Heraldo Palmeira
Passava das duas da tarde quando
entrei no ambiente sempre fervilhante do sujinho
para almoçar. Só mesmo a cena paulistana pode produzir um lugar daqueles, indispensável
e firmemente instalado há tantos anos a poucos metros da esquina famosa de
Paulista com Augusta.
Comida honesta e atendimento
correto garantem que tudo sempre dá certo por ali. Domínios de Raimundo, o
garçom cearense que me cobre de mesuras, como faz com seus clientes esses anos
todos. Sentei mais longe da chapa de frituras instalada no fundo e mais perto
da porta. Pedi meu tradicional filé com arroz branco, alface e tomate, e me
entretive com o pão francês, azeite honesto e sal de entrada.
A moça estava de costas para mim
num plano mais alto, sentada ao redor do balcão principal. Ficava por isso avantajada
e desigual em relação ao meu ponto de vista. O velho All Star chamou minha atenção, acho que pela cor marrom em veludo côtelé. Gasto, bem gasto, restando um
vago vestígio daquela parte saliente de borracha no contorno do calcanhar onde
fica impressa a marca.
Aquele par de tênis era bandeira
de estilo, pensei. Uma tiara de malha fina contornava o louro dos cabelos bem
cuidados – cortados pouco acima dos ombros –, num marrom predominante entre
verdes, vermelhos e azuis de vários tons, com laço na nuca, de onde pendiam
duas tiras até o meio das costas.
A blusa branca colada ao corpo não
escondia o cume de uma tatuagem de flor abaixo do ombro esquerdo. Imaginei pétalas
ladeira abaixo, num chão macio enfeitado pelas sardas que dominavam a cena nua
entre o pescoço e o tecido branco.
Ao lado da mão direita o copo
cheio de gelo, sem limão, e a lata de Coca-Cola Zero traduziam a falsa
impressão de que estamos nos cuidando ao escolher esses refrigerantes light de mentirinha, tão cobertos de
produtos nocivos à saúde que fingimos buscar.
A poucos centímetros de mim, um
pouco da calcinha aparecia sobre a cintura baixa do jeans. Cor da pele – tropeço
de estilo para o meu gosto; e daí?
Agucei minha curiosidade a
respeito do rosto da moça. Havia um espelho na parede do outro lado, mas eu
estava muito abaixo do nível do balcão. Ela continuava uma completa estranha
para mim.
Em razão do movimento dos
semáforos da Paulista, faróis na língua particularíssima da cidade, o trecho da
pista estava vazio naquele momento. Raimundo trouxe minha comida no exato instante
em que uma grande freada, queimando pneus, estrondeou ao redor.
Um grito – “Otário!” – parado no
ar, sem resposta, fez o português se encolher para um lado no cubículo do caixa
tentando enxergar a possível desgraça através do buraquinho de passar
pagamentos e trocos. Semáforos abertos, de novo o mar de carros congestionou a
pista.
A multidão continuou sua sina de ir
e vir pela calçada, operária do formigueiro urbano. Dois homens conversavam de
pé na mesa ao lado e um deles saiu correndo: “Tchau, Alê. O táxi chegou”. Alê nem
teve tempo de dizer palavra. Pagou a conta e sumiu na direção contrária.
Terminei de almoçar, lancei o
guardanapo sobre a mesa e me levantei devagar. Finalmente o espelho do outro
lado me mostrou o rosto da moça que eu quase tocava as costas por causa do
corredor apertado. Ela nem me viu, continuou olhando para o próprio prato sobre
o balcão. Rosto bonito, guardando marcas da vida. Devia ter uns quarenta.
Entrei na pequena fila do caixa,
duas pessoas na frente. Percebi um olhar na minha direção. Vinha do outro lado
do balcão, outra moça. Blusa de crepe de seda finíssima, marrom. Casaquinho
cinza claro e leve. Olhos azuis muito claros, rosto encantador demonstrando
cansaço e certo ar de impaciência. Loura. Linda. Muito jovem. Aproveitei
aqueles três segundos de felicidade que ela me concedeu. Desviou o olhar e não
me buscou mais. Sofri com o abandono. Mantive a fleuma, não podia ser
diferente.
O português me entregou o troco
com aquela desatenção automática. Ignorei o velho homem. As duas louras me
ignoraram também. Acenei para o Raimundo. “Até a próxima”, ele disse. Aquiesci
levantando o polegar.
Segui pela calçada apinhada até o
shopping que liga Paulista, Augusta e Luís Coelho. Reafirmei compromisso com a
loteria acumulada que insiste em me ignorar, e me permiti o grande prazer de um
cafezinho no Starbucks, sentado num sofá confortável dentro da loja. Ao lado,
duas adolescentes tiravam algum assunto a limpo com acusações mútuas,
impaciência realimentada, contradições. Em comum, as vozes estridentes e a
grosseria de encher o ambiente com algo absolutamente sem importância para o
resto do mundo.
A escada rolante me jogou de
volta à calçada da Paulista e mais adiante entrei numa banca de jornal. Comprei
Tristessa, do beat Jack Kerouac, e Paraísos
artificiais, do poeta Charles Baudelaire, nessas ótimas edições em pocket books que levam a boa literatura
a todos os bolsos.
Atravessei a rua e entrei no meu
hotel. No elevador, apertei o 16, que era o meu andar. Pensei na história desse
Kerouac algo autobiográfico, estruturada a partir da sua paixão por uma índia
prostituta chamada Esperanza, de vida miserável.
Depois viajei para a Paris dos
meados do século 19, tempo em
que Baudelaire vivia no Pimodan, vivenciava suas experiências
com ópio e haxixe e freqüentava o Club
des Hachichins, instalado no próprio hotel e reduto da intelectualidade
francesa da época.
Hotel cuja reputação Baudelaire
ajudou a moldar ao lado de Alexandre Dumas e Eugene Delacroix, também assíduos
das instalações na exclusiva Île Saint-Louis, nos arredores da Notre-Dame.
A mesma Saint-Louis do quarto
distrito parisiense, onde hoje se pode cruzar na rua com a divinal moradora Catherine
Deneuve. Mais uma mulher loura e linda que decidi esquecer naquele dia.
1) Boa crônica. Heraldo escreve bem. Parabéns.
ResponderExcluir2)Tipos anônimos nos botequins da vida.
3)Por falar em Deneuve, lembrei da Brigite Bardot, hoje com 82 anos, a beleza de sua alma permanece, é defensora dos animais.Ativista social.
Heraldo, você tem alma de cronista. Seus melhores textos são os que transformam um quase nada numa história, ou revelam a história que se esconde atrás de um quase nada.
ResponderExcluirUm abraço.
Mano,
ExcluirGrato por suas palavras generosas. Sou apenas um sujeito que gosta de histórias cotidianas e aproveito para contar as minhas. Abração.
Olá Heraldo. Adoro seus relatos ! Você tem uma capacidade imensa de colocar os mínimos detalhes nas narrativas que chego a entrar na cena, ser partícipe do momento. Para mim elas são reais...viajei na descrição da " Belle de jour ", magnifica ! Impressionante o seu jeito de olhar. Não esqueço das senhorinhas de Friburgo, da mocinha na piscina...Brinde-nos sempre ! E aproveitei para colocar na lista de presentes, livros de Baudelaire . Gosto de lê-lo, a poesia " Embriaguem-se " é uma das minhas favoritas. Abraços, Dulce
ResponderExcluirDulce,
ExcluirObrigado por acompanhar, guardar e "entrar na cena" dos meus relatos. Espero ter a sorte de sempre testemunhar algo interessante, e que possa depois dividir pela escrita.
Concordo, a foto da Belle de Jour que o Mano nos ofereceu é primorosa!
Parabéns Wilson, pela belíssima foto de Catherine Deneuve. Linda de viver !!!
ResponderExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirO Wilson disse tudo. É muito gostoso ler suas crônicas, fica sempre um gosto de queria mais
Até mais.
Ana,
ExcluirObrigado. Oxalá, haja sempre o que contar.
Observador, sensível e excelente escritor. Quando sai o livro?
ResponderExcluirMano Véio,
ResponderExcluirVocê continua a pintar, com palavras, quadros com paisagens humanas inesquecíveis.
E encerrar esse quadro com a "Belle du Jour", a eterna Catherine Deneuve, deixa marcada, mais uma vez, a beleza da alma e da sensibilidade humana que você carrega em si.
Nota 10!!
Especial, como sempre!
ResponderExcluirGrande Heraldo!
ResponderExcluirMais uma vez essa sua facilidade de nos transportar para a cena descrita me fez quase sentir os cheiros do ambiente, da comida, do café, da moça...
Parabéns mais uma vez, meu jovem!!!
De novo, abduzida pelo seu texto. Pousei suave por aqui, com um discreto sorriso nos lábios. À la Deneuve.
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