fosse indestrutível.
Refiro-me a essas condições, meu caro, que sobre elas não temos o menor controle, e que decidirão até quando a espécie humana continuará existindo.
Outro abraço.
Mais saúde e mais paz!