Heraldo Palmeira
(Rembrandt Van Rijn) |
Fazia um
calor infernal naquela tarde já avançada. O ar-condicionado do restaurante
aliviou um pouco o mal-estar alastrado por todos os cantos da cidade.
Finalmente meus horários incertos – ainda mais num sábado – entraram em
sintonia com o horário da famosa feijoada semanal servida ali.
Bastou eu entrar no salão para que o
velho garçom abrisse aquele tradicional sorriso de acolhimento e viesse ao meu
encontro de braços abertos. Ainda caminhando para me acomodar, ele já perguntou
se eu queria minha caipirosca de lichia, com Absolut e adoçante. Profissional!
O costume de comer sempre mais tarde
termina garantindo acesso às mesas que mais me atraem nos restaurantes – naquele,
uma que guarda distância apropriada do palco onde bons músicos vão se revezando
pelo repertório refinado.
Depois do pão italiano inevitável, com
azeite, fui me enfronhando na feijoada espetacular e seus complementos, até
chegar ao arroz doce de arremate, na soleira do cafezinho final.
Numa das pilastras, um espelho
revelador me trouxe a imagem do homem velho, sozinho diante da sua cerveja
pós-almoço, alheio à música e ao ambiente ao redor. Rosto enrugado, olhar
entrado num mundo inacessível para o resto do mundo. Entregue a falas e gestos por
certo destinados a memórias e figuras invisíveis que passaram a povoar seu
cérebro. Provável consequência do tempo e dos catabis particulares que sacolejaram
sua jornada, desenhada naquele semblante de solidão.
Eu nunca vira aquele homem. Era
familiar ao restaurante e o restaurante parecia ter se transformado no que lhe sobrou
de alento. Mas ele ultrapassou aquela linha tênue da saudade prévia que a gente
sente de vez em quando, do afeto comovido, da dúvida do amanhã.
Fui embora e ele ficou. Saí me
perguntando se haverá tempo no meu tempo e no tempo dele para vê-lo novamente em
uma daquelas mesas. Mesmo que eu entre e saia sem lhe dirigir sequer um aceno,
que ele continue um estranho sem nome, eu vou ficar feliz ao vê-lo ali outras
vezes.
Nota 10.
ResponderExcluirComo sempre, Heraldo Palmeira pinta quadros utilizando as cores que só as palavras expressam.
Sabe , Mestre ? O velho Camões , faz tempo , já se perguntava onde podia acolher-se um fraco humano,"um bicho da terra tão pequeno",tão solitário, defronte da sua cerveja quente.Não sei. Mas sei que sempre haverá tempo,no nosso tempo, para ler e nos alegrarmos com textos como este, para cuja criação , espero ,nunca lhe falte tempo.
ResponderExcluirÉ fato que o bicho homem cada vez mais se recusa a olhar atentamente para o sofrimento emocional ao seu redor.Porém são as "estórias" , entrecortadas, da nossa história sempre retomada ,aquilo que nos alimenta, que nos motiva a fazer contatos , a luz que nos faz compreender que sempre restará alguma coisa a mais ,algo ainda silencioso, dentro da gente, que merece ser contado.É esta a minha fé inabalável.
Abraço