Zahara de La Sierra - um dos Pueblos Blancos - fotografia Moacir Pimentel |
Eu gosto de dirigir pelo vasto mundo, desde que as estradas sejam boas. E no extremo sul da Espanha, na ensolarada região da Andaluzia, elas são. Sempre tive um fascínio por viagens longas, em trens então, maravilha! Tem a ver com apreciar o mundo, passando lá fora a 80 km / h, de ambos os lados...
Seja o que for essa mania, eu acho que começou na Índia, quando eu viajei de trem 48 horas de Bangalore a Jaipur. Não havia muitas regras de segurança na 2ª classe daquele trem indiano, e o condutor não viu nenhum problema quando me sentei na porta aberta, com as pernas balançando do lado de fora do vagão, acenando de volta para as pessoas que sorriam para mim das estações, cheirando, ouvindo, vendo, experimentando a Índia que desfilava diante dos meus olhos.
Eu passei inúmeras horas ali, bebendo um chai de vez em quando, conversando com as pessoas. É uma das minhas memórias mais preciosas do meu tempo na Índia.
Num carro por uma autoestrada a visão é mais larga e o mundo passa voando, à esquerda e à direita, ainda que o condutor só possa olhar para frente, obedecendo à Lei das Direções. Não importa. Seja em um trem, em um ônibus, ou em um carro em movimento por um país desconhecido, se abstraímos a noção de que não saber é o que impulsiona o mundo, a gente percebe que uma viagem, como qualquer outro ato de criar, vai nos construindo.
Portanto seja lá por onde for, viajar é transcender um limiar. O desconhecido é o que deve ser encontrado. É da natureza dos viajantes abrir portas e convidar o novo para se chegar. Eles moram no exílio, na fronteira do abismo, bem ali à beira do mistério, “pescando luz caída no poço escuro com paciência”, transformando o desconhecido em conhecido.
Então num carro alugado nas estupendas autoestradas espanholas ou num velho trem nas planícies indianas a sensação que tenho é a mesma: ali na terra incógnita, mora uma vida a ser descoberta, muitos momentos de chegada, momentos de realização, momentos de descoberta a serem vividos.
Se alguém me perguntar por que resolvi visitar os povoados brancos do sul da península Ibérica, eu diria que foi porque li o Hemingway dizendo que, se fugisse algum dia com a mulher da sua vida, a levaria para lá.
E por que as pequenas cidades ali são chamadas de Pueblos Blancos de la Frontera? Que fronteira é essa que, para todos eles, serve de sobrenome? Bem ali, no sul da Espanha, havia um cinturão defensivo no limite entre dois mundos: o cristão e o muçulmano. A fronteira era o mar. Ele era o muro entre os Povos do Livro.
Os tais pueblos têm uma característica em comum: O BRANCO TOTAL. Por lá o sol é tão inclemente, que os nativos tem a centenária tradição de caiar suas paredes para minimizar o calor. O resultado é uma paisagem deslumbrante. Fala-se da "rota dos povoados brancos" mas, na verdade, não há um caminho definido. Os vilarejos estão por todos os lados, no meio da serra, com um idêntico desenho medieval, onde podemos ver claramente, traços sefarditas, árabes, românicos, góticos e renascentistas. A sensação é a de um passado glorioso.
Nessa jornada, pelas cidadezinhas da serra e do mar do sul da Espanha, a gente tem que ter calma. Fizemos morada no povoado de Verjer, que é lindíssimo e onde o tempo parece não ter passado. De perto, a gente observa que o branco não é a única cor da paisagem : existem as onipresentes laranjeiras sempre carregadas de frutos e tantas flores - geralmente vermelhas ou em tons de rosa - além de gradis e de portas e janelas coloridas.
A história local do povoado tem um lado bem macabro - temperado por loucura, incestos, casamentos consanguíneos, e poções mágicas. No entanto, além de La Cobijada - a estátua da mulher coberta de negro da cabeça aos pés com o traje típico do povoado - não vimos bruxas ou evidência dessa narrativa assustadora, enquanto bebericávamos entre alegres espanhóis e maravilhados turistas pelos cafés e bares de rua, com direito a serenata ainda por cima.
Nos hospedamos numa bela e arejada pousada, muito bem localizada, no topo da colina fortificada com vistas estupendas para o rio Barbate, que pertencia a um casal de "expatriados" irlandeses. Vivendo há mais de 30 anos na região, eles sabiam de tudo e eram generosos com suas dicas. A casa tinha um terraço, onde nós saboreávamos o café da manhã, distraidamente, olhando para o topo das montanhas de pedra calcária e os vales. Tinha sempre um abutre flutuando sobre um cume, as asas largas esculpidas contra o céu profundo.
Nós começávamos a passear no início da manhã, logo depois do café, para ter o dia inteiro pela frente e ainda poder curtir o sol quando chegássemos ao último destino branco. Apesar do calor que nem parecia de final de verão, sempre havia um pouco de névoa nas estradas. Ela era mais densa em alguns lugares e mais leve em outros.
Por isso, às vezes, as longas vistas dos vilarejos de casas de estuque alvo, fundados pelos romanos, ampliados pelos mouros e, mais tarde, conquistados pelos cristãos,tão dramaticamente posicionados em colinas verdejantes ou muralhas graníticas, rodeados por campos de trigo e girassol, vinhas e pomares de frutas, olivais e jardins de flores de laranjeira e bouganvilles... de repente... surgiam da neblina bem à minha frente perfeitas, para em seguida, com a mesma rapidez, desaparecer, como se tudo tivesse sido só na minha imaginação. Dava a sensação de que os povoados, no alto das rochas ou no meio dos campos, de alguma forma, tinham estado flutuando em uma nuvem branca à beira da minha imaginação. Para, num piscar de olhos, reaparecerem nítidos em meio à luz do sol... Realmente estranho!
Quando perambulamos de carro, podemos parar onde nos dá na telha, onde a fome bate e o vinho manda. Aqueles campos férteis eram convidativos, bordados aqui e ali por fazendas e haciendas. Cada centímetro de terra estava cultivado e a paisagem mudava de forma e de cor a cada plantação. Na estrada, a gente prendia a respiração toda vez que um lindo povoado surgia numa curva, e tinha que resistir para não virar ali e aqui e mais adiante, a cada sinal convidando-nos para ir nesta ou naquela direção para conhecer esta vila, e mais aquela outra, sempre nos prometendo o melhor da Andaluzia, algo que precisava ser visto para justificar as nossas férias.
Não dá para pegar todas :) Foi preciso escolher bem algumas paradas, geograficamente lógicas e visualmente mais impactantes. Eram muitos os mirantes oferecendo vistas longas, para se tomar um café numa esplanada, se tirar água do joelho numa estação de serviços, fazer fotos panorâmicas, almoçar, abastecer. Em seguida, tudo em cima, voltávamos à estrada que seguia abraçando as montanhas.
O grande barato por aquelas paragens não é visitar, mas se deixar levar e - quem sabe? - encontrar significado no que é geralmente ignorado. Naquelas plagas é preciso ESTAR, viver, namorar, em vez de visitar pontos turísticos e neles posar para fotos. Tudo bem que fotografar é uma delícia. Mas os safaris fotográficos devem ser feitos, enquanto se come tapas, se vai às fabulosas praias de areias cor de rosa e de águas cristalinas, se prova flamenco e xerez, se descobre os sinais das arquiteturas românica, medieval, islâmica, mudejar, gótica, renascentista e barroca, se respira o ar da montanha e se chupa laranjas. As aldeias brancas de casas mouras, assim como os toureiros de calças extraordinariamente apertadas - que carajo! - e os burros com sombreros coloridos são apenas imagens icônicas. Tão bonitas que poucos podem resistir à tentação de agarrar a câmera e sair clicando tudo.
Pode- se perguntar se a paisagem não é repetitiva e cansativa, se todos os povoados não se repetem, pintados de cal. Pode até ser, nos cartões postais, e já que em todos eles a vida local gira em torno de uma pequena praça, com a igreja, as fontes mouras, um mercado e alguns bares de tapas.
Mas, se deixarmos para trás este traçado turístico, e subirmos e descermos as ruelas estreitas de casas cujas fachadas têm sotaques diversos, com portas e janelas de formas inesperadas, com pátios escondidos atrás de muros, encontramos maravilhas, tesouros sob a forma de coisas pequenas: uma esquina, uma escada, uma calçada romana, uma parede construída com tijolos entre colunas de pedra medieval, um fontanário, um canteiro, um casal de velhos sentado num banco de azulejos debaixo de um pé de jasmim, um arco, um portão, um passadiço, uma inscrição sefardita, uma chaminé árabe.
Cada povoado adquire então personalidade, nuances próprias e significado.
E haja pernas. Sem sapatos confortáveis a Rota dos Pueblos Blancos é impossível de ser apreciada. As pequenas aldeias TEM que ser feitas a pé já que apenas os moradores tem permissão para conduzir seus carros nas ruelas estreitas dos seus centros históricos. Às vezes, confesso, foi difícil ver da mesa de um bar aconchegante e arejado os nativos subindo as colinas em superesportivos, sabendo que, apenas terminado o meu café, eu teria que subir aquela montanha vertical até o mais remoto cume, driblando os caras vendendo doces e leques e xales e outras mercadorias na parte de trás de suas vans, só para fingir que gostara de uma "instalação" indecifrável de um artista alternativo que minha mulher lera ser "tudo de bom" e cujo trabalho artístico - por sinal louco de hospício - eu simplesmente não poderia desconhecer. Fazer o quê?
O que me encantou por aquelas paragens é que lá ainda existem lugares onde você pode ouvir espanhol da gema e os cardápios ainda são monolingues. O que se quer é experimentar a maravilhosa sensação de estar em uma vila espanhola, autêntica e encantadora, onde a vida tem ritmo lento, tudo fecha na parte da tarde e você pode comer nas tascas e bodegas pela metade do preço que pagaria nos restaurantes para inglês ver.
Porém, do mesmo jeito que não é difícil encontrar aldeias brancas onde se resgata todo o charme e simplicidade da vida tradicional espanhola, ainda assim, pode -se estar saindo de qualquer lugar - em 30 minutos e por estradas fantásticas! - numa praia com aquelas bananas infláveis! - se deliciando com umas sardinhas assadas num chiringuito da vida. Na Andaluzia só não vai atrás de um chiringuito quem já morreu. Eles são botes, barquinhos velhos com as cores desbotadas pela maresia, cheios até as bordas de areia, onde se faz fogo para assar, nas brasas, calamares e camarões e peixinhos e os mais variados frutos do mar. Huuuuuum!
Quando o calor do interior seco fica muito intenso ou quando o vento nas serras enverga as já deformadas árvores, a gente só quer mesmo mergulhar de cabeça na água fria e sentir na cara uma brisa suave com cheiro de maresia! O mar está sempre ali. Bem perto.
Os sons de sinos de igreja e as vozes de crianças nos pátios das escolas reverberam pelos vales cheios de laranjeiras, cujos frutos são oferecidos pelos locais aos turistas nas calçadas de suas casinhas. Se compramos as laranjas somos brindados com um gole d'água e um dedo de prosa serrana. Momentos como estes, fizeram os nossos dias. Tivemos oportunidade de assistir - na estrada! - uma apresentação de flamenco dançado por bailarinas, de meia idade mas simpaticíssimas, uma bandinha e uma procissão. Tudo bem que não chegou nem perto da guitarra do Paco de Lucía, mas aquela gente soava e bailava como o coração da Espanha e suas tradições. Para mim, a Andaluzia, é a alma do país e o flamenco é a sua trilha sonora.
Minha mulher se maravilhava com a arquitetura. Mas a arquitetura, embora seja uma grande tapeçaria em pedra do passado romano, islâmico, judaico e cristão de los hermanos, diz apenas metade da história deste lugar de tantas paixões peculiares. As touradas e as danças, a gastronomia, e as festas são expressões mais vivas.
Como explicar como me sinto em locais carregados de história como esse, onde tanto sangue correu em tantas guerras sangrentas ? Ali entre Vejer, Arcos, Ronda, Setenil, Ubrique, Zahara, Grazalema, Mijas - tão pequenas!! - a coisa mais barulhenta era a brisa vergando as árvores, assobiando nos telhados de barro, nas portas de madeira antigas e nas estreitas vielas.
O vento de séculos. Era um som tranquilizador. Como o vento, como milhões de homens antes de mim, eu PASSO por essas paragens. Outros virão depois de mim. E então eu escutava a voz de Cecília Meireles do sétimo dos seus epigramas...
A tua raça de aventura
quis ter a terra, o céu, o mar.
Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar...
A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.
A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.
E pensando assim, a minha mente se tranquilizava, ficava deliciosamente em branco. Como os pueblos. Há mais de uma maneira de ser inativo.
Meus aplausos ao texto belíssimo de Pimentel, rico em detalhes, que me fizeram viajar ao seu lado.
ResponderExcluirNão conheço a Espanha, mas tenho paixões por trens! Não fui à Índia, mas eu gostaria muito de conhecer aquele país.
Assim, parabenizo Pimentel, que enriqueceu a sua vida com estas viagens extraordinárias, e que me deixam entusiasmado sempre que leio os relatos concernentes às experiências obtidas fora do Brasil, pois possibilita que melhor analisemos a nossa terra e povo não pela comparação entre seres humanos, mas em se tratando de tradições, cultura e folclore, afora as belezas de cada lugar visitado.
A Espanha me encanta porque colecionador de PPS sobre castelos e palácios, igrejas, capelas, catedrais, abadias, conventos, monastérios, templos e sinagogas, este país é inigualável quanto às majestades dessas construções, a solidez, a beleza, e a história de cada construção!
Obrigado, Pimentel, pela crônica maravilhosa, e saber que sou amigo de um globetrotter, que soube aproveitar como poucos essas viagens sensacionais, inesquecíveis, que admiro e reverencio tais aprendizados, concretizados pelo relato refinado e palavras muito bem colocadas nos textos de tua autoria, demonstrando uma cultura e conhecimentos sobre a última Flor do Lácio que me encanta e me deixa embevecido.
Um forte abraço, meu caro.
Saúde e Paz!
Lendo agora a bela crônica do Pimentel, lembrei de música que eu cantarolava na infância. Como não sabia direito, eu improvisava para rimar: "Madrid, Madrid, Madrid/Pedaços da Espanha onde nasci/Madrid, Madrid, Madrid/ Em México se pensa muito e ti". Naquele tempo, jamais poderia imaginar que em 2015, minha neta nasceria na capital espanhola...
ResponderExcluirTexto impecavel.Merecia mais fotos.
ResponderExcluirMoacir, viajar nos seus textos é aprender a valorizar a vida! Continue nos presenteando nesta estrada.
ResponderExcluirBendl, meu caro, fico muito feliz por você ter apreciado o meu arrazoado sobre a bela Espanha. Na verdade ,é bem capaz que a Mãe Rússia seja um futuro tema , em sua homenagem! Enquanto não chegamos lá , acho que você e o Antônio - o grande responsável por essas minhas atuais viagens nas teclas que começaram no Peres - se cansarão de ouvir falar de Varanasi que , à beira do Rio Gânges, é a cidade mais sagrada da Índia.
ResponderExcluirAos leitores Mônica e Paulo agradeço pelas palavras de incentivo e ao Wilson pelo espaço na mesa do seu bar virtual.
Abraços
Caríssimo: já que não estive lá, estive lá por suas letras que me fizeram ouvir os rumores do vento, provar o sabor das laranjas, ouvir os sinos dobrando pelo tempo e merecer a acolhida daqueles povos.
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