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30/06/2016

Vida



Francisco Bendl    

Hoje trazemos mais uma reflexão do Chico:  


Os taxistas que trabalham em Pontos fixos têm vantagens sobre os colegas que operam livremente, é o que eu penso.

Há uma clientela conhecida, formada. Sabemos quem são os mais amáveis, os ranzinzas, os que dão gorjeta, os que esperam o troco até em moedas (de pleno direito, diga-se de passagem), os que nos confiam a lista do supermercado para que façamos as compras no seu lugar, enfim, existe uma rotina já sabida por todos.

Em razão de andarmos muito pelo bairro, descobrimos particularidades de certas ruas, seus movimentos, a forma como seus moradores estacionam os carros, se as crianças cuidam ao atravessar as ruas, se há espaço suficiente para que possamos apanhar os passageiros sem ser em fila dupla, detalhes que somente o ir e vir ensinam.

Numa dessas esquinas do bairro Menino Deus, “morava” um grupo de gente jovem.

Eles usavam a calçada como casa e, encostados no muro de uma residência, os colchões onde dormiam.

Não tinham absolutamente nada. Viviam de doações e os trocados que os proprietários de veículos lhes davam para que cuidassem dos carros quando estacionassem nos arredores.

Eram cinco pessoas, três rapazes e duas moças. Eu os via várias vezes durante o dia naquela vida de extrema penúria, sem futuro, nem eira nem beira como se dizia antigamente, e me dava pena vê-los naquela miséria, abandonados à própria sorte.

Confesso que cheguei a ter raiva dos pais daquela gente que os colocaram no mundo sem qualquer condição para isso, a não ser para que sofressem ou pagassem pelo desatino de seus genitores.

Ao mesmo tempo que eu recriminava pai e mãe daqueles jovens, eu me lembrava       que não deveria julgá-los, pois não me dizia respeito o que tinham feito.

Mas eu me preocupava – se é que posso dizer assim – com a possibilidade de, à noite, o vento frio, a temperatura baixa, os corpos que precisavam se aquecer, a aproximação natural entre as moças e rapazes, que surgisse uma situação inesperada, alguma consequência séria acontecesse.

Não deu outra: Em seguida uma das meninas engravida, ostentando a barriga como um troféu conquistado e imune às responsabilidades que aquela “vitória” lhe ocasionaria.

Eu que criticara seus pais estava diante da mesma imprevidência, porém, agora, cometida pela filha!

Que mundo mais sem sentido. Será que não pensam essas pessoas nos atos que cometem?

Será que a vida não tem valor a ponto de se vivê-la tão solta, sem maiores propósitos, objetivos, na base do “vai ou racha”?

Cada vez que eu cruzava por aquela esquina e os observava, lá estavam eles alegres, bem dispostos, felizes da vida!

O que faz a juventude e seus poderes para facilitar a existência ou proteger o jovem da cruel realidade. Que momento da vida interessante essa idade que vai da brincadeira à paternidade; que vai da ingenuidade à descoberta que é um homem; que faz da menina, mulher; que faz da criança, mãe!

Esses moradores de rua pensam da vida o quê?

Não sei. Mas muitas vezes me pareciam mais à vontade com suas dificuldades do que alguns opulentos que conheço e não sabem viver. Enfim, que Deus os protegesse e não deixassem de dar importância ao filho que estavam colocando no mundo, que soubessem cuidar da criança e tomassem juízo.

Houve um tempo que dois deles se ausentaram. A menina estava para ter o nenê e tinha ido para o interior do Estado na casa de uma tia (com o passar dos meses eu andando pelo bairro inúmeras vezes era óbvio que eu me tornara conhecido e ganhara até um apelido: chamavam-me de “motorão”).    

Um belo dia em uma das minhas andanças pelas ruas do bairro, eis que retorna a nova mãe. O casal estava em festa e fizera questão que eu descesse do carro para ver o bebê, um menino.

Mil coisas me passaram pela cabeça ao ver aquele inocente enrolado em trapos e segurado sem jeito pela mãe. Naturalmente que a pergunta que sintetizava todas era: Como vão criá-lo?

Embarquei no carro, entrei no primeiro mercado que achei, comprei um pacote de fraldas e fui levar a minha “lembrancinha” para os mais novos pais.

Saí em seguida, observando aquele grupo que não se importava com o amanhã;
que não respeitava as leis da sobrevivência;
que não respeitava o tempo;
que não dava bola às dificuldades;
que se lixavam pelo bem material.

Um novo conceito de vida?

Uma nova maneira de transformar a existência de acordo com o pouco ou quase nada que se tem?

Seria esta a verdadeira liberdade, sem vínculo nenhum com o dia a dia?

Sem preocupação com o que haveriam de comer, vestir, beber?

Talvez, pensei. Mas haja coragem!

Tentando eu traçar um paralelo com os irmãos nordestinos e suas mazelas climáticas, suas terras arenosas que a seca dos sertões determina a permanente falta de água, aquelas casinhas feitas de barro e nada dentro (jamais vou esquecer aquele repórter da Globo, que chorou copiosamente ao brincar com uma das crianças que fazia de brinquedo os ossos de um animal morto pela fome e sede), foi como se eu tivesse sofrido um soco na boca do estômago ao me lembrar do notável pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta modernista, quando inspirado escreveu Morte e Vida Severina:

      (...)
                    “E não há melhor resposta 
                    que o espetáculo da vida:
                    E vê-la desfiar seu fio,
                    que também se chama vida,
                    ver a fábrica que ela mesma,
                    teimosamente, se fabrica,
                    vê-la brotar como há pouco
                    em nova vida explodida;
                    mesmo quando é assim pequena
                    a explosão, como a ocorrida;
                    mesmo quando é uma explosão
                    como a de há pouco, franzina;
                    mesmo quando é a explosão 
                    de uma vida Severina.”

Que a cada nascimento nossas esperanças se fortaleçam e que esteja nessa criança que ora nos dá o prazer e honra de sua presença, a mensagem celestial que ela traz consigo de amor, paz, carinho e afeto.

Que esta nova vida distribua aos mais velhos, a nós, que  somos todos responsáveis por aqueles que trazemos a este mundo e que é nossa obrigação principal a construção de um mundo cada vez melhor para recebê-las, a magia de nos fazer entender que o ser humano é um só, que todos dependemos de todos e somente seremos felizes quando efetivamente nos preocuparmos com o próximo até chegar o momento nesta roda viva da existência que somos os próximos a receber o amor de todos.
Este grupo me mostrou que carrega alguns pressupostos à felicidade, tais como, alegria, amizade, companheirismo, e mesmo inexistindo por absoluto o suporte econômico (casa e trabalho), não os impedia de encarar a vida com otimismo e despreocupadamente, e viver cada dia como se fosse o único que eles tinham.

O grande educador e pedagogo Paulo R. Neves Freire (1921-1997), pernambucano, definia de forma primorosa uma grande parcela da realidade social brasileira, ao dizer:

                       “Aos esfarrapados do mundo
                      E aos que neles se descobrem e,
                      Assim descobrindo-se, com eles
                      Sofrem, mas, sobretudo, 
                      Com eles lutam”.

Que nos lembremos estar na dignidade do ser humano a sua maior fortuna, porque nos iguala, e porque não vista, pensamos que não existe.
Mas, quem a tem, se vê e, quem não a tem, não vê no semelhante a si mesmo!

29/06/2016

De Discos e Toca Discos


Meu Toca Discos


Wilson Baptista Junior       



Faz uns dias, conversando com o Moacir, a conversa se voltou, não sei bem porque, para toca discos.
Ele, como eu, é um dos que ainda gostam dos toca discos (e não dessa onda "vintage" de gente que agora está achando chique a moda de comprar vinil, sem saber bem porque, e essas vitrolinhas horrorosas que vão junto hoje).

Minhas primeiras lembranças de música, bem pequenino, são daquelas bolachas pretas de 78 rotações, numa eletrolona na sala lá de casa. Me lembro de ouvir a orquestra de Georges Boulanger tocando “Sous le Ciel de Paris”, aquela entrada belíssima do violino na “Valsa Triste” de Sibelius, e muitas peças clássicas, sempre interrompidas pela virada e troca dos discos que guardavam só cinco minutos de música em cada lado. Ouvir uma sinfonia era um exercício de paciência. Para não falar das vezes em que quebrei algum disco mexendo neles, eram muito frágeis.

Um dia meu pai chegou em casa com um disco diferente, e um grande caixote com um toca discos Webcor novo dentro. Era o primeiro long-play de 33 rotações que entrava lá em casa, e o toca discos da eletrola tinha que ser trocado por um capaz de tocar o novo formato.
Trocar o toca discos envolvia fazer uma nova base dentro do móvel da eletrola. Vi o meu pai fazer isso na oficina lá de casa, e foi a primeira vez em que vi um toca discos por dentro. 

Com os LPs comecei realmente a escutar música. Muitas delas me marcaram pela vida afora; uma foi o “Concerto para Violino em Ré Menor”, de Tchaikovski, tocado por Rudolf Schulz com uma orquestra pouco conhecida, da Rádio de Leipzig. Hoje tenho uma porção de gravações deste concerto, mas nenhuma se compara àquela maravilhosa do Schulz, onde ele, como vim a ler muitos anos depois numa crítica da Grammophon inglesa, “derramou sua alma sobre as cordas”.
Até hoje é a música que escuto quando estou triste por alguma razão. Ainda tenho aquele disco original, já um pouco danificado pelas agulhas da época, e nunca mais, por mais que tenha procurado, encontrei de novo essa gravação para comprar. Recentemente um de meus irmãos, numa das últimas grandes lojas de discos clássicos e de jazz de qualidade de Londres, a Harold Moore Records, colocou os vendedores para fazerem uma pesquisa. Nenhum deles conhecia nem o Schulz nem a gravação. Mostrou para eles no You Tube, onde existe uma gravação de apenas quarenta segundos, e procurando nos sites de discos raros conseguiram localizar num deles um último exemplar, usado, do Schulz tocando o concerto, mas não era com a mesma orquestra... 

Outras foram os “Quadros de Uma Exposição”, de Mussorgsky, as peças para violino de Sarasate (até hoje me lembro do nome inteiro do compositor, que me fascinou por sua sonoridade quando o li, Pablo Martín Melitón de Sarasate y Naváscues), as “Rapsódias Húngaras” de Lizt, a “Peer Gynt” de Grieg, que tomou para mim uma nova dimensão depois que li o livro de Ibsen e aí entendi o “Cimarron” da Edna Ferber, o “Príncipe Igor” de Borodin,  o “Pássaro de Fogo” e a “Sagração da Primavera”, de Stravinski, a “Noite no Monte Calvo” de Mussorgski, essas duas indissoluvelmente ligadas à lembrança das cenas do “Fantasia” de Disney...
        E a beleza da introdução da "Scheerazade" de Rimsky-Korsakov, quando aquele violino solitário vem vindo lá de longe como se viesse do fundo do coração.

Todas essas mescladas sempre com a lembrança de meu pai e minha mãe me explicando as peças.

Foi aí também que tive meu primeiro contato com a ópera, num disco com uma coletânea instrumental de árias que abria com Verdi, a Grande Marcha da “Aída”, passava pela Meditação de “Thaís”, de Massenet,  e terminava, se não me engano, com o Toreador, da “Carmen” de Bizet.

Mas não era só música clássica, nunca vou me esquecer do dia em que ouvi a primeira gravação de “Rock Around the Clock”, com Bill Halley and his Comets. Foi um terremoto na minha turma...
Nem das músicas românticas, Connie Francis cantando “Granada”, Nat King Cole, Os Cantores de Ébano, e os infindáveis boleros das festas da adolescência...

Mais tarde essa eletrola foi substituída por outra, e afinal por um conjunto da Philips, estereofônico, com duas caixas grandes, entradas para gravador e sintonizador, que achávamos o máximo. 

Na véspera do meu casamento com Ana (que foi às nove da manhã) fiquei até tarde gravando uma fita para tocar na igreja (não tínhamos dinheiro para contratar música), e na hora do casamento os convidados viram um sujeito em mangas de camisa atarefado no fundo da igreja, estendendo fios, pendurando as caixas daquele conjunto e regulando o som. Quando o carro da noiva chegou na porta, o sujeito enfiou um paletó e correu para a frente do altar para esperar a moça...
Ainda me lembro de que a Ana entrou na igreja ao som de “Raindrops Falling on My Head”, a música tema do filme Butch Cassidy, e nos casamos ao som do “The Windmills of Your Mind”, da cena antológica do voo de planador do Steve MacQueen no filme “Crown, o Magnífico”.

Depois de casado e quando consegui uma certa estabilidade financeira, eu me tornei um daqueles que na época, quarenta anos atrás,  se denominavam aficionados por "alta fidelidade". Tinha um toca discos Philips Electronic 212, na época o que a Philips fazia de melhor. Mas aí troquei a cápsula por uma ainda mais sensível, e achei que ela já estava testando os limites de sensibilidade do braço do Philips. Então comprei de um amigo (outro aficionado) um  braço Shure/SME, mas aí tive que procurar um motor para instalar o braço.
Quando voltei de uma viagem à Europa, esse amigo disse que enquanto eu estava fora tinha encontrado para mim um motor Garrard 301, dos que a BBC usava antigamente, zero quilômetro. Um camarada desavisado aqui tinha importado o motor pensando que era um toca discos completo, e aí sem saber o que fazia com ele colocou-o no armário e lá ficou por uns quinze anos.

Comprei o motor, construí a mesa com o sistema de amortecimento de vibração por molas na oficina de Papai, instalei e calibrei o braço... E aí o toca discos não dava regulagem de velocidade, girava um pouco mais rápido do que deveria, mesmo no limite do ajuste.
Escrevi para a Garrard na Inglaterra (foi antes da Gradiente comprá-la e acabar com ela) e me disseram que o motor era calibrado para braços mais pesados, que se usavam quinze anos antes, então girava mais rápido para compensar o retardo pela maior pressão da agulha, e aí ficava muito rápido com os 3/4 de grama que eu usava. Me mandaram um estojo com diversas peças de reposição incluindo duas polias de bronze, de três velocidades, em estado bruto, e eu calculei e torneei uma delas para as medidas correspondentes no torno de joalheiro de meu pai.

Quem conhece a precisão necessária para fabricar uma polia dessas que não introduzisse variações de som num tocadiscos daquele tipo, sabe que só o processo daria um artigo :)

Aí ficou beleza. Ele ficava em cima de uma estante baixa. Anos depois mudei-o para a prateleira da fotografia  que ilustra este artigo, então como ficou muito próximo da parede tive que inverter o mecanismo de peso de ajuste fino da pressão do braço (que se projetava para trás), o que implicou em fabricar e ajustar outras peças.

E está lá há trinta e poucos anos, tratado, como dizia meu pai, "a pão de ló e guaraná gelado", rodando meus LPs. Só a cápsula é outra, uma Shure V15 IV, mais nova. 

Bons tempos em que a paixão e a disposição me faziam fazer coisas assim...

Nesses anos todos fui avançando devagar na minha educação musical e me apaixonando, ou me apaixonando de novo, por tantas músicas, o “Don Quixote” de Richard Strauss, a “Novo Mundo” de Dvórak, a “Suite Grand Canyon” de Grofé, .a “Rhapsody in Blue” e o “Concerto para Piano” de Gershwin, o Concerto para Piano de Grieg.

Muita música de câmara. A “Serenade” de Beethoven, com o soberbo trio de cordas de Jascha Heifetz no violino, Gregor Piatigorski no cello e William Primrose na viola, que se reuniam nos Natais para tocar juntos.
Os grandes, Bach, Vivaldi, Beethoven, Mozart, Brahms e por aí a fora. Os escandinavos, Grieg, Halvorsen, Nielsen.  O “Mà Vlast”, de Smetana.
E uma quantidade de jazz e blues, mas esses foram quase todos em CDs, já não foram no toca discos...

28/06/2016

Na Cidade Sagrada


Alvorecer em Varanasi (foto Trekearth)


Moacir Pimentel     

Todos nós gostamos de Beleza. Todos nós amamos a Vida. Mas as visões da feiura  e da  morte também são necessárias, já que elas todas, mais do que opostas, são partes de um todo, aspectos de uma mesma coisa. Como é possível conhecer o belo, desconhecendo o feio? Como é possível abstrair a luz se nunca mergulhamos na escuridão? Como é possível viver a vida em plenitude se nela não pensamos na morte? Essa tensão entre avessos deveria ser serena, em sfumato, sem fronteiras rígidas, sem formas de contornos nítidos, mas que se abraçassem através de uma mistura sutil e gradual de um estado de espírito para outro, de um tom para o seguinte, de modo a eliminar qualquer transição visível entre luz e sombra, qualquer ruptura cromática. Ambos  os  lados  lá.  Dia  e  Noite,  Claro  e  Escuro,  Vida e  Morte. Sempre presentes, mas se equilibrando, neutralizando­-se, socorrendo-­se, suavizando brilhos e aliviando escuridões.

Talvez a perfeição não tenha graça. A beleza pode não ser atraente e a feiura pode não ser repulsiva e, principalmente, inexistem as certezas estéticas. Tem mais. As percepções mudam e o que era belo, se for um milímetro além de misteriosos limites, pode se tornar bizarro e até mesmo inaceitável. Além disso, quando algo se torna familiar, passamos a tolerá­-lo e a tolerância pode amadurecer em afeto. Vale ponderar ainda que, se a feiura inicialmente nos perturba, ela nos surpreende mais do que a beleza. Ou seja, a beleza pode funcionar como um sedativo, previsível e suave, em vez de um desafio. E quem poderá dizer que ser sedado e acalmado é melhor do que ser estimulado e fascinado intelectualmente? O certo é que, como nos provam tantos artistas, até mesmo nos aterros de lixo se pode encontrar coisas de beleza estranha, de beleza... transcendente.

Contraditória. Assim era aquela Varanasi paupérrima e imunda mas belíssima que, aos 25 anos, de saída, eu não pude compreender. Afinal a grande miséria humana não é a ausência de beleza e de sentido. É não saber encontrá­-los.

"Achar beleza na feiura é a província do poeta" afirmou Thomas Hardy.

Da primeira vez que contemplei Varanasi, de dentro de um barco singrando o Rio  Ganges nas últimas horas de uma madrugada, eu me encantei. A ribeirinha de Varanasi era um conjunto de arquitetura magnífica, em infinitas camadas que pareciam bordadas em texturas e desenhos e contrastes às toneladas, em suma, uma visão de rara e mística beleza. Composta por plataformas de alvenaria e por íngremes  degraus conhecidos como "ghats", ela era especial. Suas escadarias eram sombreadas por uma alta fortaleza, por majestosos palácios, templos requintados, santuários que perfuravam o céu com suas torres ornamentadas, ermidas, mosteiros, mesquitas, pavilhões e prédios de diferentes sotaques. E em meio a tudo isso havia dois crematórios, os ghats Manikarnika e Harishchandra, onde as fogueiras queimavam corpos incessantemente há mais de oitocentos anos.

Quando amanhecia, o sol que nascia na margem direita do rio lançava reflexos de um laranja profundo sobre as escadarias e templos na margem esquerda. Era como se o sol fizesse a água dançar mais do que brilhar. Mais alto, o sol envolvia a cidade distante e o rio num abraço de tom amarelo­ dourado, enquanto a névoa da noite e a fumaça das fogueiras se dissolviam e delas saltava o céu azul da manhã.

De longe e do rio e no alvorecer a paisagem que descortinei foi incomum, uma combinação de arquitetura e história, de beleza e pobreza, um espaço muito especial onde o eremita se encontrava com o hedonista, onde a ação humana incessante acontecia lado a lado com profundas quietude e contemplação, onde o toque dos sinos dos templos, o canto dos mantras e a melodia da música devocional se misturavam com a cacofonia das ruelas, onde a fragrância de flores e incenso me entontecia, junto com o cheiro de lixo e  de fumaça  e de lenha e onde a beleza morava com a feiura, e a alegria com a dor.

Só que, quando aquele barco alcançou a terra firme e eu desembarquei no cais... a  história  ficou  diferente. Confesso que Varanasi me atordoou. A maioria dos viajantes concordava que Varanasi era um lugar mágico, sabendo, no entanto, que não eram recomendados para os fracos de coração os seus rituais íntimos da vida e da morte. Nós ocidentais somos treinados para internalizar a Morte que, em Varanasi, era festejada abertamente, nas nossas caras. Pense em um desequilíbrio!

Nenhum lugar onde eu já estivera e nada que eu já vira antes me preparara para o que eu vi em Varanasi, para aquela injeção de miséria e de impermanência na veia. Ali a poluição era intensa. Os barcos que, dia e noite, transportavam toras das mais variadas madeiras para alimentar as fogueiras crematórias, cruzavam águas imundas e  descarregavam suas cargas em margens tomadas por lixo. As buzinas eram ensurdecedoras, as multidões eram mais esmagadoras do que em Bombaim ou Nova Deli. Ao contrário do resto da Índia, ali confusão não parecia ser um caos organizado. Tive que decidir o quanto estava disposto a absorver da paisagem física e espiritual de Varanasi de imediato e o quanto seria melhor deixar para mais tarde, ou para ser transformado em fumaça. Afinal, em Varanasi, tudo não estava sempre sendo queimado?

Fora dos ghats crematórios as cores explodiam. Mas neles, à beira das águas mais poluídas do mundo, todas as formas me pareciam cobertas por uma camada monocromática de cinzas dos mortos. Se lá embaixo, nas margens do Ganges, eu caminhava sobre o lixo dos mortos, lá em cima,na velha cidade, em um labirinto de becos chamados "galis" que eram estreitos demais para o tráfego, eu convivia com a  imundície dos vivos. Qualquer um se desorientava por aquelas paragens, mas era só seguir a multidão ou os sinais de fumaça e a gente terminava em um ghat.

Milhares de riquixás -­ os condutores de bicicletas adaptadas para transportar passageiros -­ se estranhavam pelas vielas e buzinavam impacientes e berravam, milhares de criaturas urinavam nas paredes antigas, moribundos morriam pelas calçadas em meio aos cães, às cabras e às vacas e aos seus dejetos, que, aliás, eram recolhidos frescos para em seguida serem postos para secar e usados na cremação das pessoas mais pobres, sem dinheiro para comprar, para as suas piras, a caríssima madeira, fosse ela de sândalo ou a das frondosas mangueiras.

O cheiro das ruas era vomitativo. As vacas estavam por todos os lados. Não, os hindus não veneram as vacas, embora eles as tenham em alta estima, desde os tempos védicos antigos, já que dependem delas para sobreviver. Estariam tramados sem os produtos lácteos -­ o mais famoso é a manteiga ou "ghee" que é usada até mesmo no chá! -­ e de toda aquela caca, como fonte de combustível e fertilizantes.
A vaca é vista como uma guardiã ou figura materna. A deusa indiana   Bhoomi, que representa a Terra, é geralmente mostrada na forma de uma vaca. No hinduísmo, a vaca é um símbolo de riqueza, força, abundância, doação altruísta e uma vida terrena completa. O animal é respeitado por sua natureza gentil, que remete ao principal ensinamento do hinduísmo: a não violência. Se bem que testemunhei as santinhas dando muitas cabeçadas em muitos turistas desavisados... Finalmente, os hindus não comem carne de vaca na Índia, embora o façam na Malásia. Quem foi mesmo que disse que a realidade é um lugar onde a gente come um bom bife?

A impressão que eu tinha, em determinados momentos, naqueles primeiros dias que passei em Varanasi, era exatamente essa:

ISTO NÃO ESTÁ ACONTECENDO!

Também os sadhus, os homens santos, se não oniscientes eram por lá onipresentes, cada qual mais estranho que o outro com seus corpos esqueléticos e rostos pintados, e os cabelos e barbas descendo até os pés em dreadlocks.
Os sadhus são ascetas,quase sempre yogas, dedicados unicamente a perseguir "mokṣa" - ­ a libertação do círculo das reencarnações ­- através da meditação e da contemplação de Brahman. Eles são renunciantes que optaram por viver uma vida nas bordas da sociedade para se concentrar em sua própria prática espiritual, a "sadhana", deixando para trás todos os apegos materiais.

Vivem em cavernas, florestas, templos hindus e até cemitérios, por toda a Índia e o Nepal, usando roupas da cor do açafrão -­ não muito mais que panos às vezes -­ simbolizando a sua "sannyasa" -­ a renúncia. Este modo de vida está igualmente aberto às mulheres, mas encontrei raras sadhvis. Eles são popularmente chamados de "babas", palavra que significa avô, pai ou tio ou professor em várias línguas indianas. Aliás, as línguas e os dialetos oficiais indianos são mais de cento e quarenta, e, portanto, os nativos são forçados a se comunicar em inglês, que falam mal. Uma verdadeira Babel.

Tais homens me pareceram amplamente respeitados por sua santidade, pois a cultura indiana enfatiza um número infinito de caminhos para Deus, de tal forma que os sadhus têm seu lugar garantido. Acredita-­se que suas práticas austeras ajudam não apenas quem as pratica a queimar carma, mas a comunidade em torno da qual gravitam. Assim, eles são vistos como benfeitores da sociedade e são bancados por ela.

No entanto não são uma unanimidade e têm sido vistos, histórica e contemporaneamente, com um certo grau de suspeita, especialmente entre as populações urbanas da Índia. Dizem as más línguas que nas cidades de peregrinação, como é o caso de Varanasi, tem muito malandro posando de sadhu para deslocar esmolas.
Um dos mais conhecidos dos rituais dos babas é a utilização da cannabis -­ sob a  forma de haxixe -­ como um tipo de sacramento em linha com o culto de Shiva, deus que se acredita ter uma afinidade com as folhas da planta. Então era comum deparar-­me com os babas na posição de lótus, pitando os seus cachimbos e, além de cheirar a excrementos, a carne e a cabelos humanos queimados, Varanasi também cheirava a maconha.

O mercado central era o palco de uma agitação intensa, numa simbiose entre um delicioso encanto e o mais puro caos. Bancadas de verduras, especiarias, incensos,  flores, tecidos, artesanato, chapatis, dahls, rotis, lassis, chamuças, curds, deliciosos sucos de frutas formavam um quadro cromático inesquecível, mas o lixo, para a alegria dos animais, era largado pelo chão. Em meio à confusão reinante e sofrendo de tanatofobia profunda como poderia eu ali conservar intactos os apetites?

Eu fiquei longe dos ghats crematórios naqueles primeiros dias. Muitas outras atividades em Varanasi giravam em torno dos demais ghats. Nas escadarias e plataformas destinadas aos banhos ­- eram diversas e tinham os usuários separados por castas -­ homens e mulheres e crianças se lavavam e às suas roupas juntamente com búfalos e vacas. Escusado seria dizer que, enquanto estive naquele santo local, lavei as minhas roupas no banheiro da hospedaria...

27/06/2016

A Máquina do Tempo



Boy listening to radio - Ryedale Folks Museum


Heraldo Palmeira       

No centro da sala pré-televisão, um solene rádio Franklin (marca da Philips argentina), valvulado, caixa mista de madeira e baquelita trazia o mundo para dentro de casa por meio de duas emissoras AM de cidades vizinhas. Havia sempre um disc-jóquei ocupando manhã ou tarde inteiras com seus programas. Depois da escola, eu “entrava no ar” a partir das 11h e seguia até A Hora do Angelus, quando a Ave-Maria de Gounod anunciava suavemente que era hora do banho, porque em pouco tempo meus pais chegariam do trabalho e o jantar seria servido sem atrasos.

Logo na abertura do programa, a voz impostada do locutor lançava a isca fatal: “Daqui a pouco, The Beatles!”. E o sujeito ficava embromando a tarde inteira para, quase noite, enfim liberar a magia – estou ouvindo lembranças de 1966, quando já estávamos completamente contaminados pelo som repetido naquela espécie de cadeia de rádios em várias casas, espalhando o vírus a todo volume na cidade inteira.

A contaminação começou em 9 de fevereiro de 1964, quando uma América perplexa sediou um surto de histeria até então desconhecido, que dera os primeiros sinais dois dias antes com a paralisação do aeroporto JFK, em Nova York.

Naquela noite de domingo, a rede CBS levaria ao ar mais um programa The Ed Sullivan Show, até então um mamute de popularidade. Ali, descobriu-se que a audiência monumental era apenas um elefantinho diante do que viria depois, já que “apenas” 73 milhões de pessoas (34% da população americana da época) se postaram diante de suas tevês, eletrizadas pelos rapazes de Liverpool. Foi o instante em que aqueles quatro garotos que enlouqueceram o aeroporto ao desembarcar, conquistaram definitivamente a América e partiram para enlouquecer o mundo, inauguraram a beatlemania e começaram a consolidar a maior banda de todos os tempos.

Passados cinquenta anos, a mesma CBS produziu um especial para comemorar aquela noite memorável. A noite que mudou a América virou mais um marco de uma banda acostumada a feitos estratosféricos. E deixou claro que, por mais que alguém com muito talento entre na fila, ninguém consegue pisar o território de divindade dos Beatles. Uma divindade obtida exatamente porque eles pisaram juntos céus e infernos humanos enquanto mudavam o comportamento do mundo, amparados pela obra genial que produziram.

O show contou com releituras de clássicos da banda feitas por uma constelação de astros da música mundial. A noite já seguia imperdível, até que Ringo Starr pisou o palco e elevou tudo para outro patamar, o reino do sobrenatural. A ponto de a sempre estranha Yoko Ono, agora oitentona, cair na gandaia enlouquecida numa dança estranhíssima, parecendo possuída por alguma entidade!

Logo depois, com a entrada de Paul McCartney em cena, veio a comprovação de que até o sobrenatural tem graduações. Ao lado do velho comparsa, e invocando as memórias de John e George, o cavaleiro de sua majestade abriu as portas da máquina do tempo.

Diante daquela apoteose, a gente se pergunta: por que ninguém cansa de ouvir as velhas, insuperáveis e eternas canções de sempre? Por que elas seguem tocando com frescor? Talvez porque sejam guardadas até por crianças muito pequenas, que se esgoelam em cada palavra das letras para engrossar o coro dos pais e avós.

No panteão dos maiores da música de todos os tempos, The Beatles vive acima do topo. E a distância entre o primeiro lugar e o topo é dimensão de Universo. O resto é galáxia!

26/06/2016

O Trovador da África


Griots - imagem Wikipédia

Antonio Rocha

Em 1983, se não me falha a memória, veio ao Rio o diretor de Etnomusicologia da Unesco, o camaronês Francis Bebey (1929-2001). Por motivos acadêmicos encontrei com ele e fizemos matéria que foi publicada no antigo Segundo Caderno de O Globo, quando o editor era o querido Fuad Atalla e o colunista de Livros, o também querido, já falecido, Carlos Menezes.

Uma das perguntas que fiz a Bebey foi como era viver sob o colonialismo francês. Sorrindo ele me disse, mais ou menos assim:
“Veja você, nasci na República dos Camarões, e quando criança, na escola, os livros didáticos vinham de Paris e diziam que os antepassados dos franceses eram os gauleses, brancos de olhos azuis. Nós, a criançada negra, olhávamos uns para os outros e não podíamos rir, mas lá fora no recreio a gente ria para descontar os absurdos. Eles diziam que éramos franceses e não camaroneses”.

Bebey era violonista conceituado e se apresentou no Teatro da UFF, em Niterói. Era profundo conhecedor da música brasileira e gostava muito de Clementina de Jesus.

Outra coisa interessante que me falou: “a meninada adorava os ritmos africanos, mas os franceses diziam que não podíamos ouvir, pois era coisa do Demônio...”

(No Google o leitor encontra bom material sobre o etnomusicólogo Bebey. Além do citado Globo, a matéria também foi publicada na revista mensal portuguesa A Razão, de Lisboa, num período em que compartilhei com amigos lisboetas alguns textos. No Rio, até hoje existe o jornal mensal A Razão, fundado em 19/12/1916, quase centenário. Pertencem à Filosofia Espiritualista Racionalismo Cristão, presente em vários países.)

Uma coisa que Francis me contou e me chamou bastante atenção eram os “griots”, quando na antiguidade africana, poetas-músicos andavam pelo continente cantando e encantando em várias aldeias, me fez lembrar nossos cantadores do nordeste e a literatura de cordel.

No show, só ele e o violão no palo, e mais um banco onde sentava,  cantava, tocava violão e para ritmar, às vezes batia na madeira do instrumento. Na verdade, ele era um “griot”, poeta andarilho se apresentando em vários países. Hoje, certamente, continua fazendo o mesmo, lá no céu ... na presença de muitos anjos e boas almas.

25/06/2016

O Tagarela


Francisco Bendl

Eu sou um motorista que gosto de conversar durante os trajetos levando passageiros.

Nem sempre as conversas são agradáveis, ainda mais quando descambam para os aspectos de cunho pessoal, a vida íntima ou uma particularidade que só àquela pessoa interessa.
Mas são casos raros. A maioria dos passageiros mantém um comportamento educado e um diálogo interessante, independente de ser homem ou mulher o transportado.

A clientela do Ponto já conhece as características de cada motorista e torna-se fácil o relacionamento, pois de um lado e outro se sabe como tornar o percurso o melhor possível.

Diante da diversidade de pessoas que conduzimos não é possível guardar na memória o passageiro eventual, ocasional, aquele que não vamos ver mais salvo uma grande coincidência, e já aconteceu comigo, de transportar duas senhoras que pegaram o táxi no bairro Azenha sem que eu as tivesse levado uma só vez e no dia seguinte elas entrarem no meu carro me acenando da rua na Presidente Roosevelt!
Dois dias depois eu as conduzi na Lima e Silva e também através de aceno que me fizeram na avenida. Fizemos uma festa pela surpresa do reencontro e porque – em tom jocoso – nossos encontros significavam que alguém estaria interessado em alguém.
Eram duas senhoras na terceira idade, extremamente simpáticas e agradáveis – duas irmãs – que não se desgrudavam uma da outra.

Muito diferente do José (nome fictício, óbvio), um cara que não calava a boca desde que entrava no carro até sair e, pior, achava que sabia de tudo (na verdade enrolava os mais incautos).

Coincidia de eu levá-lo seguidamente. E mesmo que não fosse assim o José ficava para eu transportá-lo porque os colegas davam no pé, ninguém gostava do lero lero que ele aplicava. Desta forma eu fui conhecendo as manias do gajo e seus falsos conhecimentos a respeito de história, geografia, literatura brasileira, autores estrangeiros, compositores internacionais etc, etc.

O José tinha um verniz apenas e não resistia a qualquer interpelação ou contestação sobre o que afirmava, bastava que não se concordasse com o que dissera que ele puxava o carro, isto é, mudava de assunto para não se comprometer.

Certa vez o José entra no táxi porque eu era o ponta e imediatamente aborda assuntos sobre religiões.
Começou a falar do espiritismo, catolicismo, anglicanismo, protestantismo. Sofreu um pequeno golpe quando eu lhe perguntei sobre o que sabia do calvinismo. Fez-se de rogado. Continuou a dissertar sobre religiões politeístas até chegar ao espiritismo.
                        Enquanto ele tomava fôlego e para impedi-lo de tagarelar um pouco, eu lhe indaguei a respeito do que poderia me dizer das diferenças entre budismo e espiritismo, afinal de contas são doutrinas que propalam a reencarnação, portanto, há uma identidade entre elas.

O José era esperto. Percebeu a minha intenção e alterou a sua postura passando a perguntar para mim o que eu sabia sobre ambas e o que as diferenciava.
De modo a me testar em definitivo pela audácia de um motorista de táxi manter um diálogo com um estudioso sobre este tema, ele me pergunta de sopetão o que eu sabia do Nirvana.
Confesso que se tem uma conversa que gosto é a respeito de filosofia, doutrinas, religiões. Seus fundadores, suas escolas, suas formas diferentes de encarar o desconhecido e passos que devemos seguir para viver melhor ou alcançar a salvação ou o aperfeiçoamento ou de entender melhor a vida.
Eu havia lido recentemente sobre o grande Buda (até me pareço com ele na dimensão de nossas barrigas conforme as imagens tradicionais do notável indiano), as correntes do budismo e sempre nutri uma grande simpatia por esta doutrina de paz, de contemplação, de busca incessante pelo conhecimento que as pessoas precisam ter de si mesmas.

Comecei a responder ao José que Buda não gostava muito quando seus monges lhe perguntavam sobre o Nirvana, que não é a mesma coisa que “ir para o céu” como entendemos, e disposto a terminar logo com esta curiosidade, Buda dizia:

“Existe, monges, um não nascido, não tornado, não feito, não composto. Se, monges, não houvesse um não nascido, não tornado, não feito, não composto, não haveria uma fuga do nascido, do tornado, do feito do composto. Mas como existe um não nascido, não tornado, não feito, não composto, portanto, há uma fuga do nascido, do tornado, do feito, do composto.”

O José me olhou de cima abaixo, balbuciou algumas palavras sem sentido e ficou calado e quieto. Eu conseguira lograr êxito em querer que ele parasse de falar, finalmente.

Ao descer do táxi e me estendendo o dinheiro da corrida, exclamou:
- Bem que me avisaram que motorista de táxi é metido e o que não sabe inventa. Esta, Chicão, tu me ganhaste!

O José desconhecia que um dos meus livros de cabeceira - e seguidamente eu o levo comigo no táxi -  chama-se Uma História de Deus, de Karen Armstrong, Companhia das Letras.
Uma das maiores conhecedoras do assunto sobre religiões no mundo e autora de vários livros importantes sobre a Bíblia, Islamismo e Judaísmo.
Esta passagem que citei acima sobre o Buda, consta na página 45 do livro também já mencionado e que me impressionou pela maneira como este líder espiritual respondia a certas questões.
Recomendo, humildemente, para quem quiser saber mais a respeito deste tema que leia este livro.

24/06/2016

O trem para a Cidade Sagrada

Hoje o Moacir começa a nos contar uma de suas experiências mais fortes na Índia.


Varanasi - foto Shutterstock
Quando eu  era jovem, durante os nove meses que passei na Índia, eu seguia viagem sem desgrudar os olhos da paisagem que passava pela janela do trem em movimento enquanto lá fora houvesse luz.Mas as noites pela estrada, eram longas, estranhas e mágicas, como se ao subir no trem, eu tivesse abandonado o espaço cotidiano da realidade e entrado em outro reino muito parecido com o dos livros, o reino insone dos exilados, dos viajantes aquecendo as mãos diante das fogueiras ancestrais, dos soldados  romanos  entrando no Tâmisa  há dois mil anos atrás, dos mouros avançando por  El Algarve, dos Lusíadas singrando mares nunca dantes navegados, dos espanhóis avançando México adentro, dos Bandeirantes superando a mata Atlântica.Sempre me perguntei como é que aqueles caras se sentiram, ao chegar de noite à costa de um país desconhecido, ao  pular de um barco no qual  cruzaram o mar na escuridão, ao cair na água fria, ao afundar os pés na areia, querendo se embrenhar rapidamente na terra nova?

As noites  que passei em trânsito, durante minhas andanças  hindus - inclusive para economizar uma noite de hotel - foram  o tempo certo de escutar e contar histórias. Os humanos que se encontram nos trens da vida, sempre em movimento, em  países  estrangeiros, só existem circunscritos ao presente. Nele são perfeitos estranhos, indivíduos desconhecidos olhando-se levemente intrigados ao se acomodarem, um defronte do outro, totalmente despojados do ontem e do amanhã. Condenados ao que rola no agora, que só depende daquilo que calamos  ou expressamos.Era o que se era naqueles trilhos, sem bagagens, que se fosse bom o bastante se tornaria  um postal, um telefonema, uma amizade  futura.

Se nos calamos numa viagem, ninguém sabe quem somos. Sozinhos, em trânsito, ninguém nos conhece e  nós não somos ninguém.
Ao viajar como mochileiro, eu sentia que essa invisibilidade, essa impressão de que não era ninguém e de que podia ser qualquer um, essa leveza de espírito, traduzia-se nos movimentos do meu corpo, como se eu me intensificasse, me expandisse, andasse mais depressa, pensasse de forma mais desenvolta, sem o peso de tudo o que sou, com os olhos abertos às novidades de uma nova paisagem, às incitações de uma cidade desconhecida, às delícias de uma nova língua que desfrutava ao compreender e ao falar, tão bonita porque não é a minha.

Porém a estrada é solitária e nela eu me sentia empobrecido por silêncios. Perguntava-me que histórias saberiam e não me contariam aqueles jovens cara-pálidas ou aqueles nativos de sorrisos brancos em caras morenas do país da vez, quais as memórias de amor que levariam consigo mesmos, que segredos guardariam, de quais  outras viagens vividas, lidas, escutadas ou imaginadas estariam se lembrando, enquanto viajavam calados ao meu lado, um pouco antes de desaparecerem para sempre da minha vida, na próxima estação, de sumirem do meu olhar  na próxima parada, como rostos que eu nem sequer poderia recordar. E então eu começava a conversa. Para não lamentar  depois, profundamente, o tempo perdido, os sorrisos não trocados, as narrativas não compartilhadas, o que poderia ter sido.

Se o viajante ao meu lado fosse um indiano, não importava de que casta, eu não precisava fazer muito esforço para entabular o diálogo. Bastava dizer:

- Hello! 

Em seguida, os caras me metralhavam com perguntas disparadas em série, sempre as mesmas, e em uma idêntica ordem de importância:

- How are you? What's your name? Where do you come from? Are you married? What do you do for a living? How much money do you make a month? What 's your religion?

Certa vez, durante os nove meses que passei perambulando na Índia, dividi a mesa do jantar no vagão restaurante  de um trem que fazia o que me pareceu o interminááável trecho  Hyderabad / Varanasi, com um cidadão que usava um turbante branco como a neve e grandes bigodes pretos retintos. Ele tentou me fazer abstrair a reencarnação. Complicado. Porém, compreendi algumas noções básicas, além do fato que, eventualmente, humanos ao regressar se descobrem, por exemplo, gafanhotos  e têm que começar tudo de novo.

Ele falou-me com um inglês de estranho sotaque, que nada pode permanecer “interminado”. Em seguida, me explicou que tudo evolui perpetuamente. E concluiu que, sendo assim, eu deveria tratar muito bem os desconhecidos de hoje, pois amanhã eles seriam os meus conhecidos, para quem, por sua vez, eu deveria garantir o maior respeito, vez que, depois de amanhã, eles seriam os meus amigos. Que, é claro, deveriam ser rodeados de todos os cuidados pois, como não poderia deixar de ser e não se sabe quando, um dia seriam os meus irmãos, os meus filhos, os meus pais para finalmente, depois de muita estrada e no ápice de uma evolução espiritual-afetiva, virem a ser os meus amores.
Jamais esqueci as palavras daquele cara tão oriental que, na sua crença tão absoluta de que os amores são gestados através dos milênios até que estejamos prontos para vivê-los em plenitude, apenas defendia com outras tintas e cores a Lei de Ouro da nossa ocidentalidade e dos povos do nosso Livro: o amor e o respeito ao próximo. A espiritualidade não tem só uma estrada. Ainda bem.

Pedi-lhe que me falasse sobre Varanasi, a minha próxima escala. Ele me contou que a cidade fora erguida na margem ocidental do rio Ganges, há cinco mil anos, e sendo assim, era uma das cidades continuamente habitadas mais antigas do vasto mundo. Falou-me que ela era a jóia mais brilhante da tirtha  - os  sete locais de peregrinação sagrados para os hindus.

Também conhecida, em vários momentos da história, como Kashi - a cidade da Luz - ou Benares, disse-me ele  que  os peregrinos visitam o rio Ganges  para lavar uma vida de pecados nas águas sagradas ou para cremar nas margens sacras os seus entes queridos. Explicou-me ser Varanasi um lugar particularmente auspicioso para morrer, pois de acordo  com a crença hinduísta morrer e ser queimado em Varanasi oferece aos mortos a oportunidade de alcançar  moksha, o estado de liberação, de fuga do ciclo de renascimento e morte.

Na teosofia, brâman é o Absoluto, o Espírito Divino e Infinito. Aos 25 anos e diante de tantas novidades em inglês gutural o que eu abstraí foi que a libertação do ciclo de sofrimento era concebida, por aquele cidadão tão digno e crente, como uma absorção no absoluto, naquilo do que eu já ouvira vagamente como nirvana. Não, repetiu-me  ele, é moksha o objetivo final de todos os hindus. Muito bem. Consegui entender que todo mundo ia para o rio Ganges atrás do moksha e que era ISTO, seja lá o que isto fosse, o que tornava Varanasi o coração pulsante do universo hindu. Sim, porque àquela altura da conversa, a mim parecia que eu e aquele senhor não éramos habitantes do mesmo planeta.

M-o-k-s-h-a?

Em seguida, o cavalheiro apresentou-me a Brâman, a origem e o fim de tudo, a consciência que evolui neste mundo,  entendido como ilusório e a origem de todo o sofrimento humano. Brâman é um conceito do hinduísmo, um princípio divino, não personalizado e neutro do bramanismo e da teosofia, que não pode ser confundido com Brahmã, a representação da força criadora ativa  do cosmos. Nada disso.

Brahmã foi outro capítulo difícil. É claro que jamais esqueci que  ele, Visnu e Shiva, pelo que entendi, formam a divina trindade hindu. O problema foi outro. Por mais que eu tentasse, o meu sistema fonador não conseguia - sabe-se lá por quais motivos - pronunciar de forma diferenciada os fonemas "â"e "ã" das palavras Brâman e Brahmã. Para não falar naquele "h",  que não era mudo, mas era indizível.

Reprovado na fonética, acredito ter me saído melhor no quesito mitologia. O fato é que, explicou-me meu novo amigo, na mitologia hindu a água é a fonte da vida e da criação e portanto os rios e as margens dos rios são considerados lugares santos. O rio Ganges  que  abraça a cidade  com sua margem esquerda, é personificado como uma deusa e é chamado  carinhosamente  de "Mãe Ganga".
Devido à importância do significado mitológico, os  seus ghats, ou seja, as escadarias cujos degraus, construídos em pontos estratégicos, levam até  à beira das águas, são utilizados por multidões de peregrinos que querem se santificar através do banho ou  pela ingestão da água sacra. Os ghats, que se espalham por cerca de cinco quilômetros, são locais de peregrinação que unificam a cidade santa com o rio sagrado. Neles os peregrinos se reúnem para celebrar os seus "pujas", os diários  rituais religiosos, para lavar-se e às suas roupas e para cremar seus mortos.

Sobre a cremação eu já tinha lido. Não rolava papo algum sobre à Índia no qual não fossem mencionadas "as fogueiras de Benares".A cremação é um ritual, uma interação sensível com deuses, aos quais os corpos são oferecidos e não deve ser vista como apenas um descarte do corpo. Eles acreditam que ao queimar o cadáver, a essência espiritual individual liberta-se do corpo físico, e o ciclo de renascimento e da morte pode continuar. Se a cremação não for feita da maneira certa, a alma  pode não encontrar o caminho para a vida após a morte e, como resultado, vai incomodar parentes vivos. O fogo é associado à pureza e  tem o poder de assustar os fantasmas e os demônios circundantes e essa é a razão pela qual as chamas são o instrumento e o método escolhido  para permitir a divisão completa de essência espiritual e do corpo físico.

De posse de todas essas novas informações, eu me despedi do meu professor com um namastê e um aperto de mão e desembarquei daquele trem na estação de Varanasi me sentindo pós-graduado em bramanismo e convicto, ao contrário dos poetas,  de que a maior fronteira entre as gentes não é aquela que separa os vivos dos mortos. As mais cruéis fronteiras, as intransponíveis,  as mais longas e trágicas estão dentro de cada criatura, que se recusa a olhar atentamente para o sofrimento emocional ao seu redor, que nega oportunidades, que fixa impossíveis limites, que destrói  indiferente tantos destinos, que não escuta, que não estende a mão, que não se comunica.

Mas nada do que eu já vivera até aquele momento, nada do que aquele gentil homem dissera-me, preparou-me para o choque cultural e o assalto aos meus sentidos que sofri naquelas paragens. Ao fim e ao cabo, consegui achar uma maneira de lidar com toda aquela  transcendência do fenômeno de existir, com aquelas noções tão diversas das minhas do tempo, do espaço e das causas, com a  estonteante diversidade dos peregrinos de todas as regiões do país-continente, com a visão constrangedora de rituais íntimos  da vida e da morte   sendo praticados a céu aberto em locais públicos, com a exuberância festiva que a morte tem para aquele povo, com a intoxicação provocada pela explosão de cores  luzentes, pela cacofonia de sons exóticos, pelos cheiros do mais nauseabundo ao mais sedutor, pelos sabores mais do que picantes, por ter que chorar lágrimas ardidas todas vez que comia, por chegar de noite na minha hospedaria coberto pelas cinzas dos mortos que continuavam ardendo nas margens iluminadas daquele rio.

É difícil ter que admitir - mesmo passados mais de trinta anos -  que foi no mais repugnante ambiente material, nas condições de vida mais básicas, que eu testemunhei a mais profunda iluminação espiritual nesse vasto mundo. A Índia, tão pobre, suja e confusa ensinou-me mais do que qualquer outro lugar.

                    Varanasi é para os fortes, e para quem quiser ler tem muito mais o que contar. Mas isto já fica para um novo post.




23/06/2016

Carros Perfeitos



Meu Fusca 54 - foto Heraldo Palmeira


Heraldo Palmeira       

Os sinais iniciais da minha paixão pelos carros estão registrados na primeira infância. Desfilava garboso em um jipe de lata Bandeirante, verde musgo, a pedal. Fazendo com a boca o barulho do motor, da buzina, dos pneus cantando em freadas e curvas perigosíssimas criadas pela imaginação. O alpendre que circundava a casa enorme era a minha pista de corrida. Não demorou, descobri que podia turbinar o motor e ficar ainda mais rápido: ao invés de pedalar, algum amigo empurrava loucamente o carrinho. Que não tinha qualquer sistema de freio!

Na terceira infância, já piloto experimentado, me aventurava como construtor de carrinhos de lata de óleo de cozinha, para consumo próprio. Com a bossa de colocar para fora o lado interno das latas, que deixava nossas picapes com carroceria de alumínio – novidade certamente capturada pela DeLorean na série cinematográfica De volta para o futuro. E para aproveitar as ruas de terra batida do interior, uma pequena tira de aço instalada no eixo traseiro riscava o chão levantando uma espetacular nuvem de poeira.

Caminhando pela avenida Paulista em pleno domingo, deparei-me com um senhorzinho vendendo carros de lata de óleo. Estilizados. Parei na hora e, em segundos, alheios ao movimento frenético da rua, estávamos gastando o verbo sobre carros e motos célebres. Todos em linha de produção no artesanato do homem simpático.

Aproveitei para recomendar a ele uma visita à exposição montada no Conjunto Nacional, onde uns quase 30 carros estavam parados no tempo emoldurando um Jaguar E-Type e um Shelby Cobra de desregular qualquer coração.

Ao fim da conversa, acrescentei à minha frota um fusca azul e prata, modelo 1954 segundo seu construtor. “Veja, o vidro traseiro é bipartido!” – e me deu desconto porque o tanque estava vazio. Saí pela avenida em busca de casa, feliz da vida como um menino que viajou para a infância feliz.

Já na minha poltrona predileta, admirei meu carrinho e senti saudades daqueles bólidos da infância. Sem emplacamento. Sem carteira de motorista. Sem combustível. Sem seguro. Sem acidentes. Sem engarrafamentos. Sem poluição. E nem precisava ter aquele luxo de carroceria de alumínio reluzente. Eram carros perfeitos, como o meu fusca 54 novinho em folha!

22/06/2016

Meu Avô e os Ciganos




Ciganos chegando (Look and Learn)
Antonio Rocha       

A língua dos ciganos é o romani (ou romanês, romaneske, romanê), que possui inúmeros pontos de correlação com o sânscrito e é somente oral, já que os ciganos não escrevem em romani com vistas à publicação. Na Europa, por causa das inúmeras organizações representativas do povo cigano, existem algumas publicações que divulgam a língua por meio de cartilhas de alfabetização, gramáticas, além de diversas revistas e jornais dessas organizações que, mesmo escritos na língua local (espanhol, francês, italiano, inglês, russo etc),  apresentam vocábulos ciganos.

Por meio de formas dialetais (manuche, calão), ciganos das mais diversas partes do mundo podem, contudo, se entender razoavelmente, considerando-se que tem como base lingüística o romani.

A língua romani possui um sistema de declinações que não difere muito do latim ou do grego clássico, e menos ainda do sânscrito, com que, como já vimos, ela é aparentada.

Quando o romá saiu da Índia, havia no romani três gêneros, como em alemão, mas o neutro desapareceu durante a Idade Média, provavelmente por influência do persa.

Os parágrafos acima encontram-se nas páginas 48 a 52, do livro Os Ciganos Ainda Estão na Estrada, lançado pela editora Rocco, de Cristina da Costa Pereira, graduada em Letras pela UFRJ.

Cristina afirma, logo no início que, embora não tenham Pátria, nem pertençam a uma nação, os ciganos constituem uma etnia através da União Romani Internacional, reconhecida pela ONU, em 28 de fevereiro de 1979.

A origem dos ciganos encontra-se no noroeste da antiga Índia, onde hoje é o Paquistão. Eles não aceitavam o sistema de castas e então, em 1500 antes de Cristo começaram a deixar o solo indiano.

Especialistas em Ciganologia afirmam que a Bíblia faz referência a este povo nômade.

São 176 páginas bem escritas e bem pesquisadas por esta contista e poetisa que já representou o Brasil no Congresso Internacional de Ciganos, em 2006, na Itália.

E agora eu lembro do meu avô, Manoel Pereira Rocha, não o conheci, ele faleceu quando meu pai tinha 14 anos, lá na cidade de Bezerros, PE, idos de 1938...

Vez por outra aparecia na região uma caravana de ciganos, geralmente um ou dois caminhões e mais um ou dois carros antigos, armavam as barracas e as mulheres com suas saias maravilhosas, começavam a ler as mãos, fazerem profecias e afins...

Meu avô paterno ficava animadíssimo, saía de casa, largava o trabalho no roçado, tinham um pequeno sítio e ficava com os amigos ciganos. Ele também, por afinidade era cigano, ou então vidas anteriores/renascimento/reencarnação podem explicar.

Na ocasião o meu pai era o mais velho de cinco irmãos, e vinha uma caçula, ainda no ventre de minha avó. Ela ficava braba e ia atrás do marido, buscá-lo para as tarefas da lavoura.

Numa dessas, uma cigana disse para minha avó: “Eu já li a mão dele, não brigue tanto com ele, logo ele vai embora”.

Minha avó pensou que meu avô iria se separar, largar a família e seguir com a caravana de ciganos andarilhos. Nada disso. Uma semana depois ele teve um ataque fulminante do coração e morreu em questão de segundos.

Se o meu avô descende ou não de ciganos não sei. Só sei que simpatizo muito com este povo. Vai ver ... está no DNA ...

21/06/2016

O Zé Mania

Mais uma do Chico e seu táxi:

Francisco Bendl


                         Nós, taxistas do ponto do Menino Deus, gostamos de fazer corridas para o aeroporto porque seu valor é significativo, apesar de maioria das vezes não apanharmos passageiros na volta, porém, duas ou três idas ao Salgado Filho rendem uma boa féria somada a diferentes percursos que se faz no dia.

Como eu alterava o trabalho em dois carros, o 3212 e o 2040, o primeiro no bairro e o segundo no Ponto do Hotel Albert, seguidamente eu transportava piloto de avião, comissários de bordo, tripulação de aeronaves, enfim.
Logicamente que outros colegas os conduziam também.

Nosso amigo, o motorista Zé Mania (assim apelidado por sempre apresentar uma paixão repentina, seja na moda, no andar, no falar...), inescrupulosamente se aproveitava de situações novas ou diferentes para vivenciá-las.
O “obrigaduuuuu”, do cantor Fábio Jr., nos tirava a paciência, a ponto de respondermos com  um palavrão cuja rima é impublicável, a quantidade de vezes que o Zé repetia este bordão; o uso de bandana por causa do Romário o tornava ridículo, ainda mais quando ele usava uma delas com o desenho do Piu Piu; ao surgir a moda dos óculos com armações coloridas e lentes espelhadas, o Zé achou por bem que a roupa também deveria ser multicolorida, passando a se vestir como aquele cantor cearense, alto e magro, muito divertido, o Falcão.

Mais tarde o Ponto iria se arrepender amargamente por ter comparado o Zé com o folclórico artista nordestino, pois ele o incorporou de vez, cantando somente as músicas estilo “brega” do cara. Ninguém agüentava mais ouvir toda hora que “menino é menino e boiola é boiola”, um refrão maluco.

Foi assim com a mais nova mania do Zé, que seu táxi era um avião!
Ar condicionado ligado era “o carro estar com a cabine pressurizada”; o vento nas esquinas da Otávio Rocha com a Senhor dos Passos era chamado por ele de “tesouras de vento”, que tinham força suficiente para alterar o curso do táxi; descer a Senhor dos Passos em direção a Voluntários da Pátria lhe obrigava a “usar os freios aerodinâmicos”; vir pela Cristóvão, Alberto Bins e Otávio Rocha “somente com os flaps acionados”; subir a Dr. Valle era “decolar à base de instrumentos”, tais como, altímetro, radar, bússola...; a temperatura dos “reatores” era o Zé verificar a pressão do gás veicular nos cilindros (dois) que o táxi tem no porta-malas ao abastecer; descer a longa Tarso Dutra que segue Salvador França em direção à zona sul era necessário cálculos vetoriais, ângulos de descidas, a quantos nós estavam as rajadas de vento e condição das nuvens; quando o fluxo do trânsito exigia que andássemos em baixa velocidade em razão de engarrafamento, o Zé comentava do “perigo” de o seu táxi “estolar” (!?); o Ponto era denominado “Terminal”.

O Zé enchia o saco de tanto falar no jargão aeronáutico e expressões espaciais e siderais.
Chegou ao cúmulo de comprar calça azul marinho, camisa branca e gravata preta para se parecer usando uniforme de piloto. Cravou no bolso esquerdo da camisa duas tampinhas de Pepsi e duas de Fanta que ele mandara soldar, dizendo que aquilo era o seu “brevê”; no bolso direito, o Zé mandou bordar “ZÉ ÉR’ (imagino que ele queria escrever Zé Air, mas a pronúncia deve tê-lo traído).
E ele andava para cima e para baixo ostentando a sua condição de piloto de jato.

Um belo dia o Zé bateu o carro. Na verdade encostou a roda no cordão da calçada com relativa força, rasgando o pneu, danificando o rodado e possivelmente alterando a geometria, nada grave. Porém, o Alberto, dono do carro, muito zeloso que era, aguardava pelo Zé Mania no Ponto para ouvir as devidas explicações sobre o ocorrido.
Ao chegar, o “piloto” encontrou a platéia que queria, pois todos nós queríamos escutar a sua versão sobre o acidente:

- Olha, eu vinha pela Ramiro em direção a Farrapos, começou o Zé a falar. Ao iniciar o meu procedimento de descida acionei os freios aerodinâmicos, baixei os flaps e trem de pouso e controlava a velocidade através dos manches, de modo a não ultrapassar o ponto crucial da pista para não ter de arremeter, sabem como é, o jato é “liso”, qualquer impulso a mais é varar a cabeceira...

Impaciente e nervoso pela justificativa que o Zé apresentava cada vez mais absurda, o Alberto interrompe:
- Mas bateu a roda por quê?
- Comandante, responde o Zé, o meu táxi “aéreo” estolou, dando uma guinada forte à esquerda.
Furioso, o Alberto indaga:
- Que história besta é esta de estolou?
Sem saída e na maior cara de pau, o Zé conclui:
- Ora, chefe, foi o pneu que estolou e eu bati no cordão, pô.

A gargalhada foi geral e uníssona. Não bastasse isso, o Zé ainda queria a compreensão do Alberto:
- Esperem, vou provar para vocês o que digo.
Dirigiu-se ao carro, abriu o porta-malas e retirou uma caixa de sapatos preta. Na frente do incrédulo Alberto e para nosso espanto, o Zé cheio de razão exclama:

- Vou abrir a caixa preta do meu avião para lhe entregar, comandante, os dados registrados nos gravadores da aeronave sobre o acontecido.
Ao alcançar para o Alberto um papel com riscos que ele fizera alegando que se tratavam dos gráficos sobre o acidente – eu não parava de tanto rir -, o Alberto, roxo de raiva e cuspindo-se todo, corria atrás do Zé berrando a plenos pulmões:
- Esse relatório está incompleto, miserável, aqui não diz que o piloto morreu, desgraçado, o piloto morreu, infeliz!
O episódio foi lembrado por nós durante meses a fio e sem que perdesse a graça,  o fim trágico do Zé Mania como “piloto de avião”.