computador científico IBM 1130 (imagem technikum29.de) |
Wilson Baptista Junior
O artigo
do Heraldo sobre sua depressão com a desarrumação digital me fez lembrar do
tempo em que comecei na informática.
Não havia
estes computadores de hoje, que temos em casa. Muito menos tablets ou
smartphones.
Quando eu
estudava engenharia mecânica, na década de sessenta, chegou lá na escola um
computador científico, moderníssimo, miniaturizado, de terceira geração, como
dizia a IBM na época. Prepararam uma grande sala para recebê-lo, no prédio novo
que estava sendo construído ao lado do antigo. Com piso falso, para passar debaixo
os cabos que ligavam entre si as diferentes peças do equipamento. Ar
refrigerado, com compressores numa sala ao lado e dutos no teto, o computador
devia funcionar a vinte graus centígrados com a umidade cuidadosamente
controlada. A sala tinha uma parede envidraçada para que a plebe ignara pudesse
ver de fora a maravilha, o “cérebro eletrônico” como o povo o chamava.
O
computador mesmo, do tamanho de duas escrivaninhas ligadas, e alimentado por uma fonte de energia do tamanho de um guarda-roupa, tinha uma memória
(total) de 16 K. Não 16 megas (milhões), nem 16 gigas (milhares de milhões),
como os de hoje. Apenas um pouco mais de dezesseis mil posições de memória. Na
verdade, 16 mil e poucas palavras de dois bytes cada uma.
A unidade
de discos (suprassumo da época), um pouco maior do que uma geladeira dessas de
hotel, usava discos removíveis guardados dentro de cartuchos que pareciam um
disco voador de cinema, dois palmos e pouco de diâmetro, uns dois quilos e
pouco de peso, com a enorme capacidade de um megabyte (um pouco menos do que, quase
quinze anos depois, caberia num disquete, de que alguns leitores ainda devem se
lembrar e que cabia num bolso de camisa).
Tela? Não
havia. Um painel com dezenas de luzinhas e uma fileira de chaves e um teclado
com um mecanismo de máquina de escrever, uma esferinha que girava e batia na
fita de impressão, era o centro de comando de que o operador dispunha para se
comunicar com o bicho.
Para
entrar com as instruções e os dados, uma leitora de cartões perfurados – os
comandos eram perfurados em cartões de oitenta colunas, pedaços retangulares de
cartolina onde uma máquina parecida com uma máquina de escrever gigantesca
perfurava os caracteres que batíamos no teclado num código de doze alturas de
perfuração por coluna, e depois os maços de cartões eram passados nessas
máquinas onde um raio de luz atravessava as perfurações e era lido por células
fotoelétricas que transmitiam os códigos ao computador.
Para dar
saída nos resultados, uma impressora capaz de imprimir oitenta linhas de cento
e vinte caracteres por minuto num papel que se chamava de “formulário contínuo”
porque vinha em caixas com milhares de folhas ligadas como uma sanfona.
Junto ao
centro de comando, um plotter, maravilha das maravilhas, um aparelho que
desenhava gráficos num rolo de papel. Projetado para traçar gráficos de equações,
foi usado principalmente por mim e outros alunos mais interessados para, com a
conivência do operador, jogar... batalha naval. Cada jogador, por sua vez,
digitava no teclado o ângulo de tiro e a carga do canhão do seu navio e o
plotter desenhava a trajetória do tiro (gastava quase um minuto) enquanto
torcíamos para ver se nossos cálculos estavam certos e o tiro acertaria ou não no
navio do adversário.
No tempo
de escola, minha interação com este computador resumiu-se a um curso dos
rudimentos de uma linguagem de programação chamada FORTRAN (do inglês para
“linguagem de tradução de fórmulas”) e às partidas clandestinas de batalha
naval.
Saí da
escola de engenharia antes de me formar – estava mais interessado em passeios
fotográficos pelas montanhas de Minas e em disputar campeonatos de tiro pelo
Brasil do que em estudar algumas matérias que considerava maçantes, e as notas
altas nas matérias que me interessavam não substituíam as notas baixas em uma
ou duas outras – e me vi repentina - e muito oportunamente - confrontado pelos
meus pais com a realidade da vida, de que se não queria estudar então tratasse
de ganhar meu sustento.
Como
naquele tempo o esporte que eu praticava era estritamente amador, ninguém
ganhava dinheiro para praticá-lo, muito pelo contrário, custava caro, e minhas
habilidades fotográficas, datilográficas e de oficina não me parecessem capazes
de resolver meu problema a curto prazo, eu estava percorrendo os classificados
do nosso principal jornal à procura de emprego quando vi o anúncio de um curso
de programação de computadores, oferecido por uma empresa subsidiária de uma
americana.
Nessa
época havia apenas três computadores comerciais em Belo Horizonte, um em um
grande banco e dois em empresas de, como se chamava na época, “processamento de
dados”.
Fui ao
endereço indicado e me inscrevi no curso. Em pouco tempo descobri que a
“subsidiária” era uma empresa de uma só pessoa, dono, diretor, professor e
funcionário, e que a “matriz” americana era a empresa do mesmo tamanho que a
mesma pessoa tinha quando morava nos Estados Unidos. Mas o curso era
interessante, e o professor entendia do riscado.
Terminado
o curso, fui contratado, junto com outro colega, como programador para ajudar a
desenvolver serviços pela empresa. O nosso professor era um bom vendedor de
serviços e programador competente. Trabalhávamos com uma linguagem chamada RPG
(nada em comum com os jogos RPG familiares aos gamers de hoje) que na verdade
tinha sido concebida apenas como uma ferramenta auxiliar para produzir
relatórios nos grandes computadores comerciais da época. Mas nas nossas mãos
produziu sistemas bem interessantes.
Para
rodar nossos sistemas tínhamos, como as outras duas ou três empresas similares
de Belo Horizonte que não tinham computadores, de alugar tempo nos poucos computadores
existentes. Começamos a usar o computador
de uma empresa que tinha sido formada por dois de meus antigos professores na
escola de engenharia, e que possuía um computador do mesmo tipo do que eu tinha
conhecido na escola. Só que com mais unidades de disco e uma impressora rápida,
um trambolho de metro e meio de altura, capaz de imprimir seiscentas linhas por
minuto, com uma corrente, como uma corrente de bicicleta, que continha várias
vezes seguidas o alfabeto, os sinais de pontuação e os algarismos e girava a
uma velocidade muito grande na frente do papel (também formulário contínuo), e
cento e trinta e dois martelinhos que eram disparados pelo computador e
acertavam por detrás o papel fazendo-o bater na fita de impressão e na corrente
quando as letras passavam nas posições corretas da linha de texto ou números –
uma mágica impressionante de sincronização. Fazia um barulho tão grande que
tinha uma tampa com isolamento acústico que fechava a parte de impressão.
Essa
empresa tinha sido formada, originariamente, para fazer trabalhos de cálculo
estrutural usando programas desenvolvidos pelos seus donos; os engenheiros
daqui começavam a ver as vantagens de pagar para usar estes programas em vez de
fazer os numerosos e complexos cálculos – naquele tempo feitos com lápis e réguas
de cálculo – necessários para construir prédios e estruturas.
Nessa
companhia ficamos conhecendo, além do pessoal dela, o pessoal de duas outras
empresas do tipo da nossa, todos também oriundos da escola de engenharia.
Naquele
tempo eram muito poucas as pessoas que trabalhavam com isso em Belo Horizonte,
de modo que nos conhecíamos praticamente todos.
Depois de
algum tempo já tínhamos alguns clientes interessantes, eu por exemplo fazia o
controle de uma caderneta de poupança, com dez ou doze mil investidores. Para
cadastrar cada investidor era preciso perfurar seus dados nos cartões de que
falei antes que pudessem ser passados para o computador. Cada depósito e cada
retirada que eles faziam também tinha que ser perfurado. Imaginem a quantidade
de cartões que tinham que ser perfurados e conferidos a cada mês. Com os outros
serviços da empresa, tínhamos uma quantidade de perfuradores (hoje seriam
chamados de digitadores) e uma porção de máquinas trabalhando o dia inteiro.
Como os
cartões eram limitados a oitenta colunas, o que queria dizer oitenta
caracteres, cada espaço era precioso. Nas datas, por exemplo, só se perfuravam
os dois últimos dígitos do ano. O ano 2000, quando estes números começariam a
se repetir, ainda estava trinta anos no futuro, então ninguém, no mundo inteiro,
se preocupava com isso. Foi este o motivo do famoso “bug do ano 2000”, quando
se aproximou a virada do século e as pessoas começaram a perceber que sistemas
sem conta poderiam falhar quando as datas passassem de 99 para 00 e daí
começassem de novo. As expectativas mais tenebrosas falavam num colapso catastrófico
dos sistemas mundiais de comunicação, dos sistemas de controle de voo de
aeronaves e assim por diante, O pânico foi geral, virou notícia em todos os
jornais.
Isso
custou caríssimo porque uma infinidade de companhias mundo afora teve que
reprogramar todos os seus sistemas, muitas vezes sistemas antigos em linguagens
que pouca gente ainda conhecia, o que foi ótimo para uma quantidade de antigos
programadores que foram chamados de volta à ativa.
O ano
2000 veio, e passou, e não aconteceu nada, salvo algum probleminha menor aqui e
ali. Por isso muita gente diz hoje que isso foi um exemplo de pânico idiota,
como quando periodicamente anunciam que o mundo vai acabar no ano tal, mês tal,
dia tal. Mas quem trabalhava com isso pouco antes da virada do século sabe o
volume de trabalho que foi gasto para que nada de pior acontecesse...
Mas naquele
começo da década de setenta nenhum de nós pensava nisso. As coisas eram novas, nós
éramos jovens, o trabalho era estimulante, fazíamos parte de uma classe de
trabalhadores que eram considerados altamente inteligentes e qualificados. Quando
alguém perguntava em que nós trabalhávamos, as pessoas arregalavam os olhos. E
a gente, claro, fazia aquele arzinho falsamente modesto...
Fizemos
algumas coisas interessantes. Um empresário de Belo Horizonte estava lançando
uma empresa que fabricava armários modulados, então uma novidade. Precisava de
uma campanha publicitária que fosse diferente. Convenceu o professor Alberto
Deodato, jurista e cronista muito querido em Belo Horizonte, a redigir uma
carta recomendando o seu produto. Mandamos imprimir no pé de oitenta mil folhas
de formulário contínuo branco a assinatura do professor, e fizemos um programa
de computador que imprimia a carta na folha, mas com o nome do destinatário
dentro do corpo da carta, repetido mais de uma vez, e com o texto ajustado para
não deixar espaços entre cada nome e o resto (hoje isto é uma brincadeira, mas
naquele tempo ninguém tinha feito isso por aqui, os computadores deixavam aquele
campo vazio de, digamos, trinta caracteres, onde os nomes dos clientes eram
impressos, gastassem ou não os trinta espaços). Mandamos perfurar todos os
nomes e endereços do catálogo de telefones de assinantes de Belo Horizonte, era
alguma coisa entre sessenta e cinco e setenta mil nomes, e para imprimir as
cartas alugamos tempo num computador recém chegado da PRODEMGE, a companhia de
processamento de dados do estado, que tinha uma impressora com o dobro da
velocidade da impressora da outra companhia e aquelas unidades de rolos de fita
magnética que aparecem nos computadores no cinema. Como o nome e o endereço das
pessoas tinham que caber nas oitenta colunas dos cartões, as palavras “avenida”,
“alameda” etc. tinham que ser abreviadas como "Av." e "Al." para caberem em três colunas.
Informado disso, um de nossos perfuradores, muito aplicado mas de raciocínio
não tão rápido, “abreviou” também conscienciosamente todas as “Rua” para “Ru.”...
Gravamos
os cartões em fita e imprimimos as setenta mil cartas. A campanha foi um
sucesso, as pessoas se espantavam de receber uma carta aparentemente pessoal do
professor Alberto, e o zum zum correu pelo estado...
De
quebra, ficamos com um valioso cadastro de possíveis clientes, naquele tempo
não existiam os trambiques de hoje onde em quase qualquer esquina você compra
um CD com nome, endereço e cpf de dezenas de milhares de pessoas pirateado dos
arquivos do Ministério da Fazenda...
Quando o
nosso número de clientes foi aumentando, a empresa de que alugávamos o
computador comprou a do meu professor, e eu e ele fomos trabalhar para eles,
ele vendendo serviços e eu programando.
O
trabalho era interessante mas estressante, estávamos sempre correndo contra o
tempo para concluir projetos nos prazos combinados e manter rodando os que já
existiam. Quem trabalhou com isso sabe... Então muitas vezes eu “virava noites”,
como dizíamos, na sala do computador com o operador do turno da noite,
terminando de implantar ou de processar um serviço que tinha que ser entregue
no dia seguinte. E mais de uma vez a Ana apareceu por lá, no fim da tarde, me
levando uma camisa limpa e uma pizza que eu dividia com os colegas.
Inevitavelmente,
uma turma de rapazes, nenhum com mais de vinte e poucos anos, procurava alguma
maneira de descontar o estresse. Na sala dos programadores tínhamos uma placa
na porta em que estava escrito: “O
computador é uma máquina maravilhosa que alivia o trabalho... dos outros”.
Dentro da sala, de grandes janelas, seis ou sete mesas de trabalho, e estantes
para guardar os programas.
Programava-se
em papel, escrevendo em folhas especiais que depois eram mandadas para os
perfuradores e voltavam como maços de cartões presos com elásticos daqueles que
os bancos usavam para prender maços de notas. Então as mesas tinham gavetas com
caixas cheias desses elásticos, comprados por atacado, naquele tempo
popularmente chamados “gominhas”.
Um dia um
de nós, cansado de programar, pegou um destes elásticos, apontou no colega três
mesas à frente e mandou ver. O colega atingido se virou, prontamente apanhou
uma gominha na gaveta e retaliou. Em poucos minutos uma guerra de gominhas em
grande escala estava em curso, com os atiradores se protegendo atrás de
barreiras feitas com caixas de cartões. A sala era comprida, com a porta numa
das paredes mais estreitas. A coisa ficou tão animada que nos esquecemos de
prestar atenção, e de repente a porta se abriu e apareceu o diretor técnico, um
dos donos da empresa, meu antigo professor da escola de engenharia, justamente
quando a turma do lado de cá disparava uma saraivada de gominhas contra a turma
do lado da porta das quais muitas, claro, o atingiram em cheio. O professor era
alto, forte, calvo e de estopim curto. Ficou vermelho como um pimentão quando
entendeu o que significava aquele inesperado fuzilamento e bufava sem conseguir
falar. Depois, quando a voz lhe voltou, passou-nos um sermão em regra que nos
deixou a todos de orelhas vermelhas. Até hoje tenho certeza de que só não fomos
todos mandados embora porque um dos atiradores era o filho mais velho dele,
novato que estava estagiando conosco...
Depois
dessa época trabalhei em muitas outras empresas, voltei para a universidade, me
formei em outros cursos, e toda a minha carreira foi de alguma forma mais ou
menos ligada aos computadores. Hoje o computador em que estou escrevendo essas
linhas na minha mesa é muitas dezenas de milhares de vezes mais potente do que
aquele primeiro, cada um de seus discos tem exatamente um milhão de vezes mais
capacidade de armazenar dados do que os dele. Pode fazer coisas que mal
imaginávamos naquele tempo. Mas aqueles primeiros computadores tinham uma
vantagem sobre os de hoje que foi o que me fez lembrar deles lendo o post do
Heraldo: Eles funcionavam. Sempre. Se você fizesse as coisas direito do seu
lado, eles também faziam do lado deles. Só falhavam quando algum componente
queimava ou se quebrava. E disso eu tenho saudade...
1) Bom texto, me fez lembrar da Nanotecnologia.
ResponderExcluir2) E então eu lembro, desculpe, novamente do Budismo que tem uma teoria assim: "O Negócio é ser Pequeno".
3) Desculpem falar tanto em Budismo.
4)É um livro antigo publicado pela Zahar Editores. É mais fácil administrar algo menor do que um grande.
5) Limpar uma casa pequena é uma coisa, limpar uma casa grande é outra ...
6) Parabéns Mano !
7) Mas alguém pode ponderar: mas o Cosmos é Infinito? Sim, mas multicompartimentado ...
Antonio, isso do que você fala é o princípio filosófico da análise, de decompor alguma coisa em suas partes menores para podermos estudá-las, e onde o mais difícil é o retorno, compreender e não perder de vista os múltiplos efeitos que as partes têm umas sobre as outras. Às vezes ficamos presos dentro dos compartimentos...
ResponderExcluirQue belo texto, Mano! Vocês, profissionais seminais dessa área aqui no Brasil, tiveram esse trabalho cuidadoso e imenso para abrir caminhos digitais modernizadores, para os "descendentes digitais" transformarem nessa barafunda que está aí - e que vive torturando os simples usuários com o imobilismo total!
ResponderExcluirA foto que abre o texto me levou aos saudosos tempos em que iniciei minha vida profissional no Banco do Brasil, menino maravilhado com aquelas máquinas "futuristas".
Pois é, Heraldo, foram tempos divertidos... A gente se sentia um pouco como desbravadores, pelo menos aqui no Pindorama, onde essas coisas ainda eram novidade. Hoje fazem parte integral da vida da gente, mesmo de quem só usa lápis e papel, disfarçados de telefones, dentro dos nossos carros ou das nossas câmaras, nos controles dos aviões em que voamos, ou em outros lugares que nem percebemos.
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