Francisco Bendl
Hoje trazemos mais uma reflexão do Chico:
Os taxistas que trabalham em Pontos fixos têm vantagens sobre os colegas que operam livremente, é o que eu penso.
Há uma clientela conhecida, formada. Sabemos quem são os mais amáveis, os ranzinzas, os que dão gorjeta, os que esperam o troco até em moedas (de pleno direito, diga-se de passagem), os que nos confiam a lista do supermercado para que façamos as compras no seu lugar, enfim, existe uma rotina já sabida por todos.
Em razão de andarmos muito pelo bairro, descobrimos particularidades de certas ruas, seus movimentos, a forma como seus moradores estacionam os carros, se as crianças cuidam ao atravessar as ruas, se há espaço suficiente para que possamos apanhar os passageiros sem ser em fila dupla, detalhes que somente o ir e vir ensinam.
Numa dessas esquinas do bairro Menino Deus, “morava” um grupo de gente jovem.
Eles usavam a calçada como casa e, encostados no muro de uma residência, os colchões onde dormiam.
Não tinham absolutamente nada. Viviam de doações e os trocados que os proprietários de veículos lhes davam para que cuidassem dos carros quando estacionassem nos arredores.
Eram cinco pessoas, três rapazes e duas moças. Eu os via várias vezes durante o dia naquela vida de extrema penúria, sem futuro, nem eira nem beira como se dizia antigamente, e me dava pena vê-los naquela miséria, abandonados à própria sorte.
Confesso que cheguei a ter raiva dos pais daquela gente que os colocaram no mundo sem qualquer condição para isso, a não ser para que sofressem ou pagassem pelo desatino de seus genitores.
Ao mesmo tempo que eu recriminava pai e mãe daqueles jovens, eu me lembrava que não deveria julgá-los, pois não me dizia respeito o que tinham feito.
Mas eu me preocupava – se é que posso dizer assim – com a possibilidade de, à noite, o vento frio, a temperatura baixa, os corpos que precisavam se aquecer, a aproximação natural entre as moças e rapazes, que surgisse uma situação inesperada, alguma consequência séria acontecesse.
Não deu outra: Em seguida uma das meninas engravida, ostentando a barriga como um troféu conquistado e imune às responsabilidades que aquela “vitória” lhe ocasionaria.
Eu que criticara seus pais estava diante da mesma imprevidência, porém, agora, cometida pela filha!
Que mundo mais sem sentido. Será que não pensam essas pessoas nos atos que cometem?
Será que a vida não tem valor a ponto de se vivê-la tão solta, sem maiores propósitos, objetivos, na base do “vai ou racha”?
Cada vez que eu cruzava por aquela esquina e os observava, lá estavam eles alegres, bem dispostos, felizes da vida!
O que faz a juventude e seus poderes para facilitar a existência ou proteger o jovem da cruel realidade. Que momento da vida interessante essa idade que vai da brincadeira à paternidade; que vai da ingenuidade à descoberta que é um homem; que faz da menina, mulher; que faz da criança, mãe!
Esses moradores de rua pensam da vida o quê?
Não sei. Mas muitas vezes me pareciam mais à vontade com suas dificuldades do que alguns opulentos que conheço e não sabem viver. Enfim, que Deus os protegesse e não deixassem de dar importância ao filho que estavam colocando no mundo, que soubessem cuidar da criança e tomassem juízo.
Houve um tempo que dois deles se ausentaram. A menina estava para ter o nenê e tinha ido para o interior do Estado na casa de uma tia (com o passar dos meses eu andando pelo bairro inúmeras vezes era óbvio que eu me tornara conhecido e ganhara até um apelido: chamavam-me de “motorão”).
Um belo dia em uma das minhas andanças pelas ruas do bairro, eis que retorna a nova mãe. O casal estava em festa e fizera questão que eu descesse do carro para ver o bebê, um menino.
Mil coisas me passaram pela cabeça ao ver aquele inocente enrolado em trapos e segurado sem jeito pela mãe. Naturalmente que a pergunta que sintetizava todas era: Como vão criá-lo?
Embarquei no carro, entrei no primeiro mercado que achei, comprei um pacote de fraldas e fui levar a minha “lembrancinha” para os mais novos pais.
Saí em seguida, observando aquele grupo que não se importava com o amanhã;
que não respeitava as leis da sobrevivência;
que não respeitava o tempo;
que não dava bola às dificuldades;
que se lixavam pelo bem material.
Um novo conceito de vida?
Uma nova maneira de transformar a existência de acordo com o pouco ou quase nada que se tem?
Seria esta a verdadeira liberdade, sem vínculo nenhum com o dia a dia?
Sem preocupação com o que haveriam de comer, vestir, beber?
Talvez, pensei. Mas haja coragem!
Tentando eu traçar um paralelo com os irmãos nordestinos e suas mazelas climáticas, suas terras arenosas que a seca dos sertões determina a permanente falta de água, aquelas casinhas feitas de barro e nada dentro (jamais vou esquecer aquele repórter da Globo, que chorou copiosamente ao brincar com uma das crianças que fazia de brinquedo os ossos de um animal morto pela fome e sede), foi como se eu tivesse sofrido um soco na boca do estômago ao me lembrar do notável pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta modernista, quando inspirado escreveu Morte e Vida Severina:
(...)
“E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
E vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.”
Que a cada nascimento nossas esperanças se fortaleçam e que esteja nessa criança que ora nos dá o prazer e honra de sua presença, a mensagem celestial que ela traz consigo de amor, paz, carinho e afeto.
Que esta nova vida distribua aos mais velhos, a nós, que somos todos responsáveis por aqueles que trazemos a este mundo e que é nossa obrigação principal a construção de um mundo cada vez melhor para recebê-las, a magia de nos fazer entender que o ser humano é um só, que todos dependemos de todos e somente seremos felizes quando efetivamente nos preocuparmos com o próximo até chegar o momento nesta roda viva da existência que somos os próximos a receber o amor de todos.
Este grupo me mostrou que carrega alguns pressupostos à felicidade, tais como, alegria, amizade, companheirismo, e mesmo inexistindo por absoluto o suporte econômico (casa e trabalho), não os impedia de encarar a vida com otimismo e despreocupadamente, e viver cada dia como se fosse o único que eles tinham.
O grande educador e pedagogo Paulo R. Neves Freire (1921-1997), pernambucano, definia de forma primorosa uma grande parcela da realidade social brasileira, ao dizer:
“Aos esfarrapados do mundo
E aos que neles se descobrem e,
Assim descobrindo-se, com eles
Sofrem, mas, sobretudo,
Com eles lutam”.
Que nos lembremos estar na dignidade do ser humano a sua maior fortuna, porque nos iguala, e porque não vista, pensamos que não existe.
Mas, quem a tem, se vê e, quem não a tem, não vê no semelhante a si mesmo!