imagem exame - abril.com |
Heraldo Palmeira
Mal abri os olhos e fui ouvindo a
notícia da queda do avião. Incrédulo como todos mundo a fora. Goste-se ou não
de futebol, estávamos diante de um drama humano que vitimou atletas, comissão
técnica, dirigentes, jornalistas e tripulantes.
Saí de casa completamente murcho,
acompanhando as primeiras especulações a respeito da causa do acidente, que desembocaram
com grau quase definitivo de certeza para uma estupidez humana: fazer mais com
menos em favor do lucro, correr riscos absurdos e contar com a negligência dos
órgãos que deveriam controlar e fiscalizar o tráfego aéreo.
A tragédia deu início a uma
inquietação natural, inclusive de jogadores, visando a discutir o transporte
dos times. Não é possível que uma entidade como a Fifa permita a continuidade
de tamanho amadorismo num item que pode significar vida ou morte.
Da mesma maneira que certifica
rigorosamente fornecedores de material esportivo, publicidade, transmissão de
jogos, hotéis e o escambau, parece óbvio esperar que a Velha Senhora dona do
jogo da bola estenda esse padrão de exigência às empresas de aviação,
principalmente essas de voos fretados.
Soa como piada, mas já foi dito
que a LaMia conquistou tantos clientes porque personalizava o avião com o
escudo de clubes e seleções que transportava. “Esquecer” de reabastecer o
tanque era apenas um detalhe operacional em busca de rentabilidade? É
assustador!
Afinal, já circulam rumores de
que a poderosa seleção da Argentina chegou em Belo Horizonte – no jogo recente contra
o Brasil, pelas Eliminatórias da Copa 2018 – naquele mesmo avião, e com reserva
de combustível para apenas mais 15 minutos de voo. Pelo visto, por muito pouco
não sediamos também uma tragédia com Messi & Cia.
Absorto no desalento, nem puxei a
costumeira conversa com o motorista do táxi. Vi de soslaio os malabaristas do
sinal vermelho iniciarem seu espetáculo ligeiro na faixa de pedestres, até o
corte para a luz verde que encerra o show mundano sem direito a bis. Pela
janela, a demonstração do vazio humano que nos cerca: um mendigo em estado
lastimável dormia jogado na calçada, enquanto outro, menos arrasado pela vida,
chegou devagarinho e roubou duas notas de dois reais que o outro guardava na
mão fechada.
O ladrão foi embora sorrateiro, enrolado
num pano verde surrado, como um manto sem esperança, sem ser notado pela vítima
sonolenta. Ambos ocupados apenas com suas próprias tragédias cotidianas,
alheios à queda do avião.
Ao longo do dia, enquanto
sobreviventes e corpos foram removidos dos destroços, as coisas foram se
ajustando dentro da absoluta falta de sentido desse tipo de perda coletiva que
arrasa nosso moral, nossa esperança e modifica nossa visão de mundo.
O primeiro sopro de conforto veio
do presidente do Atlético Nacional da Colômbia, que seria o adversário da
Chapecoense, propondo que a Conmebol reconheça o time catarinense como legítimo
campeão da Copa Sul-Americana 2016. Independentemente da decisão da
Confederação, ficou impresso o gesto magno.
O português Benfica se
prontificou a ajudar, inclusive emprestando jogadores. O paraguaio Libertad
ofereceu toda a equipe para a Chape recomeçar a jornada. Depois, os clubes
brasileiros propondo que cada um empreste um jogador para que a trajetória não
seja interrompida, e que a CBF mantenha o time na Série A durante três anos, sem
risco de rebaixamento.
Mais adiante, as manifestações de
times e grandes jogadores ao redor do mundo, até o espetáculo arrepiante no
estádio do Liverpool, no minuto de silêncio mais estrondoso que já se ouviu, até
calar fundo no aplauso emocionado da multidão inglesa depois do apito do
árbitro.
Depois, cenas inéditas e
inesquecíveis. Encerramento do Jornal Nacional protagonizado por uma multidão
de jornalistas emocionados pela perda de tantos colegas e aplaudindo todos os mortos
por um tempo que pareceu eterno. Em Medellín e Chapecó, torcedores lotando as
arquibancadas em momentos de silêncio, aplausos e abraços emocionados no exato
horário do jogo que a tragédia cancelou.
Fiquei pensando como o quase pode
virar tiro certeiro pela mão do destino. Aquele quase gol no magistral corta-luz
de Pelé contra o Uruguai, na Copa de 1970, virou gol de placa na mente de todo
amante do futebol.
Como aquele quase gol do San
Lorenzo da Argentina – o time do amor do papa –, interrompido no pé do goleiro
Danilo Padilha. Mais um quase gol do destino, saudado aos berros pelo locutor Deva
Pascovicci, do canal Fox, outra vítima do acidente: “Foi o Condá, foi espírito
de Condá que salvou essa aí! Danilo, o espírito de Condá estava com você agora,
Danilo!”. Referência mística ao cacique Vitorino Condá, grande líder do povo
indígena Kaingang que ocupava o oeste de Santa Catarina, e que dá nome ao
estádio da Chapecoense com direito a estátua na entrada social.
A defesa espetacular aos 48m37,
nos acréscimos do segundo tempo, colocou todo o time da Chapecoense e as demais
vítimas rumo à final. E dentro do avião do voo fatal. Quem não gostaria hoje de
rever a bola entrando e outro tipo de choro, o da derrota, o de uma quase final
em Chapecó? Restou mais um quase gol que agora faz uma falta brutal na história
do futebol.
Alaíde Padilha, a mãe do goleiro,
fez um gol de placa ao desmontar o repórter Guido Nunes, do SporTV. Com sua
capacidade de se reinventar na própria dor, encontrou forças para consolar o
jornalista em prantos e acolhê-lo como filho num abraço magnânimo que só as
mães são capazes de oferecer. Como se fosse pouco, ainda agradeceu pelo
reconhecimento da imprensa ao trabalho dos jogadores que se foram. Golaço,
daqueles de estufar as redes, de entrar para a História, cuja beleza foi reconhecida
pela ovação que a torcida destinou a ela durante aquela volta olímpica da
saudade, no dia do funeral.
O passar dos dias foi revelando a
extraordinária relação construída entre a cidade e seu time ao longo do tempo,
algo que ultrapassa muito o ambiente do gramado e das arquibancadas. Bem mais
do que um clube de futebol, ergueram ali um projeto de boas práticas
empresariais, alcance social e cumplicidade, em que os jogadores sabiam do seu
papel formador numa comunidade que, como uma grande família, se realimentava
com as conquistas em campo e agora terá de conviver apenas com o legado dos
seus meninos.
Acumulamos uma dívida de amor com
esse país admirável que é a Colômbia. Com que rapidez e eficiência seus
profissionais socorreram os sobreviventes, resgataram, identificaram e
prepararam os corpos dos mortos! Com que generosidade e afeto suas autoridades
e seu povo se irmanaram à nossa dor coletiva!
A delicadeza do embarque dos
corpos nos Hércules da FAB foi uma das cerimônias mais dignas que testemunhei
na vida, com os militares conferindo aos mortos uma honorabilidade e um
respeito impressionantes, sob as bandeiras nacionais dos dois países.
É importante registrar que partiu
dos militares colombianos a iniciativa de montar uma guarda de honra para aquele
embarque. Talvez, tudo o que merecemos da gente daquele país explique por que
os familiares se mantiveram tranquilos aqui no Brasil, pois devem ter sentido
que seus entes queridos estavam recebendo um tratamento raro em território
colombiano.
Debaixo de chuva, nossos
militares repetiram a dignidade dos colegas colombianos, recebendo os mortos
com honras militares. E o céu chorando sua chuva torrencial enquanto o cortejo
seguia pela cidade. E choraram jornalistas. E choraram militares. E choramos
todos.
A entrada dos caixões no estádio
foi um momento extraordinário, uma ode à nobreza do povo de Chapecó e à nobreza
que pode haver ainda em cada pessoa – e que não pode jamais ser perdida. Enfim,
os meninos estavam em casa novamente, sob o som delicadíssimo das orquestras
sinfônica e de câmara e do coral da cidade.
Não tenho dúvida de que todas as
lágrimas que escorreram pelo meu rosto eram verdes. Não precisei ir ao espelho
para me dizer, olhando nos olhos, que virei mais um torcedor da Chape. Como o
mundo todo.
Depois de tanta dor, algo me diz
que virá um tempo de alegria pelo renascimento do Verdão do Oeste. Que a nova
Chape seja erguida como o maior memorial aos que morreram por ela.
1) Belíssimo texto. Parabéns.
ResponderExcluir2) Falecidos e sobreviventes são "Heróis da Solidariedade, da Amizade Mundial" !
3) #ForçaChape.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirOs mortos veem o mundo
Pelos olhos dos vivos
eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias
Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça
(Ferreira Gullar)
Um dia, Heraldo, acho que li o Veríssimo dizer que os grandes acidentes viram estatísticas. Não têm cara. E esta última frase é minha, um pensamento meu. Com a Chape não foi o que aconteceu. Com o futebol nunca é.
ResponderExcluirO futebol é paixão, une, desune, dá briga e confusão. Mas na hora do amor haja chamego.
Foram cenas dolorosas as que nos mostraram a televisão. E eu acabei sentindo pena também do piloto da Lamia e de sua emocionada mulher.
E o que dizer dos jornalistas? Penso sempre neles. Foram atrás da notícia e viraram notícia. Gente jovem, gente experiente, gente de brilho incomum, tudo junto e misturado.
Soube hoje que morreram todos sem saber que morriam. O piloto não disse, nada avisou sobre a queda. Preparou todo mundo para uma aterrissagem normal, afivelar os cintos, essas coisas. A única morte aflita parece ter sido a do próprio piloto: "Jesus", disse ele, ao perceber que acontecia o pior. Abençoado seja por não levar a todos o pânico e o sofrimento antecipado.
Errou. E no final acertou.
Caro Heraldo. Minhas lágrimas verdes ainda não secaram e acho que tão cedo meus olhos voltarão a brilhar. Me coloco sempre no lugar da mãe, irmã, esposa, filhos, avó, imagino o sofrimento e a dor que estão passando e recolho-me em oração, para que Deus dê-lhes conforto e forças necessárias para vencerem esse momento tão doído. Já vivi essa dor e só com muita resignação, amor aos que permanecem e que dão o retorno imediato, faz com que levantemos e sigamos em frente, na esperança de um dia encontrar - nos no Reino preparado por Deus. Obrigada por suas palavras sensíveis nesse resumo de Fé e Solidariedade. Abraços, Dulce
ResponderExcluirSeu texto é poesia pura, bem ao seu estilo nos fazendo crer que estamos dentro da cena.
ResponderExcluirÀ pena precisa do cronista junta-se a pena por este lamentável ocorrido. Registro emocionante, querido HP!
ResponderExcluir