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17/06/2016

O Jogo


Hoje o Chico Bendl nos conta o que acontece quando taxistas se metem a jogar futebol:


                        Certamente algumas categorias profissionais são exemplos de sedentarismo. Pelo que me lembro, sem muito esforço, estão os caminhoneiros, motoristas de ônibus e nós, os taxistas.

Dirigir táxi é brutal, cansativo, estressante, tenso. Consome tanta energia física e mental de nós, motoristas, que no fim da jornada estamos extenuados, principalmente no verão.
Em casa é comer, tomar um bom banho e cama!

O exercício corporal inexiste; o preparo físico, em decorrência, é deprimente. Apesar dessas deficiências, em um belo dia se formou uma balbúrdia no Ponto. Estávamos sendo desafiados para jogar uma partida de futebol de CAMPO, contra taxistas da zona norte.
Fui radicalmente contra. Argumentei a possibilidade de haver mortos e feridos. Fui contestado de forma veemente. Alguns colegas ficaram muito brabos comigo, pois alegaram que éramos colegas de trabalho e não haveria briga nenhuma (na verdade não entenderam que eu me referia a infartos e lesões de toda a ordem).

O célebre embate foi marcado para o próximo sábado, tendo em vista que durante a jornada diurna este dia se mostra mais fraco que os demais.
A convocação da “seleção” do Ponto esbarrava de cara no número de atletas (!?) necessário. Somos apenas em oito, sendo duas mulheres, que até se prontificaram a jogar, mas sequer estabelecemos discussão a respeito. Precisávamos de mais cinco loucos, no mínimo.
Descobrimos dois craques da bola no posto onde lavamos os carros: o Macabro e Dedão. O primeiro tem este apelido não porque seja feio, não. Ele é simplesmente aterrador! Quando ele nasceu, o médico não deu as tradicionais palmadas nele para despertá-lo, deu na mãe dele pela afronta à natureza! Dizem que nunca ganhou um beijo, nem da própria mãe, que justifica, até hoje, o Macabro ter sido trocado no berçário.
Ela não poderia ter feito “aquilo”, diz, mesmo desconhecendo quem é o pai do horroroso.

O Dedão é assim chamado porque só usa chinelos de dedo. Desenvolveu, então, um dedo enorme no pé direito, um batatão, um apêndice ósseo que a medicina não encontra fundamentos na anatomia para explicá-lo, daí ele não poder calçar tênis ou sapatos. Sua convocação obviamente aconteceu na marra, pois imaginávamos um chute poderoso com aquele pé e dedão juntos. Entraria a bola, goleiro, tudo (somente no intervalo da fatídica pelada percebemos  que o Dedão era canhoto, A nossa arma secreta se revelava absolutamente inoperante, uma verdadeira decepção!).

O outro convocado foi o “Coisa”.
Profissão, idade, residência, filiação, desconhecidos. Faria número, pelo menos, apesar de o seu passe ter sido adquirido por dez pilas e somente para esta peleja.
Já somávamos nove gladiadores no time.
Completamos a esquadra obrigando o jornaleiro da RBS a nos acompanhar, sob pena de boicotarmos o Diário Gaúcho e tirá-lo da área, incluindo várias reclamações ao jornal, acusando-o de se negar a vender para taxistas. Usamos a mesma tática com o guri do Correio do Povo, porém, prometendo que compraríamos vinte exemplares naquele dia.
Tínhamos os onze guerreiros, finalmente.

Em campo, o estado físico que apresentamos era ideal para a partida! Eu peso 180 kg e há 34 anos que eu não chutava uma bola ou qualquer objeto semelhante; o Carlão tem uma pança cuja circunferência rivaliza com pneu de jamanta; o nosso jogador mais em forma, ou seja, peso quase correspondente ao esforço que o jogo exigiria, tem 64 anos e três pontes de safena; o Zé, nosso volante, não tem um pulmão; o Zóio fazia questão de jogar, mas só podia se usasse óculos ou não veria nada; a maioria não tinha calção; ninguém tinha chuteiras; de sandálias era proibido jogar; não havia camisetas para os times e vetada plenamente a idéia que um dos adversários jogasse sem camisa, afinal de contas somos homens decentes e de família. Ficou estipulada, então, a visualização, Ponto contra Ponto, o uniforme seria o de menos.

A primeira discussão quase acaba com a realização do aguardado desafio: o jogo iniciava com a bola ao centro do campo ou tiro de meta?
Houve quem afirmasse, convicto, que era através de arremesso lateral. De modo a acabar com opiniões divergentes, de comum acordo a modalidade escolhida foi o juiz dar um chutão para cima.

O jogo começa.

Os primeiros pontapés na bola – isso mesmo, pontapés e não chutes – demonstraram que teríamos sérios problemas. A bola era um ser independente, rebelde, desobediente. Negava-se a atender o que os pés lhe mandavam fazer. Os “motoras” acostumados aos comandos dos seus táxis – freio, acelerador, embreagem, direção – percebiam, perplexos, que a bola lhes fugia às ordens! Fantástico aquele personagem rápido que ia para trás quando se queria que fosse para frente, ia para direita, mas deveria ter ido à esquerda, pulava de um lado para outro menos para onde se desejasse. Incrível aquela esfera viva, debochada, teimosa, que só fazia o que ela queria!

Os pontapés se sucediam de forma a mais atabalhoada possível e imaginável.
O Souza ou o D’Alessandro deles, que se dizia com ótimo domínio de bola, visão de jogo, dono de um chute forte e certeiro, deu dois pontapés: um no próprio colega do time quando errou em bola e, o outro, nele mesmo. Saiu de campo lesionado, claro.
Como se tratava de um amistoso, evidente que se sugeriu que um jogador nosso fosse para o adversário para compensar a saída do atrapalhado (eles não poderiam escolher quem seria, a decisão era nossa). A idéia foi má, pois cinco dos nossos foram para eles. Quinze contra seis. Foi um verdadeiro massacre!

Nós, os seis que restaram, chegamos a estar vencendo de 14 a 9. Eles não se entendiam; confusos com tantos jogadores a favor pensavam que também éramos do time, era só empurrar a bola para dentro do gol.
O nosso Fernandão, um motorista alto, forte, cabeceava tudo que lhe vinha à frente: atingiu o olho do Clóvis; com violência, o braço do Olavo; acertou uma cabeçada no joelho (!) do Beto, deixando-o manco; bateu com sua testa no chão com tanta força que saiu sangue, ficando uma ferida feia; o tempo fechou quando de “peixinho” acertou o traseiro do Joaquim, um taxista evangélico que denominara o seu time de “As Trombetas de Gedeão”.

A bola sorria.
Dava a nítida impressão que se divertia conosco; não éramos nós que corríamos atrás dela, era ela que nos corria do campo, que nos driblava, aplicava vários tipos de finta, chapéu, balãozinho, tabelinha.

Os pontapés se sucediam.
A segunda discussão foi causada pelo árbitro, um motorista baixinho, xarope, do turno da noite, que apitara algo contra nós. Coremos ao seu encontro para questionar a razão desta falta inexistente. O árbitro respondeu do alto de sua autoridade:
- Foi FRIQUIQUI!
- O que é esta porcaria, gritou o Coisa?
Acusado de venal, parcial e vendido, expulsamos o juiz , não precisávamos dele.

Em lance isolado, o Escarravelho – um cabeça branca que só cuspia em campo -, que foi assim apelidado por ele mesmo que jurava ter assistido um filme com esse nome, o “Escarravelho Escarlate” (penso que queria dizer escaravelho, mas vai discordar do cara, vai), entrou na área e se chocou comigo, caindo duro para o lado.
Pênalti!
Em sinal de protesto porque o lance havia sido casual, sem intenção de atropelar o adversário e deixá-lo desacordado, saí do gol.
O batedor chutou por cima.
Mas eles conseguiram mesmo assim empatar conosco, tendo em vista que precisei abandonar a minha posição de goleiro em definitivo. Eu caíra no chão com o corpo doendo em todas as suas células e átomos existentes. O jogo fora interrompido. Era necessário reunir os jogadores de ambos os lados para me ajudarem a sair de campo. Meus 180 kg se faziam sentir como uma muralha intransponível; um colega que ainda raciocinava sugeriu que eu ficasse ali mesmo, enquanto um motorista iria buscar o meu carro, mas seria preciso invadir o gramado, o palco sagrado da disputa. Sem delongas foi permitida a entrada do veículo, pois concluíram sabiamente que era melhor ter buracos na grama que me levarem de maca e, o Darcy Pacheco, iria demorar com o seu guindaste para içar grandes pesos.

O jogo levou mais dois, três minutos para terminar. O cansaço tomava conta de todos, não havia mais resistência. Cinco ou seis taxistas estavam esticados no campo; quatro apresentavam crise aguda de asma; dois haviam perdido seus óculos; um perdeu os documentos do carro; três táxis tiveram as portas amassadas pelas boladas; vários precisavam de médico e tubos de oxigênio (um colega espirituoso sugeriu que aspirássemos os tubos de GNV instalados nos carros); quando a SAMU chegou, o enfermeiro que acompanhava a ambulância quis chamar a Brigada, pensando ter havido uma batalha campal diante do estado de prostração que nos encontrávamos e feridas apresentadas.

Mas o placar mostrava a raça dos times: empate em dezesseis gols, com sabor de vitória.
Ao abandonar o “estádio” quando eu me recuperei, encontrei a bola atirada no canto de uma das goleiras. Achei que ela  estava  me  sorrindo com certo sarcasmo. Safada, pensei, uma verdadeira terrorista, pois havia detonado a todos nós. Fui olhá-la mais de perto e com mais detalhes aquele ser pensante, inteligente, e foi com surpresa que descobri as razões pelas quais ela tinha sido tão tirânica e cruel contra os taxistas:
A bola era de vôlei, e não suportava ser tratada daquela maneira, a pontapés...

3 comentários:

  1. André dos Anjos20/06/2016, 09:07

    Que delícia! Me lembrei da pelada de final de ano do meu antigo time de futebol, em que vários tiveram que levar filhos, ou, no meu caso, o genro, para completar o quorum, e saímos de campo tão moídos quanto os taxistas, mas satisfeitíssimos com o empate em 9 gols e rindo de uma orelha à outra.

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  2. Obrigado, André, por leres a crônica, e me alegro que ela tenha sido do teu agrado.

    Certamente pelo registro feito ser verdadeiro, O Jogo relatado dá a impressão de ter sido mesmo divertido, enquanto que eu deveria ter escrito de forma dolorosa, pois fiquei sem poder dirigir por dois dias depois daquela aventura!
    Um forte abraço, André.
    Saúde e Paz!

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  3. Através da linhas do Chico Bendl viajamos no tempo, e lembro que eu era um perna de pau no futebol, mudei para o Gama, DF, pensei em formar um time,na pré-adolescência, o máximo que consegui foi torcer (até hoje)pelo Verdão do Cerrado, na verdade, verde e branco.

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