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19/06/2016

O Sabor do Tempo

Heraldo Palmeira



(Rembrandt Van Rijn)
 

Fazia um calor infernal naquela tarde já avançada. O ar-condicionado do restaurante aliviou um pouco o mal-estar alastrado por todos os cantos da cidade. Finalmente meus horários incertos – ainda mais num sábado – entraram em sintonia com o horário da famosa feijoada semanal servida ali.

         Bastou eu entrar no salão para que o velho garçom abrisse aquele tradicional sorriso de acolhimento e viesse ao meu encontro de braços abertos. Ainda caminhando para me acomodar, ele já perguntou se eu queria minha caipirosca de lichia, com Absolut e adoçante. Profissional!

         O costume de comer sempre mais tarde termina garantindo acesso às mesas que mais me atraem nos restaurantes – naquele, uma que guarda distância apropriada do palco onde bons músicos vão se revezando pelo repertório refinado.
         Depois do pão italiano inevitável, com azeite, fui me enfronhando na feijoada espetacular e seus complementos, até chegar ao arroz doce de arremate, na soleira do cafezinho final.

         Numa das pilastras, um espelho revelador me trouxe a imagem do homem velho, sozinho diante da sua cerveja pós-almoço, alheio à música e ao ambiente ao redor. Rosto enrugado, olhar entrado num mundo inacessível para o resto do mundo. Entregue a falas e gestos por certo destinados a memórias e figuras invisíveis que passaram a povoar seu cérebro. Provável consequência do tempo e dos catabis particulares que sacolejaram sua jornada, desenhada naquele semblante de solidão.

         Eu nunca vira aquele homem. Era familiar ao restaurante e o restaurante parecia ter se transformado no que lhe sobrou de alento. Mas ele ultrapassou aquela linha tênue da saudade prévia que a gente sente de vez em quando, do afeto comovido, da dúvida do amanhã.

         Fui embora e ele ficou. Saí me perguntando se haverá tempo no meu tempo e no tempo dele para vê-lo novamente em uma daquelas mesas. Mesmo que eu entre e saia sem lhe dirigir sequer um aceno, que ele continue um estranho sem nome, eu vou ficar feliz ao vê-lo ali outras vezes.

2 comentários:

  1. Marcus Guedes20/06/2016, 10:32

    Nota 10.
    Como sempre, Heraldo Palmeira pinta quadros utilizando as cores que só as palavras expressam.

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  2. Moacir Pimentel20/06/2016, 10:55

    Sabe , Mestre ? O velho Camões , faz tempo , já se perguntava onde podia acolher-se um fraco humano,"um bicho da terra tão pequeno",tão solitário, defronte da sua cerveja quente.Não sei. Mas sei que sempre haverá tempo,no nosso tempo, para ler e nos alegrarmos com textos como este, para cuja criação , espero ,nunca lhe falte tempo.
    É fato que o bicho homem cada vez mais se recusa a olhar atentamente para o sofrimento emocional ao seu redor.Porém são as "estórias" , entrecortadas, da nossa história sempre retomada ,aquilo que nos alimenta, que nos motiva a fazer contatos , a luz que nos faz compreender que sempre restará alguma coisa a mais ,algo ainda silencioso, dentro da gente, que merece ser contado.É esta a minha fé inabalável.
    Abraço

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