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02/12/2016

Os Velhos Computadores

computador científico IBM 1130 (imagem technikum29.de)



Wilson Baptista Junior

O artigo do Heraldo sobre sua depressão com a desarrumação digital me fez lembrar do tempo em que comecei na informática.
Não havia estes computadores de hoje, que temos em casa. Muito menos tablets ou smartphones.
Quando eu estudava engenharia mecânica, na década de sessenta, chegou lá na escola um computador científico, moderníssimo, miniaturizado, de terceira geração, como dizia a IBM na época. Prepararam uma grande sala para recebê-lo, no prédio novo que estava sendo construído ao lado do antigo. Com piso falso, para passar debaixo os cabos que ligavam entre si as diferentes peças do equipamento. Ar refrigerado, com compressores numa sala ao lado e dutos no teto, o computador devia funcionar a vinte graus centígrados com a umidade cuidadosamente controlada. A sala tinha uma parede envidraçada para que a plebe ignara pudesse ver de fora a maravilha, o “cérebro eletrônico” como o povo o chamava.
O computador mesmo, do tamanho de duas escrivaninhas ligadas, e alimentado por uma fonte de energia do tamanho de um guarda-roupa, tinha uma memória (total) de 16 K. Não 16 megas (milhões), nem 16 gigas (milhares de milhões), como os de hoje. Apenas um pouco mais de dezesseis mil posições de memória. Na verdade, 16 mil e poucas palavras de dois bytes cada uma.
A unidade de discos (suprassumo da época), um pouco maior do que uma geladeira dessas de hotel, usava discos removíveis guardados dentro de cartuchos que pareciam um disco voador de cinema, dois palmos e pouco de diâmetro, uns dois quilos e pouco de peso, com a enorme capacidade de um megabyte (um pouco menos do que, quase quinze anos depois, caberia num disquete, de que alguns leitores ainda devem se lembrar e que cabia num bolso de camisa).
Tela? Não havia. Um painel com dezenas de luzinhas e uma fileira de chaves e um teclado com um mecanismo de máquina de escrever, uma esferinha que girava e batia na fita de impressão, era o centro de comando de que o operador dispunha para se comunicar com o bicho.
Para entrar com as instruções e os dados, uma leitora de cartões perfurados – os comandos eram perfurados em cartões de oitenta colunas, pedaços retangulares de cartolina onde uma máquina parecida com uma máquina de escrever gigantesca perfurava os caracteres que batíamos no teclado num código de doze alturas de perfuração por coluna, e depois os maços de cartões eram passados nessas máquinas onde um raio de luz atravessava as perfurações e era lido por células fotoelétricas que transmitiam os códigos ao computador.
Para dar saída nos resultados, uma impressora capaz de imprimir oitenta linhas de cento e vinte caracteres por minuto num papel que se chamava de “formulário contínuo” porque vinha em caixas com milhares de folhas ligadas como uma sanfona.
Junto ao centro de comando, um plotter, maravilha das maravilhas, um aparelho que desenhava gráficos num rolo de papel. Projetado para traçar gráficos de equações, foi usado principalmente por mim e outros alunos mais interessados para, com a conivência do operador, jogar... batalha naval. Cada jogador, por sua vez, digitava no teclado o ângulo de tiro e a carga do canhão do seu navio e o plotter desenhava a trajetória do tiro (gastava quase um minuto) enquanto torcíamos para ver se nossos cálculos estavam certos e o tiro acertaria ou não no navio do adversário.
No tempo de escola, minha interação com este computador resumiu-se a um curso dos rudimentos de uma linguagem de programação chamada FORTRAN (do inglês para “linguagem de tradução de fórmulas”) e às partidas clandestinas de batalha naval.
Saí da escola de engenharia antes de me formar – estava mais interessado em passeios fotográficos pelas montanhas de Minas e em disputar campeonatos de tiro pelo Brasil do que em estudar algumas matérias que considerava maçantes, e as notas altas nas matérias que me interessavam não substituíam as notas baixas em uma ou duas outras – e me vi repentina - e muito oportunamente - confrontado pelos meus pais com a realidade da vida, de que se não queria estudar então tratasse de ganhar meu sustento.
Como naquele tempo o esporte que eu praticava era estritamente amador, ninguém ganhava dinheiro para praticá-lo, muito pelo contrário, custava caro, e minhas habilidades fotográficas, datilográficas e de oficina não me parecessem capazes de resolver meu problema a curto prazo, eu estava percorrendo os classificados do nosso principal jornal à procura de emprego quando vi o anúncio de um curso de programação de computadores, oferecido por uma empresa subsidiária de uma americana.
Nessa época havia apenas três computadores comerciais em Belo Horizonte, um em um grande banco e dois em empresas de, como se chamava na época, “processamento de dados”.
Fui ao endereço indicado e me inscrevi no curso. Em pouco tempo descobri que a “subsidiária” era uma empresa de uma só pessoa, dono, diretor, professor e funcionário, e que a “matriz” americana era a empresa do mesmo tamanho que a mesma pessoa tinha quando morava nos Estados Unidos. Mas o curso era interessante, e o professor entendia do riscado.
Terminado o curso, fui contratado, junto com outro colega, como programador para ajudar a desenvolver serviços pela empresa. O nosso professor era um bom vendedor de serviços e programador competente. Trabalhávamos com uma linguagem chamada RPG (nada em comum com os jogos RPG familiares aos gamers de hoje) que na verdade tinha sido concebida apenas como uma ferramenta auxiliar para produzir relatórios nos grandes computadores comerciais da época. Mas nas nossas mãos produziu sistemas bem interessantes.
Para rodar nossos sistemas tínhamos, como as outras duas ou três empresas similares de Belo Horizonte que não tinham computadores, de alugar tempo nos poucos computadores existentes.  Começamos a usar o computador de uma empresa que tinha sido formada por dois de meus antigos professores na escola de engenharia, e que possuía um computador do mesmo tipo do que eu tinha conhecido na escola. Só que com mais unidades de disco e uma impressora rápida, um trambolho de metro e meio de altura, capaz de imprimir seiscentas linhas por minuto, com uma corrente, como uma corrente de bicicleta, que continha várias vezes seguidas o alfabeto, os sinais de pontuação e os algarismos e girava a uma velocidade muito grande na frente do papel (também formulário contínuo), e cento e trinta e dois martelinhos que eram disparados pelo computador e acertavam por detrás o papel fazendo-o bater na fita de impressão e na corrente quando as letras passavam nas posições corretas da linha de texto ou números – uma mágica impressionante de sincronização. Fazia um barulho tão grande que tinha uma tampa com isolamento acústico que fechava a parte de impressão.
Essa empresa tinha sido formada, originariamente, para fazer trabalhos de cálculo estrutural usando programas desenvolvidos pelos seus donos; os engenheiros daqui começavam a ver as vantagens de pagar para usar estes programas em vez de fazer os numerosos e complexos cálculos – naquele tempo feitos com lápis e réguas de cálculo – necessários para construir prédios e estruturas.
Nessa companhia ficamos conhecendo, além do pessoal dela, o pessoal de duas outras empresas do tipo da nossa, todos também oriundos da escola de engenharia.
Naquele tempo eram muito poucas as pessoas que trabalhavam com isso em Belo Horizonte, de modo que nos conhecíamos praticamente todos.
Depois de algum tempo já tínhamos alguns clientes interessantes, eu por exemplo fazia o controle de uma caderneta de poupança, com dez ou doze mil investidores. Para cadastrar cada investidor era preciso perfurar seus dados nos cartões de que falei antes que pudessem ser passados para o computador. Cada depósito e cada retirada que eles faziam também tinha que ser perfurado. Imaginem a quantidade de cartões que tinham que ser perfurados e conferidos a cada mês. Com os outros serviços da empresa, tínhamos uma quantidade de perfuradores (hoje seriam chamados de digitadores) e uma porção de máquinas trabalhando o dia inteiro.
Como os cartões eram limitados a oitenta colunas, o que queria dizer oitenta caracteres, cada espaço era precioso. Nas datas, por exemplo, só se perfuravam os dois últimos dígitos do ano. O ano 2000, quando estes números começariam a se repetir, ainda estava trinta anos no futuro, então ninguém, no mundo inteiro, se preocupava com isso. Foi este o motivo do famoso “bug do ano 2000”, quando se aproximou a virada do século e as pessoas começaram a perceber que sistemas sem conta poderiam falhar quando as datas passassem de 99 para 00 e daí começassem de novo. As expectativas mais tenebrosas falavam num colapso catastrófico dos sistemas mundiais de comunicação, dos sistemas de controle de voo de aeronaves e assim por diante, O pânico foi geral, virou notícia em todos os jornais.
Isso custou caríssimo porque uma infinidade de companhias mundo afora teve que reprogramar todos os seus sistemas, muitas vezes sistemas antigos em linguagens que pouca gente ainda conhecia, o que foi ótimo para uma quantidade de antigos programadores que foram chamados de volta à ativa.
O ano 2000 veio, e passou, e não aconteceu nada, salvo algum probleminha menor aqui e ali. Por isso muita gente diz hoje que isso foi um exemplo de pânico idiota, como quando periodicamente anunciam que o mundo vai acabar no ano tal, mês tal, dia tal. Mas quem trabalhava com isso pouco antes da virada do século sabe o volume de trabalho que foi gasto para que nada de pior acontecesse...
Mas naquele começo da década de setenta nenhum de nós pensava nisso. As coisas eram novas, nós éramos jovens, o trabalho era estimulante, fazíamos parte de uma classe de trabalhadores que eram considerados altamente inteligentes e qualificados. Quando alguém perguntava em que nós trabalhávamos, as pessoas arregalavam os olhos. E a gente, claro, fazia aquele arzinho falsamente modesto...
Fizemos algumas coisas interessantes. Um empresário de Belo Horizonte estava lançando uma empresa que fabricava armários modulados, então uma novidade. Precisava de uma campanha publicitária que fosse diferente. Convenceu o professor Alberto Deodato, jurista e cronista muito querido em Belo Horizonte, a redigir uma carta recomendando o seu produto. Mandamos imprimir no pé de oitenta mil folhas de formulário contínuo branco a assinatura do professor, e fizemos um programa de computador que imprimia a carta na folha, mas com o nome do destinatário dentro do corpo da carta, repetido mais de uma vez, e com o texto ajustado para não deixar espaços entre cada nome e o resto (hoje isto é uma brincadeira, mas naquele tempo ninguém tinha feito isso por aqui, os computadores deixavam aquele campo vazio de, digamos, trinta caracteres, onde os nomes dos clientes eram impressos, gastassem ou não os trinta espaços). Mandamos perfurar todos os nomes e endereços do catálogo de telefones de assinantes de Belo Horizonte, era alguma coisa entre sessenta e cinco e setenta mil nomes, e para imprimir as cartas alugamos tempo num computador recém chegado da PRODEMGE, a companhia de processamento de dados do estado, que tinha uma impressora com o dobro da velocidade da impressora da outra companhia e aquelas unidades de rolos de fita magnética que aparecem nos computadores no cinema. Como o nome e o endereço das pessoas tinham que caber nas oitenta colunas dos cartões, as palavras “avenida”, “alameda” etc. tinham que ser abreviadas como "Av." e "Al." para caberem em três colunas. Informado disso, um de nossos perfuradores, muito aplicado mas de raciocínio não tão rápido, “abreviou” também conscienciosamente todas as “Rua” para “Ru.”...
Gravamos os cartões em fita e imprimimos as setenta mil cartas. A campanha foi um sucesso, as pessoas se espantavam de receber uma carta aparentemente pessoal do professor Alberto, e o zum zum correu pelo estado...
De quebra, ficamos com um valioso cadastro de possíveis clientes, naquele tempo não existiam os trambiques de hoje onde em quase qualquer esquina você compra um CD com nome, endereço e cpf de dezenas de milhares de pessoas pirateado dos arquivos do Ministério da Fazenda...
Quando o nosso número de clientes foi aumentando, a empresa de que alugávamos o computador comprou a do meu professor, e eu e ele fomos trabalhar para eles, ele vendendo serviços e eu programando.
O trabalho era interessante mas estressante, estávamos sempre correndo contra o tempo para concluir projetos nos prazos combinados e manter rodando os que já existiam. Quem trabalhou com isso sabe... Então muitas vezes eu “virava noites”, como dizíamos, na sala do computador com o operador do turno da noite, terminando de implantar ou de processar um serviço que tinha que ser entregue no dia seguinte. E mais de uma vez a Ana apareceu por lá, no fim da tarde, me levando uma camisa limpa e uma pizza que eu dividia com os colegas.
Inevitavelmente, uma turma de rapazes, nenhum com mais de vinte e poucos anos, procurava alguma maneira de descontar o estresse. Na sala dos programadores tínhamos uma placa na porta em que estava escrito: “O computador é uma máquina maravilhosa que alivia o trabalho... dos outros”. Dentro da sala, de grandes janelas, seis ou sete mesas de trabalho, e estantes para guardar os programas.
Programava-se em papel, escrevendo em folhas especiais que depois eram mandadas para os perfuradores e voltavam como maços de cartões presos com elásticos daqueles que os bancos usavam para prender maços de notas. Então as mesas tinham gavetas com caixas cheias desses elásticos, comprados por atacado, naquele tempo popularmente chamados “gominhas”.
Um dia um de nós, cansado de programar, pegou um destes elásticos, apontou no colega três mesas à frente e mandou ver. O colega atingido se virou, prontamente apanhou uma gominha na gaveta e retaliou. Em poucos minutos uma guerra de gominhas em grande escala estava em curso, com os atiradores se protegendo atrás de barreiras feitas com caixas de cartões. A sala era comprida, com a porta numa das paredes mais estreitas. A coisa ficou tão animada que nos esquecemos de prestar atenção, e de repente a porta se abriu e apareceu o diretor técnico, um dos donos da empresa, meu antigo professor da escola de engenharia, justamente quando a turma do lado de cá disparava uma saraivada de gominhas contra a turma do lado da porta das quais muitas, claro, o atingiram em cheio. O professor era alto, forte, calvo e de estopim curto. Ficou vermelho como um pimentão quando entendeu o que significava aquele inesperado fuzilamento e bufava sem conseguir falar. Depois, quando a voz lhe voltou, passou-nos um sermão em regra que nos deixou a todos de orelhas vermelhas. Até hoje tenho certeza de que só não fomos todos mandados embora porque um dos atiradores era o filho mais velho dele, novato que estava estagiando conosco...
Depois dessa época trabalhei em muitas outras empresas, voltei para a universidade, me formei em outros cursos, e toda a minha carreira foi de alguma forma mais ou menos ligada aos computadores. Hoje o computador em que estou escrevendo essas linhas na minha mesa é muitas dezenas de milhares de vezes mais potente do que aquele primeiro, cada um de seus discos tem exatamente um milhão de vezes mais capacidade de armazenar dados do que os dele. Pode fazer coisas que mal imaginávamos naquele tempo. Mas aqueles primeiros computadores tinham uma vantagem sobre os de hoje que foi o que me fez lembrar deles lendo o post do Heraldo: Eles funcionavam. Sempre. Se você fizesse as coisas direito do seu lado, eles também faziam do lado deles. Só falhavam quando algum componente queimava ou se quebrava. E disso eu tenho saudade...

4 comentários:

  1. 1) Bom texto, me fez lembrar da Nanotecnologia.

    2) E então eu lembro, desculpe, novamente do Budismo que tem uma teoria assim: "O Negócio é ser Pequeno".

    3) Desculpem falar tanto em Budismo.

    4)É um livro antigo publicado pela Zahar Editores. É mais fácil administrar algo menor do que um grande.

    5) Limpar uma casa pequena é uma coisa, limpar uma casa grande é outra ...

    6) Parabéns Mano !

    7) Mas alguém pode ponderar: mas o Cosmos é Infinito? Sim, mas multicompartimentado ...

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  2. Wilson Baptista Junior03/12/2016, 20:04

    Antonio, isso do que você fala é o princípio filosófico da análise, de decompor alguma coisa em suas partes menores para podermos estudá-las, e onde o mais difícil é o retorno, compreender e não perder de vista os múltiplos efeitos que as partes têm umas sobre as outras. Às vezes ficamos presos dentro dos compartimentos...

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  3. Heraldo Palmeira05/12/2016, 10:55

    Que belo texto, Mano! Vocês, profissionais seminais dessa área aqui no Brasil, tiveram esse trabalho cuidadoso e imenso para abrir caminhos digitais modernizadores, para os "descendentes digitais" transformarem nessa barafunda que está aí - e que vive torturando os simples usuários com o imobilismo total!

    A foto que abre o texto me levou aos saudosos tempos em que iniciei minha vida profissional no Banco do Brasil, menino maravilhado com aquelas máquinas "futuristas".

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  4. Wilson Baptista Junior05/12/2016, 12:57

    Pois é, Heraldo, foram tempos divertidos... A gente se sentia um pouco como desbravadores, pelo menos aqui no Pindorama, onde essas coisas ainda eram novidade. Hoje fazem parte integral da vida da gente, mesmo de quem só usa lápis e papel, disfarçados de telefones, dentro dos nossos carros ou das nossas câmaras, nos controles dos aviões em que voamos, ou em outros lugares que nem percebemos.

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